Parece que a sede de vingança e espetáculo das instituições superaram a sede de Justiça
Chega ao fim a busca de mais de vinte dias por Lázaro Barbosa. O final da história, embora as autoridades apresentassem uma narrativa de cumprimento da lei e entrega do cidadão vivo, foi o mais previsível pelo modus operandi da polícia brasileira nesses casos, a execução da pessoa perseguida.
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A partir da morte de Lázaro, nos cabe, como estudiosos do direito e das ciências sociais, trazer alguns pontos de reflexão sobre os mecanismos de funcionamento das instituições, sobretudo, daquelas relacionadas às Forças de Segurança Pública do país. Destaquemos quatro pontos deste episódio:
Operação cinematográfica para a sociedade do espetáculo
Na sociedade do espetáculo, onde cada ato é registrado por uma câmera de celular, não garantir o holofote de uma operação equivale ao seu insucesso formal. Operação que se pauta por sigilo e rigor da apuração e publicização dos fatos seria no mínimo, “cringe”.
A função da maquiagem é esconder alguma imperfeição ou insatisfação com o corpo maquiado. Da mesma forma, pintar uma ação policial de operação cinematográfica oculta uma possível fragilidade e ineficiência na atuação das forças de segurança pública no Brasil.
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A performance que prestigia a demonstração de força e exposição na opinião pública frente a inteligência gera situações anacrônicas como essa em que, aproximadamente, 300 policiais treinados na região, armados, com veículos, planejamento, munição são mobilizados para prender um homem e só conseguem o entregar morto.
O que o enredo da história não conta para os telespectadores, é que para realizar a operação, como não havia uma articulação de inteligência entre as polícias civis e militares, de Goiás e do DF, além de ações atrapalhadas, outras violações à direitos aconteciam durante as operações.
Casos mais emblemáticos foram os ocorridos nas sedes de religiões de matriz africanas da região. De acordo com denúncias, algumas formalizadas, mais de 12 casas religiosas foram invadidas, depredadas, algumas sem mandatos, profanadas e desrespeitadas, mais de uma vez, já que as forças de segurança, nem sempre se comunicavam. Uma prática explícita de racismo religioso das instituições, sob a justificativa de buscar Lázaro.
A figura do vilão e do herói
Nosso imaginário foi construído permeado pela noção do bem e do mal. Como se o ser humano, em sua complexidade, não detivesse ambos comportamentos dentro de si, a depender das situações.
No entanto, uma história é mais fácil de ser vendida, quando se demoniza um personagem, ou se cria a imagem dele como um ser com super poderes do mal, pois se afasta a racionalidade e humanidade para analisar o caso, e se age com o “fígado”.
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Tratá-lo como monstro, por pior que tenha sido suas condutas, dificulta entendermos o que poderia estar por trás do monstro, e assim sua eliminação se justificaria. Olhar a história de maneira maniqueísta (enxergando só a figura como amigo/inimigo ou herói/vilão) nos cega para também entendermos os contextos e enredos envolvidos.
O primeiro deles é o ganho de capital político, para usar o conhecido conceito de Bourdieu. Esse tipo de ação policial midiática é tudo o que uma classe política incompetente e desprestigiada deseja. Uma vez, que o vilão da história já está concebido, os políticos se digladiam pelo posto de herói.
Esse prestígio poderá garantir sua vitória nas eleições seguintes, mesmo que esse político nunca tenha inovado na estratégia de investimento da política de segurança pública da sua região.
O uso desse capital político pela casta mais reacionária da sociedade cria uma narrativa que ilude o cidadão comum e, continua a alimentar o surgimento de outra oportunidade para ser herói, em regra, criminalizando condutas.
Se Lázaro fosse tratado como mero criminoso grave, como demonstrou ser, mas fosse priorizada sua captura com vida, o que não seria um absurdo em se tratando de centenas de policiais diante de uma pessoa armada, mas com limitação de munição, em provável estado de sede, fome e cansaço, ele poderia, inclusive, confessar outros crimes desconhecidos das autoridades?
Seria absurdo pensar que Lázaro poderia ter agido a mando de alguém?
Os graves crimes cometidos por Lázaro deveriam ser melhor esclarecidos, pois ainda afetarão a vida de muitas pessoas. Para isso, mantê-lo com vida teria sido importante.
As histórias mal ou não contadas
Na história contada sobre a perseguição à Lázaro, faltaram pontuar alguns elementos desse enredo. O primeiro deles é contextualizar o panorama agrário no Distrito Federal e seu entorno, passando por Goiás.
Trata-se de região de intensa disputa de terras. O poder econômico ali perpassa por esses conflitos em área extremamente valorizada.
Assim, é fundamental entender qual papel cumprido pela única pessoa, até agora, que se tem indícios reais de ter ajudado Lázaro, o fazendeiro Elmi Caetano.
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Pouco se sabe sobre as razões de tê-lo abrigado e alimentado durante esse tempo, mas pelo que foi apurado, havia um interesse do fazendeiro em adquirir terras de pequenos proprietários amedrontados na região por um preço baixo. Seria essa uma postura isolada deste fazendeiro?
Poderia estar Lázaro agindo a mando de alguém como jagunço, para amedrontar pequenos produtores em uma região de disputa de terras? Quantas e que tipo de pessoas o ajudou nesses vinte dias? Algumas dentre tantas questões que ficarão no ar.
A falsa sensação de segurança com o extermínio do inimigo
Quando alguém que é encaixado nesse roteiro de filme morre, cria-se, imediatamente, uma falsa sensação de segurança, ou melhor, do funcionamento das instituições.
Quem não se lembra do ex-governador do Rio, Wilson Witzel saltando do helicóptero, após a execução do rapaz de 20 anos que sequestrou um ônibus na ponte Rio-Niterói? De lá pra cá, essa ação não garantiu a melhora da segurança no Rio, ao contrário, a violência se intensificou.
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Enquanto, as instituições se concentravam com uma pessoa em Goiás, o Brasil da última semana conviveu com outros vários casos repugnantes, que não receberam tanto holofote, como o exemplo da mulher trans queimada viva em Recife ou da absolvição (pela Justiça Militar) de PM de São Paulo que estuprou uma jovem em viatura.
Será que as instituições estão realmente saudáveis para a construção de um ambiente democrático?
Algumas perguntas dificilmente serão respondidas, mas a maior delas é: “a quem interessaria Lázaro vivo ou morto”?
Em 1962, Clarice Lispector escreveu uma crônica de caso semelhante ao vivenciado atualmente. Em determinado trecho ela diz o seguinte, sobre a execução do bandido conhecido por mineirinho:
“Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”.
Lázaro foi executado com exatos 38 tiros. Parece que a sede de vingança e espetáculo das instituições superaram a sede de Justiça. As principais perguntas continuarão sem respostas e as forças de segurança continuarão a “enxugar gelo”, talvez, porque sabem que este é o seu papel institucional.
*Gladstone Leonel Júnior é Professor Adjunto da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense. Doutor e Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Brasília. Realizou o estágio doutoral na Facultat de Dret, Universitat de Valencia, Espanha. Membro da Secretaria Nacional do IPDMS – Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais. Leia outros textos.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo