O que queremos é uma justiça social para todos. Há braços na luta!
Por Eder Fernandes Monica, Bruna Benevides, Felipe Carvalho e Carla Appollinario de Castro*
Quando falamos sobre políticas públicas para a população LGBTQIA+, há poucas pesquisas governamentais sólidas que nos apresentem a demografia das orientações sexuais e das identidades de gênero. Essas pesquisas permitiriam não apenas conhecer a realidade dessa parcela da população, mas também orientar a formulação de políticas específicas.
Isso tem feito com que o assunto continue sendo tratado como um tabu, algo restrito ao campo da moral da sociedade ou debatido apenas por determinados setores envolvidos diretamente nessa luta. Este problema permanece até os dias atuais, na medida em que o principal instrumento de captação das informações acerca da realidade brasileira, o Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), inobstante a incorporação de diversas dimensões populacionais ao longo de sua história, não chegou a dedicar a atenção necessária à comunidade LGBTQIA+.
Os diversos desafios que marcam as minorias sexuais são pouco conhecidos, e a tarefa de implantação de políticas voltadas às pessoas que compõem esse grupo social não foram institucionalizados devidamente como uma política de Estado. O que constatamos em diversas pesquisas é que esse grupo é alvo de um processo sistêmico de vulnerabilização e está subordinado a diversas formas de violência e de exclusão social.
::Orgulho é defender a vida da população LGBTI+::
De acordo com um relatório produzido em 2017 pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), 420 lésbicas, gays, bissexuais e transexuais morreram no Brasil vítimas da homolesbotransfobia. Foram 320 homicídios e 100 suicídios. O relatório identificou que esse número foi recorde nos 39 anos desde que o GGB iniciou suas pesquisas sobre essa população.
Em síntese, a cada 20 horas uma pessoa LGBTQIA+ foi assassinada ou se suicidou em 2017, colocando o Brasil como um dos campeões mundiais de crimes contra as minorias sexuais e de gênero. Os dados apontam que são assassinados mais homossexuais e transexuais no Brasil do que nos 13 países do Oriente e África, nos quais há pena de morte contra a população LGBTQIA+. E o mais preocupante é que esses índices têm crescido expressivamente nas últimas duas décadas.
Outra instituição que se dedica a dar visibilidade e a chamar a atenção para a urgente adoção de políticas efetivas voltadas à preservação da vida e inclusão social da comunidade travestis e pessoas trans é a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). A Associação coletou dados de 184 registros, nos quais foram constatados o assassinato de 175 pessoas trans/travestis em 2020, sendo este o ano como o mais violento desde que a pesquisa teve início, em 2017.
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O dado mais preocupante mostra que, deste total, apenas 11 casos tiveram os suspeitos identificados - isto é, 8% dos casos - e que somente 7% foram presos. Isso comprova a ausência de um tratamento legal adequado e a falta da devida investigação quando se trata de assassinatos de pessoas trans.
A ANTRA também destacou que em 2020 o Brasil foi o país que mais notificou assassinatos de pessoas trans do mundo, o que nos colocou no primeiro lugar do ranking mundial feito pela Transgender Europe em relação ao assassinato de pessoas trans.
Essa ausência de dados governamentais oficiais cria um cenário de subnotificação, e essa omissão não tem levado o Estado a pensar em ações para solucionar esses problemas sociais. Assim, seja por ação ou por omissão, o Brasil viola, diariamente, os tratados internacionais em torno da proteção legal das pessoas LGBTQIA+, e quando olhamos a intersecção de classe, raça, gênero e localização social, as violações se tornam ainda mais intensas.
Muitas vezes, a dificuldade do registro das ocorrências se dá devido ao fato de que os órgãos de segurança pública têm tido posturas hostis no atendimento e acolhimento de denúncias feitas pela população LGBTQIA+. Há ainda a constante negativa da aplicação do entendimento das decisões do Supremo Tribunal Federal, que vêm aplicando uma compreensão progressista em relação à aplicabilidade dos direitos fundamentais às minorias sexuais, na ausência de uma legislação adequada ao tratamento desses casos.
Isso nos leva a um cenário de desestímulo à denúncia dos crimes cometidos, à falta de respeito e à negação do uso do nome social das pessoas trans ou, ainda, à não observação do princípio da autodeterminação identitária nos casos relacionados à identidade de gênero. Essas questões se agravam quando lidamos com pessoas moradoras da periferia dos centros urbanos, das cidades do interior e zonas rurais, ou as que se encontram em qualquer outra situação de marginalização, tanto econômica, quanto socialmente.
É nesse cenário complexo, multifacetado e repleto de desafios, que alia diversas formas de violência - física, psíquica e social – e de exclusão social, que nasceu o projeto da primeira Clínica Jurídica LGBTQIA+ no Brasil. Apesar de diversas associações e ONGs já oferecerem atendimento jurídico à comunidade LGBTQIA+, suas particularidades são marcadas por vulnerabilidades e formas de exclusão social específicas, conforme apontamos nos dados das organizações civis.
A novidade da Clínica está no fato de ser o resultado da conjugação de esforços entre a sociedade civil organizada através do Grupo Diversidade Niterói (GDN) e a Universidade Federal Fluminense, que idealizaram o projeto por intermédio de um edital da Prefeitura de Niterói para sua consolidação, e por se propor a realizar um atendimento mais sensível às questões dessa população, não se restringindo apenas ao seu aspecto jurídico.
O principal foco de atuação da Clínica é a assessoria jurídica prestada por estagiários da Universidade. Nossa atuação tem um caráter transdisciplinar e nos permite um tratamento mais adequado às necessidades da população que atendemos. Primeiro, porque acolhemos e buscamos soluções (judiciais e extrajudiciais) para as demandas e para os conflitos. Segundo, porque a partir dos casos acolhidos, ensinamos os estudantes a prestação de serviços à comunidade.
Terceiro, porque com o conhecimento dos principais eixos temáticos materializados pelos casos apresentados e com a experiência do atendimento e do ensino, estamos revertendo esse acúmulo teórico e prático para a formação da comunidade interna e externa da Universidade, por meio da oferta de outras atividades de extensão, para além do atendimento jurídico, tais como: curso de formação de defensores LGBTQIA+ populares, oficina de artigos e projetos de pesquisa com vistas à garantia da continuidade da formação acadêmica e de sensibilização e capacitação das empresas para contratação e respeito à diversidade no mercado formal de trabalho, eventos acadêmicos, divulgação de materiais didáticos de acesso a direitos, dentre outras ações.
Nesse sentido, a estrela à qual nos referimos no título não é a Clínica Jurídica propriamente dita, mas é a chama das lutas que ainda movem os nossos moinhos de sonhos na esperança de que um dia a luta pela normalização, pela despatologização, pela desgenitalização, pela visibilidade, pela inclusão social e pela cidadania LGBTQIA+ não faça mais o menor sentido. O que queremos é uma justiça social para todos.
Há braços na luta!
*Os autores são pesquisadores e militantes, membro do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais. Leia outros textos.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rebeca Cavalcante