A regulação das gorduras trans industriais entra em vigor nesta quinta-feira (1) em todo o país. Mas, se você pensou que, com isso, estaria finalmente a salvo dos produtos que usam e abusam deste aditivo que todos os anos mata 500 mil pessoas no mundo é porque não contava com a astúcia da Anvisa.
A poucas semanas da implementação da norma, a agência reguladora brasileira deu um jeitinho de atender aos interesses da indústria de alimentos e óleos refinados, acendendo o sinal verde para que produtos com níveis perigosos de gordura trans fabricados até esta quarta (30) possam ser comercializados até 31 de dezembro de 2022.
Com isso, as empresas não precisarão recolher bilhões de itens das prateleiras. A indústria sai ganhando, e a população paga a fatura.
“A Anvisa acabou frustrando as expectativas daqueles mais conscientes sobre o tema, que imaginavam que estariam efetivamente menos expostos aos produtos com gordura trans a partir de julho”, lamenta, em nota, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
Para que não reste nenhuma dúvida de para onde se voltam as preocupações da diretoria colegiada da agência, basta examinar o que se disse na reunião do dia 26 de maio, quando a decisão foi tomada.
Nas palavras da diretora Meiruze Sousa Freitas, o libera geral evita “danos imediatos e de difícil reparação” aos… fabricantes de alimentos.
Já a diretora Cristiane Rose Jourdan Gomes demonstrou que está mais atenta à questão do “escoamento dos produtos e embalagens” do que com a saúde dos consumidores desses produtos e embalagens. Ela também recorreu ao lugar comum da “segurança jurídica” para elogiar a liberação.
Adepto da modalidade discursiva do cinismo radical, Antonio Barra Torres, diretor-presidente da Anvisa, comemorou o fato de a agência não se esquecer da “alimentação do cidadão brasileiro” mesmo estando às voltas com as muitas decisões relacionadas à pandemia.
“É lógico que um organismo bem alimentado, bem nutrido tem condições de imunidade superiores e, portanto, condições de se defender diante de infecções virais, bacterianas ou de qualquer outra natureza”, afirmou.
Fica difícil entender como esticar em mais um ano e meio a venda de produtos feitos à base de um aditivo que aumenta o risco de doença coronariana em 21%, engrossando o cordão das pessoas com comorbidades para a covid-19, pode contribuir para isso.
No entendimento da Organização Mundial de Saúde (OMS), a necessidade de proteger a população de doenças crônicas não transmissíveis redobrou com a pandemia, e os esforços pela eliminação das gorduras trans industriais deveriam ser acelerados.
Quem ouve a diretoria da Anvisa até pensa que os fabricantes foram pegos de surpresa pela regulação das gorduras trans no Brasil. Não é o caso.
As regras de eliminação foram aprovadas pela agência em dezembro de 2019. A resolução da diretoria colegiada (RDC) 332 foi antecedida por um processo regulatório que durou nada menos do que 20 meses e envolveu tanto representações de fabricantes quanto de consumidores e pesquisadores.
Usando o argumento da urgência diante do grave problema de saúde pública, entidades como o Conselho Federal de Nutricionistas (CFN) defendiam que as regras começassem a valer doze meses depois da aprovação, ou seja, em janeiro deste ano.
Países como África do Sul, Equador e Tailândia deram um prazo de adaptação ainda menor para a indústria, de seis meses.
A Anvisa, no entanto, garantiu uma generosa janela de 18 meses de transição.
O passivo histórico brasileiro de 18 anos em relação às gorduras trans, detalhado pelo Joio nesta reportagem, não foi capaz de constranger o alto comando da Anvisa.
É no mínimo curioso que a Anvisa tenha demorado quase um ano e meio para perceber qualquer falha em sua norma, e tomado essa decisão nas vésperas da sua implementação.
(Idec)
A toque de caixa
O processo que levou à autorização da venda de produtos com níveis perigosos de gorduras trans até o fim do ano que vem foi aberto no dia 10 de maio pela Gerência de Padrões e Regulação de Alimentos (Gepar), comandada por Tiago Lanius Rauber. Apenas 16 dias depois, a diretoria colegiada da Anvisa já votava a favor da aprovação. A decisão foi unânime.
Em nenhum momento a sociedade civil pôde opinar: o processo foi pautado com dispensa excepcional de análise de impacto regulatório e consulta pública, “em função do enfrentamento de urgência”.
Para o Idec, “é no mínimo curioso que a Anvisa tenha demorado quase um ano e meio para perceber qualquer falha em sua norma, e tomado essa decisão nas vésperas da sua implementação”.
Em 9 de junho, saiu no Diário Oficial da União outra resolução, de número 514, alterando os dois artigos da RDC 332 que definiam que a partir de 1º de julho de 2021 óleos refinados e alimentos não poderiam ter mais do que 2% de gorduras trans industriais em relação ao total de gordura.
A regra dos 2%
Para entender o que isso significa é preciso olhar o paradigma que dita as políticas regulatórias nesse tema atualmente.
Desde 2003, a OMS preconiza que as gorduras trans devem representar menos de 1% das calorias que ingerimos diariamente. Em 2018, o organismo lançou um pacote de ações para orientar os governos a eliminar as gorduras trans industriais do sistema alimentar.
Conhecido pelo acrônimo Replace, o pacote recomenda dois caminhos regulatórios, considerados como melhores práticas nesse sentido.
O primeiro é o da limitação, e estabelece a regra dos 2%: alimentos e óleos comestíveis não podem exceder 2 gramas de gorduras trans industriais por 100 gramas de gordura total. Esse percentual muito baixinho seria seguro, uma “eliminação virtual”, como se lê em diversos documentos do organismo.
Foi o caminho seguido pela Dinamarca, primeiro país a regular as gorduras trans, em 2003, e também é o modelo adotado em mais de 30 países, entre eles Chile e Uruguai.
Até hoje, é a abordagem considerada mais abrangente por especialistas porque também mira as gorduras trans produzidas pelo refino e aquecimento de óleos. Segundo a OMS, algumas práticas de refino criam um percentual de até 4% de gorduras trans em relação ao total de gordura, e a regra consegue atingir esse braço da cadeia produtiva.
O segundo caminho regulatório proíbe a utilização de óleos parcialmente hidrogenados. Na avaliação de grupos da sociedade civil que trabalham com o tema, é uma solução que vai “direto ao ponto”, pois leva em conta a principal fonte de gordura trans industrial nos alimentos.
De acordo com a OMS, os óleos parcialmente hidrogenados são responsáveis por 25% ou até 45% de gordura trans diante do percentual de gordura total. O banimento foi adotado por três países: Canadá, Estados Unidos e Tailândia.
Nesse sentido, a regulação brasileira saiu diferente de todas as outras por adotar as duas abordagens.
Nesta quinta-feira (1) começa a valer a regra dos 2% – agora restrita aos produtos que serão fabricados daqui para frente, deixando de lado os bilhões de pacotes de ultraprocessados já produzidos e disponíveis nas prateleiras.
Essa regra vai até janeiro de 2023, quando o Brasil adota o banimento dos óleos parcialmente hidrogenados. No caso dos óleos refinados, a regra dos 2% será permanente.
Melhor para a fiscalização
Responsável por apresentar os argumentos que sustentaram o aval à comercialização dos produtos com trans já fabricados, a diretora Meiruze Sousa Freitas precisou dar aquela distorcida básica no paradigma regulatório aceito internacionalmente.
Na justificativa do voto, ela afirma que a liberação dessas vendas “não prejudicará a efetividade” da RDC 332 e “não trará riscos significativos à saúde da população brasileira”. Pois é…
E foi além: segundo Meiruze, a regra dos 2% seria de “caráter transitório e destinado a auxiliar na redução gradual de gorduras trans industriais nos alimentos, antecedendo a proibição no uso de óleos e gorduras parcialmente hidrogenadas” – esta sim, continua ela, “a medida de maior efetividade” para reduzir o consumo de gorduras trans.
Ao jogar duas regulações padrão-ouro uma contra a outra, a diretora da Anvisa induz a população brasileira ao erro.
A conclusão de que o banimento é mais efetivo do que a regra dos 2% parece ser baseada em um modelo bastante conservador do Ministério da Saúde que projeta quantas mortes seriam evitadas e adiadas no período que vai de 2022 a 2030 no Brasil.
Segundo ele, a regra dos 2% poderia prevenir ou adiar 2.453 mortes no período – 125 a menos do que o banimento, que nesse cálculo poderia prevenir ou adiar 2.578 mortes.
Na própria análise de impacto regulatório feita pela Anvisa em julho de 2019, citada por Meiruze no voto, foram levantadas diversas vantagens da regra dos 2% em relação ao banimento. Uma delas particularmente importante: o menor custo para o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, “uma vez que a medida pode ser fiscalizada exclusivamente por análise laboratorial”.
No Brasil, a fiscalização de alimentos é realizada pelas três esferas de governo, de forma integrada e descentralizada, com responsabilidades compartilhadas.
Para isso, foi criado um Sistema Nacional de Vigilância Sanitária que, além dos laboratórios centrais de saúde pública, mais conhecidos como “Lacens”, é composto pelos órgãos de vigilância sanitária dos estados e municípios. Cabe a eles coletar amostras de produtos e alimentos e, se for o caso, demandar análises dos laboratórios.
“A gente considera que essa é uma fiscalização mais fácil do que as demais. Por que eu digo isso? Porque quando a gente proíbe só a utilização de óleos e gorduras parcialmente hidrogenadas é impossível, no nosso entendimento, fazer análise simplesmente por métodos, precisaria fazer também uma avaliação do processo produtivo, o que torna a fiscalização mais complexa porque você pode ter gorduras trans não oriundas dos óleos parcialmente hidrogenados.”
A explicação é de Tiago Lanius Rauber e foi dada em 2019, durante audiência pública promovida na Câmara dos Deputados sobre a regulação, na qual ele destacou os “efeitos deletérios” das gorduras trans industriais sobre a saúde cardiovascular.
Detalhe: trata-se do mesmo gerente da Anvisa que abriu o processo-relâmpago que garantiu a permanência dos produtos com trans nas prateleiras.
A pressa foi tanta que a Anvisa sequer avisou os Lacens. Essa coordenação seria importante, já que, com a liberação da venda, se criam complicadores a mais: não só os fiscais vão precisar ficar atentos às datas de fabricação dos produtos como a vigilância sanitária deveria fiscalizar as fábricas para garantir que as empresas não lancem mão da brecha para usar embalagens antigas para produtos fabricados depois de 30 de junho.
A Fundação Ezequiel Dias (Funed), laboratório mineiro que se organiza para implantar a análise de gorduras trans em alimentos, foi avisada pelo Joio sobre a mudança. Respondeu que “deverá haver um critério maior dos fiscais que realizam a coleta das amostras, no sentido de se atentarem para a data de fabricação dos produtos”.
Hoje, só um laboratório faz as análises
A OMS recomenda um tripé de fiscalização, que inclui testes laboratoriais de amostras de produtos, análise de rótulos e inspeções que podem se dar tanto em fábricas, de onde saem as matérias-primas (óleos refinados e óleos parcialmente hidrogenados), a restaurantes e pontos de venda em geral.
No Brasil, algumas das pesquisas mais antigas sobre gordura trans mostram que nem sempre a informação do rótulo é verdadeira. Nesse sentido, a análise laboratorial é um tira-teima importante.
Mas, até hoje, apenas um laboratório público faz esse tipo de análise: o Instituto Adolfo Lutz (IAL), vinculado ao governo de São Paulo.
O Joio fez um levantamento junto a todos os Lacens. Existem dois laboratórios vinculados ao governo federal: o Instituto Evandro Chagas, ligado ao Ministério da Saúde, e o Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS), da Fiocruz. Nenhum deles faz a análise de gordura trans. Questionados sobre planos para implantação, não responderam.
Também entramos em contato com todas as secretarias de saúde do país. Das 27 unidades da federação, 15 responderam:
Dificuldades na implantação
No Brasil, a análise laboratorial sobre o teor de gordura trans nos alimentos é feita através da cromatografia gasosa – um método reconhecido pela OMS e que também serve para o controle de outras substâncias nocivas à saúde, como os resíduos de agrotóxicos.
Longe daquela imagem de um pesquisador debruçado sobre o microscópio que a maioria de nós tem quando pensa em análise laboratorial, esse método exige uma certa infraestrutura física.
“O cromatógrafo a gás é um equipamento composto por um injetor e um forno onde é instalada uma coluna de cem metros capaz de separar pelo menos 40 tipos diferentes de ácidos graxos, dentre os quais os ácidos graxos trans, e um sistema de detecção que transforma a saída de cada componente em um sinal elétrico que é amplificado e registrado como um pico no sistema controlado por um computador”, explica Sabria Aued, pesquisadora aposentada do Instituto Adolfo Lutz e responsável pela implementação da técnica no laboratório.
Além disso – como o próprio nome diz –, o equipamento funciona graças à utilização de gases como hidrogênio, o que requer também adequações na infraestrutura física e, claro, a compra do insumo.
Problemas de infraestrutura, custos e treinamento de profissionais foram mencionados pelos estados da Bahia e do Rio Grande do Norte como razões para não implantar a análise.
Os estados que estão mais avançados nesse processo são Minas Gerais e Tocantins.
A Fundação Ezequiel Dias já está adquirindo insumos para a execução da análise. No Tocantins, a Secretaria Estadual de Saúde respondeu que, além disso, está capacitando a equipe técnica.
A crise sanitária atrasou os planos no Pará. Segundo a Secretaria de Saúde, o processo de implantação chegou a começar em 2020, mas precisou ser paralisado por conta da pandemia. Mesmo diante da instabilidade do quadro epidemiológico, a pasta informou que o projeto está sendo retomado.
Em Goiás, o Laboratório Central de Saúde Pública Dr. Giovanni Cysneiros também está se preparando para fazer a análise, mas depende ainda da compra do cromatógrafo.
Ao Joio, muitos estados responderam que “nunca houve demanda” por esse tipo de análise – o que reflete a omissão das autoridades sanitárias em pautar o tema.
Na rede Lacen, os estados com chamada “baixa demanda” podem solicitar apoio a outros laboratórios, que são referência em algum tipo de análise.
Esse é o plano da Bahia, que informou que está discutindo um fluxo de referência de amostras para laboratórios públicos de outros estados.
Porém, o que há de concreto até o momento é que o laboratório de referência no Brasil para esse tipo de análise continua sendo um só: o Instituto Adolfo Lutz. E lá, além da pressão da pandemia, uma reestruturação administrativa fundiu oito seções técnicas em 2010, inclusive a responsável pelas análises de gorduras trans.