Há tempos que meu nicho não é o da crítica televisiva. Nem do jornalismo político. Mas não dá pra ser a colunista gastronômica isentona em tempos tão destemperados, principalmente, após assistir ao programa “Conversa com Bial”, da Globo, na madrugada desta sexta-feira (2).
Hoje em dia, assistir à TV se tornou uma tarefa complicada: além das antigas distrações - como o gato que mia de frio ou o microondas que apita a pipoca pronta - , os grupos de zap não param e, admito, as redes sociais dividem a minha atenção.
::Governador do RS assume homossexualidade: “Sou gay, não tenho nada a esconder”::
E manter o foco se complica ainda mais quando o que está na televisão alimenta os grupos de zap e as redes sociais com comentários e considerações sobre a programação. Isso aconteceu durante a entrevista de Pedro Bial com Eduardo Leite (PSDB). Devo destacar que, mesmo sozinha no meu sofá, assisti às declarações do governador do Rio Grande do Sul acompanhada de umas 20, talvez 25, pessoas. De forma virtual, claro.
E, por isso, após o programa ir ao ar, ainda revi com atenção redobrada as perguntas feitas (e não feitas) e as respostas que se sucederam. E verifiquei que outros espectadores também se deram conta dos questionamentos importantes que não foram feitos; como o contexto do apoio de Leite a Jair Bolsonaro em 2018 no segundo turno das eleições presidenciais.
O que todos sabiam, dada a divulgação estratégica da emissora horas antes da gravação ir ao ar, era que o entrevistado revelaria, em primeira mão, sua orientação sexual. “Sou gay” e “não tenho nada a esconder”, disse.
Mas um possível esclarecimento que muitos esperavam, no entanto, sequer foi considerado: Leite pensa diferente sobre a estratégia que traçou em 2018?
::O que leva nomes como Xuxa, Ivete Sangalo e ex-aliados a pedir o "Fora Bolsonaro"::
Pedro Bial não poderia ter entrado mais na questão política de pedir voto para quem ataca as próprias convicções? Como apoiou Bolsonaro, um conservador que sempre atacou a diversidade? Foi forçado? Não teve outra opção? Qual é o bastidor disso?
Leite pode ser precoce na carreira, como bem reforçou Bial, ter sido prefeito aos 27 anos, governador aos 33, mas não seria mais um adepto de uma parte importante da velha política? Não valia insistir mais nisso?
Afinal, a chance de sabatinar um político tão abertamente e à vontade assim, algo visível no vídeo da entrevista, é uma oportunidade que os cidadãos comuns não têm.
Até o instagram oficial do “Conversa” não esconde a ênfase na tal declaração sobre a homossexualidade. Na grade do perfil da rede social do programa, esse trecho é o único destaque da entrevista. É o vídeo sobre a "não questão" no lugar do não vídeo sobre "a questão".
Fiquei com a sensação de que o “Conversa” estaria se convertendo ao formato do tipo “Encontro”. A entrevista com o pré-candidato à Presidência da República tão à vontade é digno do sofá da Fátima Bernardes. Sem tirar qualquer mérito do papel do jornalismo de comportamento e da importância de dar palco para a questão urgente da diversidade e do respeito.
Imaginem, além de "Eduardo Leite ‘assume’ que é gay", mais uma manchete possível: "Eduardo Leite diz se arrepender de apoio a Bolsonaro", ou "Errei ao apoiar Bolsonaro e preciso ‘assumir’ isso também".
Ajudaria a "tirar do armário" a montanha de arrependidos da nossa sociedade, eleitores que vivem encolhidos por aí, desenganados, e a trazer à tona a importância do voto, da democracia e da alternância de poder, pontos tão relevantes quanto a diversidade.
Os maus governos passam. Isso é o que garante o regime democrático. O bom jornalismo permanece. Pelo menos, assim deveria ser
Que fique bem claro que não apoio o termo "assumir" no contexto da orientação sexual, mas é assim que as manchetes têm saído por aí. Agora, ele se encaixa para os arrependidos e favorece o acolhimento deles para que o Brasil acerte o rumo e siga em frente.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vinícius Segalla