ENTREVISTA

"Lockdown é o único instrumento quando não há vacinação", diz prefeito de Araraquara

Ameaçado de morte por negacionistas, Edinho Silva, diz que fechar a economia é algo que se impõe à realidade

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Prefeito de Araraquara decretou lockdown para combater mortes na cidade - Reprodução/Twitter

Localizado na área central de São Paulo, o município de Araraquara, com pouco menos de 240 mil habitantes, ganhou destaque nacional na gestão da pandemia de covid-19 sob duas perspectivas: ou porque é visto por cientistas como um exemplo eficaz da aplicação de medidas sanitárias restritivas, como o lockdown decretado em fevereiro, ou porque é citado como alvo dos negacionistas para exaltar consequências negativas do isolamento social.

O município é governado pelo prefeito Edinho Silva, do PT, ex-ministro do governo Dilma Rousseff. Não por acaso, Silva também virou alvo do presidente Jair Bolsonaro, que citou Araraquara inclusive em pronunciamento nacional de rádio e televisão para criticar medidas de isolamento.

Ameaçado de morte por grupos negacionistas, Silva não se intimida e tem avisado à população da cidade, nos últimos dias, que um novo lockdown pode ser decretado, diante da curva ascendente de contaminação. Os casos já superam as estatísticas de fevereiro, quando o primeiro lockdown foi adotado, e também são piores que o cenário de 2020.

"Enquanto o Brasil não tiver vacinação em massa, precisamos administrar a pandemia com esses movimentos: para quando é necessário, [a economia] retorna, e se necessário, para novamente", sustenta o prefeito petista. 

O lockdown, explica, é um recurso extremo e não pode ser banalizado. Para tanto, a administração formatou parâmetros e indicadores científicos que justificam a medida.

Além de lamentar o ritmo lento de vacinação no país – em Araraquara, 28,93% receberam a primeira dose, e 15,91% as duas doses –, Silva afirma que "a democracia brasileira corre risco, sim", e vê com otimismo os movimentos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela construção de uma aliança ampla.

DW Brasil: Araraquara se destacou no país por decretar o lockdown. O que envolve tal decisão e como vê o risco de uma terceira onda?

Edinho Silva: Lockdown não é decisão administrativa, do gestor. É algo que se impõe à realidade. Nos deparamos com uma curva de contaminação muito acentuada. Ou nós parávamos a cidade ou viveríamos, num curto espaço de tempo, um colapso do sistema de saúde. Diante deste quadro, não tivemos outra decisão a tomar que não o lockdown.

Deu resultado. Reduzimos muito a contaminação e as taxas de ocupação de leitos. Hoje temos 46% de ocupação de leitos de UTI e 38% de leitos de enfermaria. Não existe lockdown permanente. Você toma uma medida e, depois, precisa voltar às atividades. No nosso caso nos preocupamos muito com o retorno [à escola] das crianças e dos adolescentes das famílias de maior vulnerabilidade. A população brasileira já vive, há um bom período, situação de desemprego gravíssimo.

O trabalhador que vive do subemprego, do trabalho informal, sofre muito com o lockdown, além da pequena e média empresa. Então precisa voltar. Esse retorno é sempre preocupante, porque toda vez que diminui o isolamento social consequentemente você aumenta a contaminação.

Araraquara viveu um momento de total controle sobre a pandemia, e por isso eu digo que lockdown dá certo e é o único instrumento que se tem quando não há vacinação.

Mas hoje estamos vivendo nova situação de aumento de contaminações. Sabemos que esse ritmo de contaminação vai rapidamente se transformar em pressão de leitos e por isso já estamos debatendo com a cidade que talvez tenhamos que entrar em lockdown novamente.

Enquanto o Brasil não tiver vacinação em massa, precisamos administrar a pandemia com esses movimentos: para quando é necessário, retorna, e se necessário, para novamente. O conceito é fazer gestão da pandemia, já que não se tem vacinação em massa.

Considerando o desemprego, fome, insegurança alimentar e falta de vacinação em massa, como é o diálogo e como a população de Araraquara recebe a decisão de lockdown?

Para essas famílias em vulnerabilidade, a prefeitura investiu muitos recursos em programas de segurança alimentar. Se nós precisarmos avançar para um lockdown, vamos continuar usando o método do diálogo, que é o que temos feito aqui desde o início da pandemia. Dialogar com todos os setores econômicos, da sociedade, pequena e média empresa, empresariado local, sindicatos, lideranças religiosas, e mostrar a necessidade de a cidade entrar em lockdown por conta da curva de crescimento da comunicação.

Em fevereiro, quando decretamos lockdown, tivemos manifestações negacionistas contra, ameaças. Eu fui ameaçado de morte, a secretária de Saúde também. Mas tenho certeza, e isso ficou nítido, que a cidade majoritariamente nos apoiou. Divulgamos diariamente o boletim mostrando a curva de contaminação, de leitos ocupados, de óbitos. Quando precisamos, em fevereiro, decretar o lockdown, a cidade sabia da necessidade. E agora é a mesma coisa.

Araraquara tem sido alvo, usada como exemplo de negacionistas e apoiadores de Bolsonaro. O próprio presidente já citou o caso. Diante dessa ofensiva e ataques, tem sido necessário um esquema de segurança especial a você e sua equipe? Se sente seguro?

Numa situação de calamidade como esta que estamos vivendo, a maior catástrofe humanitária da história do Brasil, politizar a pandemia é muito ruim. Não polemizo com o presidente da República por mais que ele tenha, por diversas vezes, mencionado de forma pejorativa e atacado politicamente a cidade de Araraquara.

Independente do que diz o presidente e os grupos negacionistas que ele alimenta, principalmente nas redes sociais, meu papel é tomar as medidas necessárias. Não me importo nem um pouco com o que diz o presidente.

Vou continuar governando a cidade olhando a realidade que estamos vivendo e me orientando por pesquisadores, cientistas, aqueles que têm acumulado conhecimento em relação à pandemia. E, claro, continuar esperando que a vacina chegue. Essa deveria ser a prioridade do governo federal.

Em relação às testagens, elas orientam a decisão de lockdown. Como tem sido feito o assessoramento científico à prefeitura para embasar decisões?

Desde março de 2020 criamos aqui dois comitês: o de contingenciamento, formado por gestores da prefeitura que se reúnem diariamente para analisar o quadro da pandemia, e o comitê científico, formado por pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da USP, diretores clínicos de todos os hospitais do município.

E temos recebido também ajuda da faculdade de medicina local, pesquisadores de outras áreas e universidades federais, OMS e Opas. Ouvindo esses grupos estabelecemos um projeto para que a cidade lute contra a pandemia, mas retome minimamente as suas atividades. Não existe lockdown permanente. Tão importante quanto esse momento, em que seguramos a curva de contaminação, é o momento da volta. E é por isso que investimos muito em testagem.

Testamos todos os comunicantes positivados, fazemos o rastreamento dos comunicantes, o bloqueio desses comunicantes e estabelecemos um pacto com a cidade. Um pacto que foi feito em cima de indicadores construídos depois de muito diálogo, inclusive com profissionais da saúde.

Quais os parâmetros: primeiro a cidade tem que testar, no mínimo, 0,1% da sua população. Testamos muito mais. E não pode, nesta testagem, termos 20% ou mais do total de testados positivados, ou 30% dos sintomáticos positivados. Por que é importante ter essas duas métricas? Porque uma vai enxergar a contaminação, que lá na frente vai significar internação.

E a outra métrica registra o paciente já doente. Esse paciente vai chegar mais rápido aos nossos leitos e vai pressionar o sistema. Hoje chegamos a 28,32% dos sintomáticos e 21,13% do total de testados positivados. Aqui já batemos. O decreto diz que, se eu repetir por três vezes 20% ou mais, Araraquara entra em lockdown.

E quando vai sair? Quando o total de testados tiver abaixo de 15% de positivados e o total de contaminados abaixo de 20%. Então a cidade sabe. Não é o prefeito que vai dizer: agora vamos fechar. É a cidade que vai dizer. Construímos um pacto social. Lockdown é um tiro tão potente que você não pode banalizar ele e decretar se não for num quadro que de fato configure gravidade, porque o impacto dele na sociedade, na economia e nos empregos é muito duro.

Existem prefeitos da região que são negacionistas, não adotam medidas sanitárias restritivas, e os casos estão explodindo. Como administrar essa questão?

Hoje, por exemplo, estamos com 49% da UTI ocupada por pacientes de fora e 41% de pacientes de enfermaria. O ideal seria que todas as cidade do entorno de Araraquara adotassem as mesmas medidas, porque ajudaria a conter a contaminação. São 24 cidades no entorno, mais de 1 milhão de habitantes, que circulam.

Então não adianta Araraquara tomar medidas se a região continuar se contaminando. É como se tivéssemos enxugando gelo. Você combate a doença, mas outros doentes estão entrando na cidade, porque Araraquara é polo regional. Algumas cidades tomaram medidas, fizeram restrições conosco. Outras não. O negacionismo está presente no Brasil inteiro. Cidades que mais resistiram a medidas regionalizadas são as que mais pressionam, hoje, os leitos de UTI que temos. Esse é o quadro. Temos que enfrentar o negacionismo, ter força e fazer prevalecer a ciência.

Em relação ao cronograma de vacinação, a mudança de gestão no Ministério da Saúde significou algo? A gestão é mais dinâmica e comprometida? Qual a perspectiva?

Quero crer que sim. Eu e todos os prefeitos do Brasil estamos aguardando que o novo ministro dê celeridade ao processo de vacinação. A vacinação não vai evitar a contaminação. Até porque se novas cepas estiverem circulando, é quase impossível as pessoas não se contaminarem.

O que esperamos é que, com a vacinação, a evolução da doença e a letalidade diminuam. Não temos outra arma a não ser a vacina. Até agora, mesmo com a troca do titular do Ministério da Saúde, não vimos de forma efetiva nenhuma mudança no ritmo de produção da vacina. Vimos o Brasil ficar aí um bom período sem insumos para produção da vacina por conta de equívocos diplomáticos que o governo brasileiro cometeu.

Então jogar tudo nas costas do ministro, neste momento, seria injusto. Mas claro que ele sabe que se não der uma resposta efetiva à pandemia num curto espaço de tempo certamente sofrerá desgaste absurdo e talvez o Brasil tenha que trocar de ministro da Saúde mais uma vez.

Existe uma grita geral, verdadeira, sobre a falta de financiamento para o enfrentamento à pandemia por parte do governo federal. Prefeitos estão enfrentando com recursos próprios, sem ajuda extra do Ministério da Saúde. A principal resposta que o ministro tem que dar, efetivamente, é no ritmo de vacinação.

Mudando de tema: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva já se coloca como candidato em 2022. Na sua avaliação, ele e o PT têm trabalhado por uma construção mais ampla que se aproxima do centro?

Acredito que sim, e fico muito feliz. Sempre desejei que construíssemos uma aliança que tivesse como centro a reconstrução da democracia no Brasil. Fiquei feliz ao ver o encontro dos ex-presidentes Lula e Fernando Henrique Cardoso.

Foi um dos gestos mais importantes da política brasileira no último período. Espero que essa construção tenha continuidade. Sei que há diferenças programáticas entre PT, PSDB, MDB, PSD, e assim por diante. Mas neste momento o Brasil precisa de um gesto grandioso que amenize as diferenças para que a gente possa restabelecer o ambiente democrático.

Não minimizo os arroubos autoritários que temos assistido no último período. A democracia brasileira corre risco, sim. Vai ter um golpe tradicional de militares? Não sei se tem ambiente político no mundo para algo desta envergadura no Brasil, mas que estamos abrindo espaços para posturas autoritárias e legitimando o autoritarismo, eu não tenho nenhuma dúvida.