Nas últimas semanas, a mobilização popular indiana deixou de figurar com frequência nas manchetes da imprensa mundial, mas a tentativa do governo de dividir os revoltosos utilizando as castas de origem religiosa não foi suficiente para quebrar a unidade dos agricultores.
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Nas redes sociais, o perfil criado para dar voz aos camponeses declarou nesta segunda-feira (14): “200 dias passados e muitos mais pela frente. Agricultores estão preparados para protestos prolongados até as três leis serem revogadas”.
Considerado o maior levante agrário da história recente mundial, a onda de protestos que balança a Índia em meio ao caos sanitário provocado pela pandemia de coronavírus é tema de um dossiê do Instituto Tricontinental, instituição de pesquisa que atua com base em movimentos populares da África, Ásia e América Latina.
O dossiê analisa em profundidade as raízes socioeconômicas da crise indiana, que remonta ao período colonial, e a articulação dos camponeses que levaram, desde novembro do ano passado, milhares de pessoas às ruas na maior greve registrada país em oposição ao governo de extrema-direita do primeiro-ministro Narendra Modi, um dos poucos aliados, no cenário internacional, de Jair Bolsonaro (sem partido).
“Há uma nova geração que aprendeu a resistir e está preparada para a levar sua luta por toda a Índia”, identifica o Instituto Tricontinental.
Semisservos das corporações
Conforme aponta o dossiê, o estopim para os protestos ocorreu em setembro de 2020, com a aprovação, capitaneada pelo partido direitista Bharatiya Janata (BJ), de um conjunto de leis que eliminam a já enfraquecida regulamentação estatatal do setor agrícola, favorecendo a atuação de grandes grupos privados, entre eles a família do industrial milinário Mukesh Ambani, que se tornou o homem mais rico do mundo fora da Europa e da América do Norte.
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Não houve consulta prévia às populações afetadas, nem discussões no parlamento. “Os agricultores perceberam imediatamente que essas três leis os transformam em semisservos das grandes corporações comerciais da Índia. Eles deram início a uma onda de protestos que ainda perdura, meses depois, apesar da pandemia”, lê-se no relatório do Instituto Tricontinental.
Reação popular
Assolados pela grave crise em meio à pandemia, agricultores e trabalhadores do setor decidiram, em novembro de 2020, marchar em direção a Delhi, segunda maior e mais importante cidade do país, que engloba a capital, Nova Delhi.
A grande imprensa indiana, ligada às corporações, promoveu severos ataques contra os manifestantes. “A mídia corporativa vilanizou os agricultores, atacando a integridade deles ao chamá-los de bandidos, parasitas, terroristas e separatistas que pretendem obstruir o desenvolvimento da Índia”, observou o Instituto.
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Organizações ligadas aos produtores rurais, como a All-India Kisan Sabha (AIKS) e a Bharatiya Kisan Union, saíram em defesa dos revoltosos, na tentativa de formar uma coalizão nacional e reverter as leis que prejudicavam o campesinato, que demonstrou disposição de enfrentar o governo, apesar dos riscos de exposição ao coronavírus.
A memória da fome
A pesquisa do Instituto Tricontinental acusa a colonização inglesa, no século XVIII, como o início do processo de espoliação das riquezas que provocaram uma série de surtos de fome que resultaram na morte de milhares de indianos.
As terras foram expropriadas dos camponeses e transformadas em propriedade privada, em benefício da Companhia Inglesa das Índias Orientais.
Em 1770, os britânicos assistiram Bengala, primeira região da Índia governada pela Companhia, vivenciar a carestia que matou um terço da população. Mesmo em anos de boas safras, o fluxo de riquezas em direção à Europa sangrava a população indiana.
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“Entre 1850 e 1899, os camponeses indianos sofreram 24 fomes, uma a cada dois anos. Essas fomes mataram milhões de pessoas: durante a fome de 1876-79, 10,3 milhões de pessoas morreram; na de 1896-1902, a baixa foi de 19 milhões”, relata o Instituto.
Após a independência, o governo passou para as mãos da grande burguesia e dos latifundiários e preservou as hierarquias econômicas herdadas dos britânicos.
Sob pressão foram implementadas fracas reformas agrárias, que amenizaram os problemas sociais em algumas regiões do vasto país.
Protestos não vão cessar
O Instituto Tricontinental aponta caminhos que poderiam ser adotados pela Índia para promover uma saída da crise. A solução passaria pela diminuição da concentração fundiária, medida que não aparece no horizonte do governo de extrema-direita.
“Em 1961, 12% das famílias rurais possuíam mais de 60% das terras agrícolas nas aldeias da Índia”, revela o dossiê.
Edição: Leandro Melito