Na última sexta-feira (18), Maria Bethânia comemorou 75 anos de vida, 56 deles dedicados ao ofício de cantar o Brasil. Com sua insubmissa voz, Bethânia traduz a dor e a glória do povo de um país fraturado pelo passado escravista e colonial.
Parafraseando a professora Heloisa Starling (UFMG), Bethânia é uma verdadeira intérprete do Brasil que, no campo da arte, dedica sua vida a expressar nos palcos os elementos que explicam as particularidades da sociedade brasileira.
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Da sua estreia oficial no espetáculo Opinião (1965) aos seus últimos trabalhos, como “Meus quintais” (2015), o Brasil aparece simultaneamente como passado-presente dilacerado e como porvir que brota das mãos indígenas, sertanejas, ribeirinhas, do “oásis de Bethânia”.
É das formas simples e altamente sofisticadas construídas pela diversidade característica do povo brasileiro que Bethânia se guiou. Dito de outra maneira, o Brasil é o seu farol.
Não o “Brazil” atravessado pela indústria cultural estadunidense, mas o Brasil de Guimarães e Drummond, de Caymmi e Noel Rosa, da Festa de Santo Amaro da Purificação e da Estação Primeira de Mangueira, do Recôncavo da Bahia e do Rio de Janeiro, da devoção à Santa Bárbara e à Yansã, do axé que pulsa no Terreiro de Mãe Menininha do Gantois à fé em Nossa Senhora Aparecida.
Bethânia combina o que há de mais pujante na cultura popular brasileira, sem saudosismos, com denúncia e anúncio
Ao sair da Bahia para encarar o Teatro de Arena com apenas 17 anos interpretando Carcará, canção-potência de João do Vale, substituindo Nara Leão e sendo dirigida por Augusto Boal, a filha de Dona Canô crava nos palcos um destino irrecusável: ser umas das maiores intérpretes do Brasil. Verso, prosa e canção em sintonia, em alguns momentos que a sua própria voz constrói harmonia e melodia.
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Bethânia ratifica um jeito especial de decodificar trechos de poesias com canções que tomam em sua voz uma nova forma e adquirem um outro sentido.
A peculiaridade da interpretação de Bethânia propiciou a Rafael Andrade investigar em sua dissertação de mestrado na UFMG como Bethânia (re) cria um gênero discursivo ao unir canções e poemas.
Com Bethânia, a palavra escrita e falada parece mesmo adquirir uma potência que ultrapassa a música e os livros.
Nada de genialidade, ao contrário, tamanha a humildade da Maricotinha que captou a melodia dos versos de João Cabral, a dramaticidade da prosa de Clarice Lispector, a capacidade comunicativa de Guimarães e, com isso, construiu um estilo singular, híbrido entre o teatro e a música.
A valorização da cultura popular e da identidade nacional, sem dúvida, é um elemento indissociável de sua obra
O resgate do samba do Recôncavo, do candomblé, dos festejos católicos, do profano carnaval, o miúdo do sertão e a força dos povos indígenas assumem, com o fôlego que lhe é peculiar, parte destacada do sentido de sua obra.
Basta qualquer aproximação com os clássicos “Rosa dos ventos” (1971) e “A cena muda” (1974) ou com seus preciosos trabalhos dos anos 2000, como Brasileirinho (2003) e Pirata (2006), para que seja possível encontrar o Brasil plural, pulsante e resistente.
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Brasil que insiste em (re)fundar-se
Com Bethânia é possível (re)encontrar o Brasil que nunca se curvou, o Brasil que insiste em (re)fundar-se numa direção oposta aos sonhos das elites que fantasiam e gozam com verdadeiros delírios da baixa aristocracia.
Não por acaso, em sua primeira apresentação ao vivo transmitida pela internet durante a pandemia, Bethânia, como proferiu Padre Antônio Vieira em São Luiz do Maranhão, no sermão de “Santo Antônio aos peixes”, vocaliza o sentimento indignado do povo brasileiro ao clamar por “vacina, respeito, verdade e misericórdia”.
Todo dia 18 de junho é mais um dia para brindar a existência de Maria Bethânia, a abelha rainha da música brasileira.
*Leonardo Nogueira é mineiro, militante da Consulta Popular e professor na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Fonte: BdF Minas Gerais
Edição: Elis Almeida