Até hoje, é comum que as pessoas façam roda de tambor como forma de agradecimento ao santo
O ritmo acelerado da percussão é marca do tambor de crioula, uma tradição cultural maranhense que também é patrimônio imaterial do Brasil. A brincadeira nasceu nas senzalas durante a época da escravidão, como explica Neto de Azile, diretor da Casa do Tambor de Crioula, de São Luís.
“Após o trabalho na lavoura, eles se juntavam e começavam essa batucada, aqui já no Maranhão. Ele não veio da África, da África vieram os escravizados e trouxeram seu modo próprio de visão de mundo, que é essa relação direta com a natureza, e a comemoração, a louvação dos seus deuses através de festas com tambores e animação”.
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O tambor de crioula geralmente é ligado à devoção a São Benedito. Até hoje, é comum que as pessoas façam roda de tambor como forma de agradecimento ao santo. Foi assim com a família da professora Sildiléia Melonio, do Tambor de Crioula do Alto São Benedito.
Nos anos 1950, a avó dela organizou uma roda depois que o marido sobreviveu a um acidente de trabalho.
“Aí chamava quem sabia bater, quem sabia cantar, mulheres que sabiam dançar. E formava aquele tambor bem descontraído mesmo, sem compromisso com nada. Era o tambor de amanhecer. Era muita comida, muita fartura”, conta.
No tambor de crioula são usados três instrumentos de percussão: o tambor grande, o meião e o crivador.
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O ritmo é complexo, cheio de contratempos. E não basta ter habilidade para tocar – afinar os tambores também não é tarefa fácil, como explica mestre Lázaro de Oliveira Pereira, do Tambor de Crioula Tijupá.
“A parelha de tambor de crioula é afinada a fogo. Você faz uma fogueira e aproxima esses tambores. Tudo isso com muito cuidado. Se você aproximar o couro frio do fogo, ele vai rachar. A temperatura deixa o tambor mais agudo, com a sonoridade mais aguda, porque enrijece as fibras do couro, e esse couro rígido vai proporcionar um som mais agudo. Se não afinar, os tambores vão ter praticamente a mesma altura do som, da nota. A partir do momento que você aquece, você tem diferenciação”.
E é esse som que guia as dançarinas, conhecidas como coreiras. Com blusas brancas e saias de chita bem coloridas e bem rodadas, elas formam um círculo. Uma entra e dança na frente dos tambores.
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Então, uma outra coreira entra, elas brincam juntas e dão uma umbigada, também chamada de punga. É um movimento que aparece em várias manifestações culturais afro-brasileiras, e se relaciona à fertilidade feminina.
Neto de Azile comenta que a dança do tambor de crioula é cheia de símbolos e significados.
“É uma relação meio romântica entre o tocador que está com o tambor grande e a coreira que está dançando pra ele. Nesse momento, há uma relação de sedução. Nessa hora, o tambor grande é um símbolo fálico, se pode entender assim, e a mulher dança sedutora para o coreiro.”
Na maioria dos grupos da capital, São Luís, as mulheres só dançam, e os homens só tocam e cantam. Mas no interior do estado, há mais variedade: lá existem mulheres batendo tambor e homens dançando, inclusive de saia.
No município de São Benedito do Rio Preto, há grupos que fazem a roda no cemitério, em homenagem às almas.
Hoje, além de ser uma manifestação ligada à devoção popular e à festa espontânea, o tambor de crioula também é um produto cultural. Mas sem perder o respeito e o amor pela tradição, como afirma Sildiléia.
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“Eu sou apaixonada por tambor de crioula. Quando eu vou lá no centro histórico, a primeira coisa que eu procuro é onde está tendo uma roda de tambor. É um símbolo de resistência: resistência negra, resistência religiosa”.
Mestre Lázaro também é do time dos apaixonados pelo tambor.
“Você tem essa sincronia com coreiras dançando, você tem essa coisa do olhar, da energia passando, da alegria, do sorriso. E chega um momento de quase transe. Você viaja no ritmo, é como se saísse do chão tocando tambor de crioula. E aí você não sente a mão, no outro dia está de mão inchada, mão ferida de tocar. mas não sentiu nada, porque ali você está extasiado”.
Edição: Douglas Matos