Em sua edição de 22 de agosto de 1981, o jornal A Tribuna, de Santos, reportou: “Praia Grande, às 15:45, quase seis horas após o horário previsto, Hugo Perez, membro da Executiva Nacional e presidente da Federação dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado de São Paulo, pegou o microfone e disse que naquele momento se iniciava uma histórica Conferência Nacional da Classe Trabalhadora.
Quase 6.000 pessoas começaram a aplaudir e gritar slogans, em grande parte pregando a união de toda a classe. Começava ali a primeira sessão plenária da Conclat”.
O trecho do jornal anuncia o início da Conferência Nacional da Classe Trabalhadora, ou Conclat, um grande encontro de trabalhadores de todo o Brasil, ainda sob a ditadura militar, há 40 anos.
Trata-se de nada menos que a segunda efeméride mais relevante para o movimento sindical, atrás apenas de quando se estabeleceu sua estrutura organizativa na década de 1930, durante o governo de Getúlio Vargas.
A Conferência, realizada nos dias 21, 22 e 23 de agosto de 1981, na colônia de férias do Sindicato dos Têxteis de São Paulo, na Praia Grande, resgatou questões que o Comando Geral dos Trabalhadores, interrompido precocemente pelo golpe de 1964, deixou no ar. Processou as ideias levantadas nas greves de 1978 e 1979. Deliberou sobre como o movimento se desenvolveria a partir dali. E definiu, enfim, sua pauta política.
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Sabe-se que a Conclat foi uma reivindicação verbalizada por Hugo Perez em um evento promovido pelo Ministério do Trabalho em 1977. Naquele ano, os empresários realizaram a 4ª Conclap, Conferência Nacional da Classe Produtora, e os trabalhadores também queriam se organizar.
Ainda que fosse acentuada a contradição entre o patronato e os trabalhadores sindicalizados durante o regime militar, a partir de 1973 ambos sofreriam com o mesmo problema: os efeitos da crise do petróleo. Crise que colocou um fim no período de crescimento desigual que os militares pretensiosamente chamaram de “milagre” e que, somada às diversas denúncias de crimes praticados pela ditadura, jogou o regime na corda bamba.
Entre 1977, quando a Conclat foi cogitada, e 1981, quando aconteceu, o Brasil passou por uma intensa movimentação sindical. As greves que começaram no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo dez anos depois das greves dos metalúrgicos de Contagem e Osasco, levantaram questões sobre autonomia, convenção coletiva, eleições sindicais, sustentação, unicidade e pluralidade.
A ideia de realizar a Conferência da Classe Trabalhadora cresceu durante a onda grevista e, em agosto de 1981, se concretizou reunindo 5.036 delegados de 1.091 entidades, representantes de 363 sindicatos rurais, 469 sindicatos urbanos, 32 associações de funcionários públicos, 179 associações de profissionais, 16 federações rurais, 27 federações urbanas e 5 confederações.
Passaram também pela Conclat Luís Carlos Prestes, Ulisses Guimarães, Mário Covas, deputados federais como Audálio Dantas e Alberto Goldman e, claro, o metalúrgico de São Bernardo, Luís Inácio Lula da Silva, que foi um de seus protagonistas.
Entidades internacionais como a Federação Americana do Trabalho/Congresso de Organizações Industriais (AFL/CIO), a Federação Sindical Mundial (FSM), Central Sindical Alemã (DGB) Central Latino-Americana de Trabalhadores (CLAT), Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT), entre outras, também marcaram presença. Um verdadeiro festival pró democracia.
Em depoimento ao Dieese, Hugo lembrou da efervescência daquele momento:
“Compareceram 5.036 delegados. Estávamos preparados para 2500. Mas em agosto fez calor e aqueles que não tinham acomodações dormiram na praia. De manhã cedo víamos aquela turma olhando o mar. Solzinho fraquinho. Aí de repente um pega a água do mar, põe na boca: ‘Salgado’. Não conheciam o mar! Veio gente dos mais distantes rincões desse país. Grande momento!”.
Diversos temas foram abordados e constam na resolução final do encontro. Temas como a luta contra a carestia, contra o desemprego e por uma Assembleia Nacional Constituinte Livre e Soberana. Foram esmiuçadas questões que vinham sendo ventiladas desde 1978 naquele caldeirão de propostas, visões, experiências e demandas que compunha as organizações de trabalhadores nos anos finais da ditadura.
Entretanto, o debate sobre a formação de uma central sindical dividiu a 1ª Conclat em torno de duas propostas.
Uma delas, ligada principalmente aos sindicalistas filiados ao PT, que acabava de ser criado, propunha que qualquer organização sindical, inclusive as oposições sindicais, além dos sindicatos, federações e confederações poderia se filiar à central. Tal proposta significava mais de uma organização por base, que é o princípio da pluralidade sindical.
A outra proposta, baseada na unicidade sindical (um sindicato por base), foi defendida pelas correntes ligadas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que defendiam que somente as entidades regulamentadas deveriam ser filiadas à central.
Neste embate entre unicidade e pluralidade permaneceu a estrutura vigente que previa a criação de um sindicato por base territorial, uma federação por Estado e uma confederação nacional. Era a chamada unicidade, modelo que se mantém até hoje.
Estudando o material sobre o assunto, depoimentos, artigos de jornais, vídeos, além de um extenso arquivo de mais de 200 páginas organizado pelo Dops (Departamento de Ordem Política e Social, órgão de repressão e perseguição da ditadura), concluo que, embora aquela divisão tivesse sido intensa, o que ficou de mais importante da Conclat, não foi o famoso racha, mas sim a presença dos trabalhadores dispostos a repudiar a ditadura e a se inserir no processo político. O que ficou de mais importante, em outras palavras, foi a luta pela democracia.
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A divisão se diluiu no tempo e hoje ela não faz mais sentido. Talvez nunca tenha feito. Aquela divisão expressou, enfim, não um rompimento, mas sim a diversidade de trabalhadores dispostos a se organizar sindicalmente. A unicidade se manteve e o tempo mostrou que não há contradição em existir o formato de representação “central sindical” e caberem neste formato mais de uma organização do tipo.
Por outro lado, a luta pela democracia, esta sim, permaneceu atual nestas quatro décadas. A altivez frente à Conclap empresarial, a luta contra a carestia, a preocupação com a Assembleia Nacional Constituinte foram o verdadeiro legado da Conclat.
Em julho de 1981, em um debate preparatório do evento, Hugo Perez foi claro ao dizer: “A Conclat não acontece porque tem democracia, mas para forçar a democracia que todos nós queremos”.
Esta foi a causa que uniu os trabalhadores de todas as tendências. Uma união poderosa que hoje, diante da crise política, democrática e sindical, o movimento deve mostrar novamente. Está claro, afinal, e a história não deixa dúvidas quanto a isso, que a situação do sindicalismo não apenas se vincula ao estágio da democracia, como é o centro da situação da democracia.
* Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vinícius Segalla