Por terem realizado uma aula pública sobre o fascismo, durante o período de eleições, em 2018, estudantes e docentes da Universidade Estadual do Ceará (UECE) foram intimados pela Polícia Federal na última semana.
A acusação parte de alguns alunos da universidade que alegam ter sido constrangidos em suas crenças pelo conteúdo das palestras.
Segundo nota à imprensa enviada pela defesa dos acusadores, as vítimas representadas são pessoas comuns, sem vinculação político-partidária alguma. Porém, a partir de uma busca na internet, a reportagem encontrou o canal de vídeos de um deles, cuja maior parte do conteúdo é dedicada à difusão da ideologia integralista.
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O integralismo foi um partido e movimento social surgido no Brasil na década de 1930, influenciado pelos ideais e práticas fascistas cujos seguidores eram conhecidos como "galinhas verdes". O movimento de extrema-direita foi fundado pelo jornalista Plínio Salgado, que criou a Ação Integralista Brasileira, em 7 de outubro de 1932, e até hoje possui seguidores.
Entre os conteúdos apresentados pelo canal, está um "curso de introdução ao integralismo", dividido em sete vídeos que abordam por exemplo "o manifesto de outubro", divulgado em 7 de outubro de 1932 por Plínio Salgado, que marca a fundação da Ação Integralista Brasileira e é considerado o marco inicial do movimento no Brasil.
O advogado dos estudantes acusadores alega que o aluno em questão se aproximou do integralismo depois de ter saído da faculdade, e afirmou que existem divergências sobre a identificação do integralismo como uma corrente fascista.
Perseguição
Ouvido pela delegada Alexsandra Oliveira Medeiros Reis, nessa última terça-feira (15), o professor Francisco Luciano Teixeira Filho, um dos acusados, se diz surpreso com a denúncia.
"Eles falam que os professores os chamam de corja cristã fascista. Aí eu perguntei a delegada se eles disseram que eu disse isso para eles, e ela me confirmou que não", relata Teixeira Filho.
"Um dos alunos inclusive, em depoimento, diz que nenhum dos denunciados se dirigiu ou tentou coagi-lo pessoalmente. Ele só disse que se sentiu coagido. É uma denúncia abstrata".
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O professor de filosofia acredita que o processo tem como objetivo atentar contra a liberdade de expressão política dentro do espaço universitário.
"É uma tentativa de silenciar mesmo, de intimidar. Eles sabem que não vai dar em nada porque qualquer pessoa, minimamente letrada, sabe que não tem prova, não tem nada. Mas através dessa perseguição, eles querem nos botar medo, nos deixar quietinhos e fazer mídia."
Em 2018, o Ministério Público Federal já havia descartado a viabilidade da acusação. Mesmo assim, o processo não foi arquivado e a denúncia transcorre como crime eleitoral, baseado no Artigo 301 da Constituição, que prevê a criminalização do uso de violência para coagir alguém a votar, ou não votar.
Segundo o advogado Newton Albuquerque, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), o inquérito contra os professores não poderia ter efeito agora depois de tanto tempo, já que não possui materialidade, nem autoria caracterizada.
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"O que há na verdade é uma profusão de acusações sem pé nem cabeça, desprovida de qualquer prova, desprovida de qualquer caracterização de tipos penais ou de lícitos. Se você ler o processo, fica impressionado como ele não tem nada. Não tem autoria, não há uma identificação sequer", afirma Albuquerque.
Para o advogado, o inquérito não passa de "um amontoado de acusações sem prova nenhuma".
"Há ameaça, mas a ameaça foi feita no banheiro por alguém que escreveu 'morte aos fascistas', ou seja, tudo é muito vago, brumoso tudo muito impreciso. É o que nós no direito chamamos de uso instrumental do direito para perseguição, para um viés autocrático", afirma Albuquerque.
Já o advogado dos alunos que abriram a caso, Pedro Henrique de Araújo Cabral, afirma que existe "farto material" contra os professores nas redes sociais.
"As fartas provas que temos consistem em prints, de perfis de professores assediando seus alunos. Inclusive tem uma fala bem marcante, que diz 'hoje terminei de azucrinar, perturbar os cristãos'. O que dá a entender que estava assediando seus alunos cristãos, ou ex-alunos cristãos. Então temos elementos que no conjunto probatório demonstram um estado de coisas ameaçadoras." afirma o advogado.
De acordo com o representante da ABJD, a autonomia didática, ou seja, o direito dos docentes universitários se manifestarem de forma livre, é garantida pelo Artigo 207 da Constituição Federal.
Esse direito foi reafirmado pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - a ADPF 548, relatada pela Ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Carmen Lúcia, em 2020, por conta das tentativas de intervenções que as universidades sofreram durante o período das eleições de 2018.
"Da minha parte eu vou continuar dando minhas aulas, vou continuar falando do fascismo. Eu acho uma questão essencial para a sociedade brasileira e eu tenho função social nessa nessa nação. Tenho a consciência absolutamente tranquila de que não estou fazendo uso de violência ou grave ameaça para coagir alguém a voltar ou deixar de votar", afirma Teixeira Filho.
Agora, um pedido de habeas corpus será apresentado pelos advogados de defesa para impedir o avanço do caso que corre sob controle da Justiça Eleitoral do Ceará e do Ministério Público Eleitoral.
Sobre quem teme os antifascistas, o advogado e professor de direito é categórico ao afirmar que são os que temem a diversidade e a própria democracia.
"Quem teme o antifascismo são os fascistas. Que por sua vez temem profundamente a democracia, o pluralismo, os direitos humanos e a Constituição. Temem o outro. Por isso é muito importante que nós reforcemos a luta antifascista para reforçar justamente a defesa da democracia."
Quem tem medo dos antifascistas?
Movimentos antifascistas lutam contra o avanço da ideologia que, conforme o historiador Boris Fausto, glorifica o autoritarismo, a formação de mílicias e a agressão de adversários.
No Brasil, um dos marcos de atuação do movimento antifascista foi o enfrentamento aos integralistas em São Paulo, que iriam comemorar dois anos de fundação do movimento com um comício na Praça da Sé, no dia 7 de outubro de 1934.
Essa ação reuniu a Frente Única Antifascista, o Partido Comunista Brasileiro e outros grupos organizados em especial comunistas, anarquistas e sindicatos. O conflito impediu a realização do comício integralista e o episódio ficou também conhecido como a "revoada dos galinhas verdes".
Autoritarismo cresce com Bolsonaro
Desde o início do mandato, o governo Bolsonaro vem acumulando a abertura de processos e investigações contra manifestações críticas ao seu governo e ao autoritarismo de modo geral, sobretudo, organizações, personalidades e militantes que levantam a bandeira do "antifascismo".
Em abril de 2020, um documento com nome e endereço de mais de mil pessoas que seriam “suspeitas de terrorismo”, por se declarem antifascistas, circulou pelas redes sociais. A origem da lista foi atribuída ao deputado estadual Douglas Garcia, do PTB, em São Paulo, e segundo o próprio deputado, as informações teriam sido entregues à embaixada norte-americana pelo filho do presidente Eduardo Bolsonaro.
Em junho, uma unidade pouco conhecida do Ministério da Justiça, a Secretaria de Operações Integrada, endereçou para a Polícia Federal, à Agência Brasileira de Inteligência (Abin), à Força Nacional e ao Centro de Inteligência do Exército, um dossiê com o nome de 579 servidores federais e estaduais de segurança, identificados como integrantes do “movimento antifascista”.
Por meio do uso da Lei de Segurança Nacional, personalidades que expressaram suas críticas ao governo também foram processadas. Como o influenciador digital Felipe Neto e o cartunista Renato Aroeira.
Edição: Leandro Melito e Isa Chedid