ENTREVISTA

"Nem bala, nem fome, nem covid": a expectativa de Douglas Belchior para o 19 de junho

Militante da Coalizão Negra por Direitos põe em evidência os problemas que empurram a população negra para mobilização

Brasil de Fato | Lábrea (AM) |
Insatisfação popular deve se traduzir em manifestações cada vez mais amplas, diz ativista - Douglas Magno / AFP

"Nem bala, nem fome, nem covid". Na avaliação de Douglas Belchior, militante da Coalizão Negra por Direitos, essas palavras de ordem estão sintetizadas no "Fora, Bolsonaro", mote dos atos convocados por organizações populares para o dia 19 de junho.

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Em entrevista ao Central do Brasil, Belchior destacou a importância da manifestação como continuidade ao protesto massivo de 29 de maio, que, em sua avaliação, alterou a correlação de forças no país em favor do campo popular.

O militante denuncia a prevalência da covid-19 sobre os negros, em razão do acesso rebaixado a serviços de saúde e a vacinas, além da maior exposição ao vírus. "Para avançar na pauta da vacina, é preciso enfrentar o racismo", pontua.

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Para o ativista, a insatisfação popular deve se traduzir em manifestações cada vez mais amplas.

"Há um setor da sociedade que teve o direito ao isolamento social garantido. Mas a maioria do povo brasileiro não teve esse direito assegurado. O povo negro, em especial, teve que continuar sua vida cotiadiana em busca do pão de cada dia."

Agravados pela falta de assistência governamental, a fome, o desemprego e a falta de moradia crescem entre a população periférica, que têm de conviver ainda com o recrudescimento da violência policial.

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Belchior aponta ainda que o colapso social brasileiro ocorre em meio a safras recordes do agronegócio, que destina a produção ao mercado externo, enquanto os brasileiros sofrem com a fome e a inflação dos alimentos.

"No Brasil inteiro há comunidades se organizando para se proteger da fome, que é um outro vírus que mata e que tem crescido de maneira alarmante no país".

Confira a entrevista:

Movimentos populares estão organizando manifestações de rua em todo o Brasil para o dia 19 de junho. Já é a segunda organizada por esses sujeitos desde o dia 29 de maio. Qual é a expectativa da participação popular no ato?

Douglas Belchior: É muito importante a mobilização do movimento negro. O país inteiro de favelas e de periferias não abandonou as ruas, mesmo durante a pandemia. É preciso lembrar isso.

Mesmo no primeiro momento da pandemia, a violência policial se fez presente nas nossas vidas e, desde então, há manifestações permanentes a cada ação truculenta da polícia. No dia 13 de maio desse ano, o movimento negro organizou um grande manifesto no país inteiro levando milhares de pessoas às ruas.

Então, do nosso ponto de vista, há uma permanência nas ruas desses atores. No dia 29 de maio, todo o campo popular se uniu em uma grande manifestação que, sim, abalou as estruturas e transformou a correlação de forças, preparando esse momento para o 19 de junho. É preciso permanecer nas ruas. A nossa expectativa é que a população cada vez mais venha a aderir a esse processo todo.

A pauta pelo impeachment de Bolsonaro agrega diversas lutas, como o combate ao racismo, à violência policial e ao genocídio da população negra. Como o movimento negro está se organizando para levar essas pautas para o dia 19 de junho?

As nossas bandeiras estão sintetizadas no "Fora, Bolsonaro", mas as palavras de ordem significam muito mais que isso. Nem bala, nem fome, nem covid. O povo negro quer viver.

Essa é a nossa chamada, são as nossas palavras de ordem. As palavras de ordem do movimento negro para esse 19 de junho, assim como foram nos dias 13 e 29 de maio.

Fome: o Brasil é um dos países que mais produzem alimentos no planeta e é o país que hoje volta ao mapa da fome. Mais da metade da sua população está em insegurança alimentar, não sabe o que vai dar de comer para os filhos amanhã.

Cerca de 20 milhões de pessoas não conseguiram fazer hoje suas três refeições diárias. É um absurdo que nosso país, onde o agronegócio bate recorde de produção de grãos, onde o agronegócio é o setor que mais lucra, que a população passe fome.

Covid: ora, a gente sabe muito bem o contexto que estamos vivendo, batendo à porta das 500 mil mortes, a maioria delas pessoas negras e pobres, diante de uma gestão irresponsável e genocida do presidente.

O "Fora, Bolsonaro" significa isso tudo e mais ainda. A violência e a truculência policial, estimulada por esse governo, e o alinhamento de alguns governos estaduais, como é o caso de São Paulo, do Rio de Janeiro, da Bahia, do Recife, onde as polícias são absolutamente violentas, em um alinhamento macabro com o ideário bolsonarista.

Quais as orientações de segurança que os movimentos populares dão a todos que quiserem se manifestar no dia 19?

São as mesmas orientações que nós reafirmamos para o trabalhadores que superlotam os pontos de ônibus, os trens, que não deixaram de ser espaços de aglomeração para aqueles que precisam ir para a rua ganhar o pão de cada dia.

Há um setor da sociedade que teve o direito ao isolamento social garantido. Mas a maioria do povo brasileiro não teve esse direito assegurado. O povo negro, em especial, teve que continuar sua vida cotidiana em busca do pão de cada dia.

Se é necessário que trabalhadores superlotem trens e ônibus para trabalhar, é possível ou pelo menos recomendável que se faça isso com os cuidados: máscara, álcool gel, distanciamento possível. Isso também deve ser a orientação para os protestos em todo o país.

Sem dúvida nenhuma, se tiver com algum sintoma, não saia de casa. Se tiver se sentindo bem, vem para a rua, vem para a luta com todos os cuidados.

A pandemia agravou ainda mais questões como desemprego, a fome e a falta de moradia. Sem o auxílio emergencial de R$ 600, muitas comunidades se auto organizam para doação de alimentos, marmitas e produtos básicos de higiene. Como essas ações de solidariedade acontecem e como é possível contribuir com elas?

A Coalizão Negra por Direitos tem uma campanha que está no ar há três meses chamada "Tem Gente Com Fome". Todo mundo pode acessar, por favor, o nosso site temgentecomfome.com.br.

Assim como há outras campanhas importantes no Brasil, essa é uma das maiores. No Brasil inteiro há comunidades se organizando para se proteger da fome, que é um outro vírus que mata e que tem crescido de maneira alarmante no país.

São muito importantes essas movimentações de solidariedade, que já são marca da característica da própria auto-organização popular. A gente sabe que em bairros periféricos, em favelas e comunidades, que são os bairros onde nós crescemos, a solidariedade é a marca fundamental para a sobrevivência, parte da ação comunitária permanente. Essa campanha "Tem Gente Com Fome" já alimentou mais de 60 mil famílias em todo o país. Já arrecadamos R$ 12 milhões em alimentos, e essa campanha continua. Ela é fundamental não só para levar a comida ao prato de quem precisa - e isso já seria suficiente - , mas uma campanha coordenada pelo movimento reafirma a presença do grupo no território.

Então isso fortalece a organização política local, que é fundamental para o enfrentamento ao bolsonarismo. Mais do que uma campanha humanitária de levar alimentos, são núcleos de enfrentamento ao fascismo nas comunidades.

Há dados que registram que o Brasil vacinou duas vezes mais pessoas brancas do que negras. Como podemos avançar nessa pauta dentro da luta por vacina para todos?

Para avançar na pauta da vacina, é preciso enfrentar o racismo. O racismo é um elemento que estrutura as relações e a dinâmica social em todas as dimensões da vida.

A crise da covid no Brasil escancara ainda mais o significado do racismo e as diferenças sociais e econômicas decorrentes do racismo, que é um sistema de dominação sobre o qual o Brasil está assentado desde sempre.

Então você tem o vírus, que é letal e deveria atingir todos os seres humanos por igual, mas no Brasil ele atingiu mais as pessoas negras. As pessoas negras que precisaram de UTI, na sua grande parte, não tiveram acesso.

E as que chegaram na UTI foram as que mais tiveram letalidade. Mesmo a vacina é ofertada também de maneira a obedecer a lógica do racismo. Os postos de saúde estão, muitas vezes, alocados em regiões a que pessoas negras têm menos acesso.

Há bairros e comunidades distantes, problemas de locomoção e o problema da informação e das 'fake news', que atinge muito mais os mais pobres. E nós estamos falando de gente que tem maioria negra.

E tem outro quadro alarmante: a população negra morre mais jovem do que a população branca no Brasil. Se você tem uma vacinação dirigida aos mais velhos primeiro, naturalmente o contingente proporcional de pessoas negras mais velhas é menor do que proporcionalmente os brancos.

Edição: Vivian Virissimo