ENTREVISTA

"Congresso Nacional está distorcendo política urbana do país", alerta especialista

Doutora em Urbanismo Betânia Alfonsin analisa os 20 anos do Estatuto e mostra as tentativas de destruição do projeto

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Moradores de ocupação protestam por direito à moradia
Moradores de ocupação protestam por direito à moradia - Giorgia Prates

O Estatuto da Cidade completa 20 anos no dia 10 de julho. É o nome oficial da Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, que regulamentou o capítulo da Constituição de 1988 referente à Política Urbana. Ele tem como princípios básicos o planejamento participativo e a função social da propriedade. Foi proposto em 1988 pelo senador Pompeu de Souza (CE).

Aprovado em 1989 pelo Senado Federal, foi enviado à Câmara dos Deputados, onde foi engavetado pelo presidente da casa, até que o então deputado federal Inácio Arruda (PCdoB/CE) o reapresentasse, dez anos depois. Só foi aprovado, finalmente, em 2001.

A lei estimula as prefeituras a adotar a sustentabilidade ambiental como diretriz para o planejamento urbano, além da participação popular na gestão das cidades. Cria a obrigatoriedade de estudos de impacto urbanístico para grandes obras, como a construção de shopping centers. E coloca, entre os instrumentos do planejamento municipal, a gestão orçamentária participativa.

Betânia Alfonsin, doutora em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretora-geral do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), analisa em entrevista ao Brasil de Fato RS estes 20 anos de vigência do Estatuto e mostra as tentativas de destruição deste projeto aprovado pelos representantes do povo brasileiro nas últimas décadas do século passado.

A seguir, a entrevista:

Brasil de Fato RS: Com vinte anos de vigência agora no dia 10 de julho, depois de uma discussão na sociedade que começou em 1988, qual é a avaliação que você faz da situação atual da política urbana no Brasil?

Betânia Alfonsin - A política urbana no Brasil está sendo descaracterizada e desdemocratizada, desde o impeachment sem crime de responsabilidade que retirou Dilma Roussef da presidência do Brasil em 2016. Leis vem sendo aprovadas no Congresso Nacional distorcendo de forma muito clara a política urbana aprovada pela Assembleia Constituinte que resultou na Constituição de 88 e, ainda mais, a forma como a política urbana foi regulamentada pelo Estatuto da Cidade.

Tivemos algum avanço em relação ao período anterior a 2001? Quais?

É claro que o Estatuto da Cidade inovou ao revisitar o velho instituto da propriedade e fazer com que o poder público municipal tivesse maior poder para fiscalizar a forma como cada terreno na cidade atenderia a sua função social, através do plano diretor.

Muitos instrumentos urbanísticos importantes foram criados e implementados também, sofisticando a legislação urbanística do país, mas a grande questão a ser respondida hoje está relacionada à baixa efetividade de muitos desses instrumentos em todo o país.

Tivemos retrocessos? Quais?

Sim, o Brasil está vivendo uma fase de muitos retrocessos na política urbana. Um dos mais importantes é a aprovação de uma mudança no marco legal da terra no Brasil, que alterou as regras da regularização fundiária no país.

A lei 13.465/17 foi aprovada ainda durante o governo de Michel Temer e altera o modelo de regularização fundiária do país. Se antes o modelo era o da regularização fundiária plena, com titulação, urbanização e participação popular, agora se enfatiza a titulação, o que facilita a tomada de terras da população de baixa renda por camadas de maior renda, facilitando processos de gentrificação nas nossas cidades.

Além disso, a prioridade deixa de ser a regularização fundiária de assentamentos de baixa renda, introduzindo-se várias regras que facilitam a regularização fundiária de empreendimentos implantados por população de renda mais alta, em desacordo com as propostas do Estatuto da Cidade, voltadas para o direito à cidade.

Como elas vão impactar a vida dos cidadãos?

As mudanças que estão sendo propostas são nocivas por duas razões: primeiro pela forma, pois não passaram pelo crivo da participação popular, que sempre enriquece o olhar sobre a cidade e as necessidades da sua população.

Segundo porque efetivamente estão mais voltadas para o interesse da construção civil, propondo regimes urbanísticos que promovem maior adensamento, sobrecarregando a infraestrutura da cidade e, no caso da Ponta do Arado, desrespeitando os bens ambientais presentes naquela região sul da cidade e o modo de vida da população da região. 

Tem se respeitado a função social da propriedade?

A função social da propriedade tem sido desrespeitada de muitas formas, não apenas por omissão do poder público na aplicação de instrumentos que combatem a retenção especulativa de imóveis urbanos, mas também em função de projetos de lei que claramente descaracterizam o entendimento sobre o que é função social da propriedade no país.

O senador Flávio Bolsonaro, por exemplo, tem um projeto de emenda constitucional caricatural, no qual, na prática, é o próprio proprietário (e não o município, através da lei do plano diretor) que decide como a propriedade atenderá a sua função social.

O direito à moradia digna tem sido respeitado?

Não, o direito à moradia tem sido muito desrespeitado no país. Segundo a Constituição Federal, União, estados e municípios têm competência comum para a promoção de programas habitacionais e de melhorias habitacionais no país, mas a omissão tem sido muito grande, o que leva muitas famílias a viverem em situação de rua ou ainda a ocuparem áreas irregularmente para fins de moradia. Os despejos são a face mais perversa desse desrespeito ao direito à moradia no país.

O que se tem feito para que as pessoas tenham um teto que as abrigue?

Durante a pandemia uma campanha nacional chamada Despejo Zero tem sido desenvolvida pela sociedade civil, movimentos populares e várias Defensorias Públicas estaduais, visando evitar os despejos durante a pandemia.

Já há projetos de lei em estado avançado de tramitação com o mesmo objetivo e, ainda, uma decisão liminar do STF, determinando a suspensão dos despejos no Brasil durante a pandemia da cavid-19.

A União regulamentou a legislação prevista no Estatuto da Cidade?

Sim, a União regulamentou diversos temas, mas a competência primeira é dos municípios, que são os responsáveis pela execução da política urbana. Tanto em nível nacional quanto em nível local, nos municípios brasileiros, muitas leis têm sido aprovadas distorcendo as ideias originais do Estatuto da Cidade, em um processo que ficou conhecido como "boiadas ambientais e urbanísticas”.

A expressão relembra a fala do ministro Salles, do Meio Ambiente, durante reunião ministerial filmada e revelada em função de uma decisão judicial, na qual o ministro diz que o governo deve aproveitar a pandemia para "passar a boiada" enquanto a população está preocupada com as pautas da saúde e do número de mortes por covid-19 no Brasil.

Como você vê o futuro das cidades no Brasil se for mantida esta política protofascista?

O presente é muito preocupante. Há uma destruição da política urbana construída democraticamente durante a Nova República em um processo altamente qualificado. Os ataques são graves e quebram a espinha da política urbana no país, descaracterizando-a e desdemocratizando-a.

A organização da sociedade civil, no entanto, em redes como o BR Cidades, bem como através da mobilização dos movimentos populares e de entidades como o Instituto de arquitetos do Brasil (IAB), do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), e outras, tem sido fundamental para frear o retrocesso que a vanguarda do atraso quer impor ao país.

Há, portanto, um projeto de cidade para poucos, que agrava a situação urbana no Brasil, sendo implementada, mas ao mesmo tempo se observa uma grande resistência do campo democrático popular.

O que vai acontecer no futuro das nossas cidades dependerá muito da correlação de forças entre esses dois campos. Há esperança de resgate de um projeto de cidade para todas, todos e todas, mas há também muita luta pela frente.

E especificamente em Porto Alegre?

O município de Porto Alegre também recuou na implementação da agenda da reforma urbana e há muitos anos não aplica os instrumentos de notificação para fins de parcelamento, edificação ou utilização compulsória de imóveis urbanos retidos especulativamente, por exemplo, a fim de garantir o cumprimento da função social da propriedade na cidade.

As políticas de regularização fundiária, que foram uma marca da cidade na década de 90 e logo após a promulgação do Estatuto da Cidade, também foram bastante abaladas e há muito tempo não recebem a atenção governamental e os recursos financeiros que seriam necessários para sua implementação de forma plena, envolvendo titulação e urbanização.

Finalmente, políticas como o Orçamento Participativo, que já fizeram de Porto Alegre uma referência internacional em termos de democratização da gestão pública, foram sendo tão negligenciadas até que, em 2021, são uma pálida sombra do que representaram no passado, infelizmente.

Houve a redação do Plano Diretor de Porto Alegre. Que mudanças houveram depois?

O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental de Porto Alegre (OPDDUA) foi aprovado em 1999 ainda durante o governo da Frente Popular e a lei era bastante avançada. A revisão obrigatória a cada 10 anos estava sendo realizada em 2019, mas foi interrompida durante a pandemia por uma recomendação do Ministério Público.

Apesar disso, muitas leis alterando o regime urbanístico de algumas regiões da cidade vêm sendo propostas pelo poder público, como é o caso do Centro Histórico e da Ponta do Arado, na zona sul da cidade, em completo desrespeito às regras do Estatuto da Cidade que exigem participação popular para que tais alterações sejam feitas.

 


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Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Marcelo Ferreira