Negacionista

Responsável por expurgo de livros chama de “rato” quem critica a cloroquina

Ex-assessor de Roberto Alvim, que deixou a Secretaria da Cultura após fala nazista diz que pandemia é uma fraude

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Marco Frenette e Rodrigo Alvim, demitidos por apologia ao nazismo - Arquivo/Facebook

No dia 12 de maio do ano passado, Marco Frenette escreveu no Twitter que a “hidroxicloroquina destrói não só a ação do vírus, mas o projeto de criminalidade esquerdista”. E acrescentou: “Quem combate o uso desse medicamento é, sem a menor possibilidade de dúvida, um rato”.

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Depois, disse ser preciso “neutralizar” juízes, governadores, prefeitos e donos de emissoras que estão parando e destruindo o país. “É tão difícil assim neutralizar 25 criminosos que ocupam postos chaves?”

Frenette comanda o Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra (CNIRC), na Fundação Palmares. É ele o responsável pelo expurgo de livros históricos e literários, no órgão ligado à Secretaria Especial da Cultura.

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Jornalista e escritor, ele se considera em uma guerra. Ao tentar mudar a história, ele repete — assim como seu antigo chefe na secretaria, o diretor de teatro Roberto Alvim — uma estratégia adotada pelos nazistas.

“Durante trinta anos, homens pretos reduziram o acervo a uma latrina do comunismo”, diz o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, ao enaltecer o trabalho de Frenette.

O jornalista e escritor, branco, foi nomeado em 19 de abril pelo amigo após Alvim fazer um pronunciamento de cunho nazista e ser demitido da secretaria.

Enquanto exerce o cargo no governo Bolsonaro, ele escreve textos negacionistas na revista conservadora Esmeril e dissemina notícias falsas pelo Twitter.

Num post de 18 de maio de 2020, Frenette opina que as orientações do deputado federal Osmar Terra (MDB-RS) são muito mais “honestas, responsáveis e úteis para o Brasil” do que as dos “delinquentes” da Organização Mundial da Saúde (OMS), que ele chama de Organização Mundial para o Socialismo.

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E, em 25 de maio, volta a chamar de criminoso quem é contra a cloroquina. “Um criminoso com diploma de Medicina ou com status de cientista, ou com cargo de governador, continua sendo criminoso”.


 

Masculinidade "imprescindível"

Nascido em 1964, na cidade de Morungaba, no interior de São Paulo, Frenette percorreu alguns veículos da imprensa profissional, como as revistas Caros Amigos, Bravo!, Saber e Raça Brasil, até concluir sua guinada à extrema-direita.

Foi coordenador de edições especiais das editoras Abril e Click e diretor de comunicação da Confederação Brasileira de Golfe, esporte que continua praticando.

Em seus artigos, defende questões como o armamento da população, o uso da hidroxicloroquina, remédio comprovadamente prejudicial no combate à covid-19, e o “orgulho de ser homem”.

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Em ensaio no dia 31 de março, ele afirma que a masculinidade é um “requisito imprescindível” para a construção e a manutenção de qualquer civilização: “Se ainda tivéssemos homens em número suficiente no Brasil, não estaríamos vivendo essa trágica situação de destruição da economia e da cadeia de empregos — e, portanto, de destruição da vida — por conta de um vírus de baixa letalidade”.

E vai além: “o que explica a vitória da fraudemia sob um ponto de vista psicológico e moral é o alto número de ratos contra um número inexpressivo de homens de verdade”.

Confira, abaixo, uma ironia em relação ao lema “Marielle vive”, cunhado por quem cobra punição aos assassinos da vereadora carioca Marielle Franco, do PSOL, executada em março de 2018:
 

O escritor mostra ser um entusiasta do armamento da população, com o argumento de que, “se o pacifismo avança, a masculinidade regride”.

“Assim como um homem deve reduzir a pó os inimigos que querem a destruição de tudo que lhe é sagrado, ele também deve proteger os mais fracos e inocentes, tais como as crianças e as mulheres”.

Em outro artigo, de julho de 2020, sugere que a campanha do desarmamento reforça “uma mítica já consolidada em torno do banditismo”.

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Para Frenette, os dois maiores marcos do avanço obscurantista e do surgimento do “homem palerma” foram a criação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a Semana de Arte Moderna, de 1922.

“A integridade, seja de uma pessoa ou de um povo, se destrói com a inserção cultural e psicológica do relativismo, enquanto se ataca a bússola moral que nos diz o que é certo e o que é errado”, dispara. “Essa foi a essência da Semana de 22 e ainda é a essência dos Partidos Comunistas.”

O supremacismo no governo Bolsonaro é uma lógica, e não apenas uma gafe de algum assessor ou ministro. Assista ao vídeo:



Frenette exalta Osmar Terra e chama membros da OMS de delinquentes 


Nas redes sociais, o negacionismo e a disseminação de notícias falsas são ainda mais evidentes. Nesta sequência ele elogia o deputado Osmar Terra, que prestou depoimento na terça-feira (22), na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no Senado, diante das evidências de que ele comanda um gabinete paralelo da pandemia no governo Bolsonaro, à margem do Ministério da Saúde.

E ainda faz referência indireta aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) — notem o número de pessoas que ele cita — como pessoas que estão “parando e destruindo o país”:

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Em seu depoimento na CPI, o ex-ministro da Cidadania do governo Bolsonaro — e ministro do Desenvolvimento Social e Agrário durante o governo Temer — citou dados falsos, a exemplo do que fez desde o início da pandemia.

Disse, por exemplo, que a estratégia da Suécia de não fazer lockdown foi um sucesso e que o país foi um dos que tiveram menos mortes no mundo. A verdade é que por lá houve explosão de casos e debandada de profissionais de saúde, como mostrou a BBC.
 


Jornalista elogia Osmar Terra, organizador do gabinete paralelo de Bolsonaro. / Reprodução/Twitter


Frenette, como se vê, não fica só na defensiva. Parte para o ataque contra inimigos diversos, ao mesmo tempo em que faz uma defesa incondicional do presidente da República e de seus aliados mais fanáticos.

Aqui ele chega a propor uma Mossad Brasileira, em referência ao serviço secreto de Israel. E chama os antifascistas de “cães”, em mais uma estratégia nazista de rebaixar os oponentes a animais — a serem eliminados.


 

Escritor prevê "limpeza"em outros setores do governo 

Frenette é o responsável por destruir obras do CNIRC que avalia serem parte de uma “escola de delinquência marxista”, em tática parecida com a da Alemanha de 1933.

Naquele ano, poucos meses após a chegada de Adolf Hitler ao poder, integrantes do Partido Nazista protagonizaram, em praças públicas, queimas de livros considerados “impuros” e nocivos”, escritos por intelectuais estrangeiros, judeus e quem se opusesse à política de extrema-direita. Anos depois, pessoas foram queimadas sob a mesma justificativa.


Marco Frenette é o responsável por centro de referência da cultura negra. / Arquivo/Facebook

“Esse material a gente já considera como nosso ex-acervo”, afirma Frenette, em vídeo. “Isso serve de projeto-piloto”, prossegue.

“Pode ser e deve ser aplicado em outras instâncias do governo, para fazer uma limpeza”. A lista inclui escritos que, conforme a fundação, “não formam pessoas devotadas ao trabalho, ao crescimento pessoal e ao respeito ao próximo, mas militantes e revolucionários”.

O relatório de 74 páginas também cita livros “de cunho sexualizador, bandidólatra, revolucionário e de guerrilha”.

Nada muito diferente do que propunha o Ministério da Propaganda de Joseph Goebbels. Em ambos os casos, livros de História, Filosofia, Sociologia e Ciências Políticas foram os mais criticados. Karl Marx, que teve obras levadas à fogueira de Hitler, é o principal alvo de Frenette e Camargo.

Dos 9.565 títulos analisados pela Palmares, 4.400 (46%) foram apontados como de temática negra e 5.165 (54%) como de temática alheia à negra. E, destes primeiros, 28% (2.678 títulos) foram considerados de militância política explícita ou “divulgação marxista”.

“Mais de 400 obras de e sobre Karl Marx no acervo cultural da Palmares!”, escreveu Camargo, no Twitter. “Os presidentes que me antecederam achavam que Marx era um negão”, completou.

“Tudo será excluído. Não somos uma seita comunista!” O expurgo incluiu o Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo, uma edição de 1938 do livro Papéis Avulsos, de Machado de Assis, e obras de Che Guevara, Carlos Marighella e Mao Tsé-Tung.


Sérgio Camargo com dois livros excluídos do acervo. / Reprodução/Twitter

Coalização negra entra com ação contra expurgo de livros

A Coalizão Negra por Direitos, articulação de 200 organizações do movimento negro e antirracista, entrou, no dia 16, com uma ação civil pública em face de Sérgio Camargo e da Fundação Palmares, com o objetivo de proteger os direitos coletivos da população negra brasileira à memória, à honra, à dignidade, e ao seu patrimônio intelectual, histórico e cultural.

O coletivo diz ser necessário evitar retrocessos sociais e danos irreparáveis, “em decorrência de atos de improbidade administrativa por parte do réu”. “É possível afirmar que o direito à memória faz parte do patrimônio artístico, histórico e cultural de um país”, diz trecho.

“É comum ouvir no meio acadêmico que apenas quem conhece o passado é capaz de construir o futuro, ou seja, é preciso que a sociedade garanta o direito à memória coletiva, a fim de assegurar e preservar o direito de continuidade de sua história”.

Na mesma ação, a coalizão cita o anúncio, feito no dia 10 de novembro de 2020, de alteração na conhecida lista de personalidades negras, com vista a torná-la uma lista póstuma.

Protagonistas da luta por igualdade social, como André Rebouças, escritores que retratam as condições sociais e a vida da população negra, como Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, líderes políticos, caso de Marina Silva, e artistas, como Gilberto Gil, Milton Nascimento, Elza Soares e Martinho da Vila, foram excluídos: “Líder quilombola está entre nomes excluídos de lista da Fundação Palmares“.

— É possível notar que o atual presidente da Fundação Palmares age de modo impessoal e desonesto em diversos atos administrativos, movido pela ideologia política pessoal, buscando atingir por meio deles a desvalorização da luta histórica contra o racismo estrutural presente no país até os dias de hoje, devido à abolição inconclusa.

A articulação cita textualmente Marco Frenette, como responsável pela retirada e censura das obras, e lembra do histórico do jornalista, demitido da Secretaria Especial da Cultura justamente após um episódio de apologia ao nazismo.

De acordo com o relatório elaborado por Frenette, não houve julgamentos subjetivos na triagem. “Foram aplicados critérios rigorosamente técnicos e legais, os quais conduziram à identificação e separação do material inadequado”, diz ele, sem apresentar qualquer elemento jurídico que o respalde.

As autoras pedem a tutela de urgência, para proteger o acervo literário, e a proibição de quaisquer atos relativos ao expurgo de obras da biblioteca da Fundação, além da manutenção integral de arquivos referentes a Carlos Marighella, “figura central à memória do movimento negro e história da sociedade brasileira na luta contra a ditadura no país”. Para as organizações, a supressão destes conteúdos caracteriza censura, prática considerada ilegal pela Constituição.