O Brasil figura como um dos países mais homofóbicos do mundo
Por Gabriel Pimentel, Isabela Montilha, Letícia Tokusato e Gilberto M. A. Rodrigues*
Pela segunda vez em seus 25 anos de existência, a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo teve de abrir mão da Avenida Paulista como palco de suas festividades. Graças à ininterrupta crise da covid-19 no Brasil, os meios de comunicação digitais foram responsáveis por sediar, neste mês do orgulho, a ParadaSP Ao Vivo, versão virtual do conhecido evento que contou com mais de oito horas de duração.
Apesar das limitações que o contexto atual impõe em grandes celebrações como essa, a Parada o transformou em ferramenta: além da democratização do evento, que agora pode ser acompanhado por telespectadores de todo o Brasil, a Associação da Parada do Orgulho LGBT em São Paulo (APOLGBT-SP) fez de seu principal evento uma plataforma de conscientização poderosíssima.
Por meio do tema de 2021 HIV/AIDS: Ame + Cuide + Viva +, o evento promoveu com extrema sensibilidade o combate ao estigma de pessoas vivendo com HIV e AIDS, informações sobre profilaxia e a celebração da vida e da união, de pessoas LGBTQIA+ e da sociedade brasileira.
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Apoiada pelo Programa Conjunto da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre HIV/AIDS (UNAIDS) e por diversas ONGs com a mesma temática, a ParadaSP resgatou um importante estudo do Programa: o Estigma em Relação às Pessoas Vivendo com HIV/AIDS (2019), para junto a médicos infectologistas e pessoas soropositivas tratar sobre os pífios avanços da sociedade brasileira quanto ao assunto.
Segundo o estudo, que detecta e mede a mudança de tendências discriminatórias relacionadas com soropositividade em sete capitais brasileiras - Manaus (AM), Brasília (DF), Porto Alegre (RS), Salvador (BA), Recife (PE), São Paulo (SP), e Rio de Janeiro (RJ) -, a experiência em se revelar soropositivo para brasileiros vivendo com HIV ou AIDS tende a ser avaliada como ruim para a maioria (54,3%).
Este dado pode ser relacionado diretamente com o estigma construído sobre os entrevistados, e é apontado como um dos fatores que fundamentam o “sigilo da condição sorológica” destes.
O estudo traz também uma série de dados sobre a experiência pessoal dos entrevistados com a discriminação. Dentre todos os participantes do estudo, 64,1% já sofreu alguma forma de discriminação sobre sua soropositividade. Destes, 41% afirmam terem sido discriminados por familiares, 25,3% afirmam ter sofrido assédio verbal, 6% afirmam ter sofrido agressões físicas e 19,6% afirmam ter perdido suas fontes de renda por serem alguém vivendo com HIV ou AIDS.
Especificamente sobre a população queer, o estudo da UNAIDS é uma ferramenta valiosa para demonstrar que a discriminação acontece diferentemente a depender dos marcadores sociais que as pessoas trazem consigo. Dentre todos os entrevistados que se identificam como homens, 78,8% não se encaixam na heterocisnormatividade; dentre as entrevistadas que se identificam como mulheres, este total é de 8%.
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Entretanto, os índices de discriminação e estigmatização são consideravelmente mais comuns entre eles do que entre os entrevistados heterocisnormativos: 74,9% desses homens e 62,3% das mulheres já sofreram alguma forma de discriminação em virtude de suas orientações sexuais.
Tais discriminações incluem rejeição por familiares e amigos, comentários vexatórios, agressões verbais e físicas, entre outros. Portanto, é evidente que, em um país como o Brasil, pessoas LGBTQIA+ são expostas a violências das mais diversas formas, que são ainda mais agravadas por serem afetados pelo HIV e a AIDS.
Ano de 2020 registra queda de 28% nas mortes LGBTI+, mas não há o que comemorar
Segundo o relatório do “Observatório das Mortes Violentas de LGBTI+ No Brasil – 2020” realizado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) e pelo Acontece Arte e Política LGBT+, de Florianópolis, 237 mortes foram registradas no Brasil em 2020 pela LGBTIfobia. Desse total, 224 são homicídios (94,5%) e 13 são suicídios (5,5%).
O Grupo Gay da Bahia, há mais de 40 anos coleta e divulga informações sobre a violência contra a comunidade LGBTI+ no Brasil com seu relatório anual. Segundo os pesquisadores, a LGBTfobia surge da quebra da normatividade sistêmica da sociedade, na qual as diferentes formas de expressões sexuais e afetivas perturbam o padrão heterocisnormativo.
No ano de 1990, 194 pessoas foram assassinadas vítimas da LGBTfobia. Após 20 anos, esse número cresceu aproximadamente 60%, registrando 260 mortes. Mas foi em 2017 que foi registrado o maior número, com 445 mortes de LBGTI+. Acompanhando a tendência de redução de mortes em 2019, o ano passado registrou uma queda de 28% na taxa de mortalidade.
Entretanto, esses dados não trazem motivos “factíveis para se comemorar”. A redução no número de mortes não é justificada pela implementação de políticas públicas voltadas para a inserção e proteção da comunidade LGBTI+, mas sim pela oscilação numérica “imponderável” e pela grande subnotificação identificada durante as pesquisas. O desmonte das políticas de incentivo à denúncia contra LGBTfobia também contribuíram com a falta de informação para a pesquisa.
Efeitos da pandemia e do negacionismo na subnotificação de mortes LGBTI+
A pandemia foi um dos fatores que mais contribuiu para a elevada subnotificação de casos, aponta o relatório do Grupo Gay da Bahia. A intensificação do isolamento de pessoas LGBTI+ e o fechamento de atividades não essenciais, como boates, bares e locais de cunho cultural, levaram à diminuição do convívio social externo da comunidade LGBTI+, que já tinha espaços de socialização limitados devido à discriminação sofrida nos demais ambientes sociais. Junto à ausência de dados oficiais, a dificuldade de identificação dos casos que ocorrem em ambientes fechados auxiliou na queda dos registros.
O professor e antropólogo Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia, aponta que o discurso homofóbico do presidente Jair Bolsonaro e as constantes ameaças à comunidade LGBTI+ por parte de seus seguidores nas redes sociais levou ao acautelamento de membros da comunidade.
O comportamento preventivo observado, que decorre da tentativa de evitar situações de risco e se tornar uma vítima em potencial, intensificou-se na pandemia e, de forma semelhante ao que ocorreu durante a epidemia de AIDS, a população LGBTI+ vem adotando novas estratégias de sobrevivência e se resguardando, o que, segundo Mott, pode ter contribuído para a diminuição dos casos de mortes.
O relatório ainda destaca a dificuldade de registro dos suicídios ocorridos entre a população LGBTI+. A subnotificação dos casos de suicídio é apontada pelo relatório como superior ao de casos de homicídio. Isso se deve principalmente a três estigmas associados a esses dados: a homossexualidade, o gênero diverso e a morte intencional.
Por fim, o mestrando Alexandre Bogas, coordenador do Acontece LGBTI+, ressalta o negacionismo do governo federal na condução da pandemia. Ele questiona quantas vidas LGBTI+ foram perdidas pela incompetência da gestão do atual governo e quantas poderiam ter sido evitadas caso tivessem sido adotadas as medidas corretas.
A reflexão sobre a ausência de políticas públicas no combate à epidemia da violência contra a população LGBTI+ e o já mencionado descaso e falta de incentivo a denúncia aos casos de LGBTcídio no Brasil é um ponto fortemente questionado pelas autoridades internacionais e revela a face de um país que figura como um dos mais homofóbicos do mundo.
*Pesquisadores do Observatório de Política Externa Brasileira, da Universidade Federal do ABC (UFABC).
**O OPEB (Observatório de Política Externa Brasileira) é um núcleo de professores e estudantes de Relações Internacionais da UFABC que analisa de forma crítica a nova inserção internacional brasileira, a partir de 2019. Leia outras colunas.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rebeca Cavalcante