A partir do próximo dia 12 de julho, com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello – o decano do Supremo Tribunal Federal (STF) –, os holofotes do Poder Judiciário voltam-se para a indicação de seu substituto. A prerrogativa constitucional dessa indicação cabe ao presidente da República, que depois é submetida à aprovação do Senado Federal.
Diferentemente de seus antecessores, Jair Bolsonaro (sem paerido) tem o hábito frequente de apontar os requisitos que espera do seu indicado. Após nomear um desconhecido desembargador federal para a primeira vaga no STF aberta durante seu governo, o presidente tem alardeado que, para esta nova vaga, indicará um nome "terrivelmente evangélico".
Relembre: Kassio Nunes Marques é o indicado de Bolsonaro para substituir Celso de Mello no STF ::
Trata-se de uma sinalização à parte de sua base de apoio, fortemente ligada a setores religiosos neopentecostais, mas também uma tentativa de fortalecer uma agenda conservadora de direitos na mais alta corte de Justiça do país.
Aparelhamento
Juristas ouvidos pelo Brasil de Fato apontam que a escolha de Bolsonaro faz parte de um plano mais ambicioso de aparelhamento das instituições democráticas.
"É evidente que o Bolsonaro quer ampliar a sua influência sobre o Supremo Tribunal Federal. Ele tem projeto autoritário, que é muito evidente", afirma Antônio Maués, professor titular do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará (UFPA) e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
:: Ministro Celso de Mello anuncia antecipação de aposentadoria; veja cotados para vaga ::
"O governo dele se dirige para implantar uma ditadura de direita e isso implica ter controle das instituições, especialmente daquelas instituições que podem oferecer alguma resistência a esse projeto autoritário. Apesar dos seus inúmeros defeitos, o STF, nos últimos dois anos e meio, tem barrado algumas iniciativas autoritárias do governo", completa Maués.
Até agora, o nome mais cotado nas bolsas de apostas para a próxima vaga no STF é o do advogado-geral da União, André Mendonça. Aliado de primeira hora de Bolsonaro, Mendonça se despontou como um dos auxiliares mais submissos aos ditames do chefe. Ele acionou diversas vezes a Lei de Segurança Nacional (LSN), criada pela ditadura militar, para reprimir críticas a manifestações contrárias ao presidente.
:: Ao defender igrejas abertas, AGU cita 3 trechos da Bíblia e nenhum da Constituição ::
Como ministro da Justiça, mandou abrir investigações criminais contra opositores do governo, como no caso da notícia-crime que teve como alvo um sociólogo do Tocantins que contratou a instalação de dois outdoors com críticas ao presidente Jair Bolsonaro.
Mais recentemente, após reassumir como advogado-geral da União, Mendonça fez uma sustentação oral no STF, em ação judicial para permitir a abertura de cultos em igrejas mesmo num dos piores momentos da pandemia de covid-19. O episódio gerou irritação entre os demais integrantes da corte, que criticaram a postura do advogado público.
:: Desembargador cotado para STF decidiu contra terra indígena e a favor dos agrotóxicos ::
"A única qualificação que o presidente encontra é que o futuro ministro tem que ser terrivelmente evangélico. Essa nomeação, a meu ver, já vai nascer viciada, porque viola uma coisa que vem desde a Revolução Francesa, que é a separação entre estado e religião", afirma Gabriel Napoleão, desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª região em membro do conselho executivo da Associação Juízes pela Democracia (AJD).
O magistrado lembra que a própria Constituição estabelece os requisitos para a indicação ao STF, que é a de alguém com "notório saber jurídico" e "reputação ilibada". "Essa indicação, se confirmada, será inconstitucional, porque não terá obedecido os requisitos legais", acrescenta.
Resistência
Com a indicação de Kássio Nunes Marques no ano passado, Bolsonaro parece ter "acertado" na tática de propor um nome alinhado com seus interesses. O novo ministro, desde que assumiu, tem atuado de forma convergente com os interesses do Palácio do Planalto.
No exemplo mais recente, foi de Nunes Marques a liminar concedida para permitir a abertura de templos religiosos no auge da segunda onda da pandemia, quando cerca de 4 mil pessoas morriam por dia no país. A decisão acabou sendo derrubada pelo plenário.
Em outra atuação bastante sintonizada com o governo, Nunes Marques chegou a pedir vista e votar contra a suspeição do ex-juiz Sergio Moro nos processos envolvendo o ex-presidente Lula. Dessa forma, manteria a inelegibilidade de Lula.
Sua posição, no entanto, acabou sendo minoritária e, mais recentemente, a suspeição de Moro foi confirmada em plenário, além das anulações de todas as condenações, ocorrida antes.
Para o professor Antônio Maués, da UFPA, uma eventual indicação e aprovação de André Mendonça ao STF deve resultar em um alinhamento e submissão ainda maior do novo ministro ao governo.
Na Suprema Corte, o advogado-geral da União poderia capitanear uma pauta extremamente conservadora em questões de costumes como vem fazendo na AGU.
"É de se imaginar que sele for ao Supremo, ele será um defensor dessa pauta. Isso mostra que é importante buscar uma derrota do governo, tentar derrotar o governo nessa indicação. Ela será muito danosa, caso seja bem-sucedida", adverte. "Tem que ter a pressão da sociedade para recusar essa indicação ou, se não possível, ao menos adiá-la por mais alguns meses até o desenlace aí dessas investigações", acrescenta Maués.
O desembargador Gabriel Napoleão também concorda com a necessidade de pressão social e destaca que entidades da sociedade civil, como a AJD, deverão se posicionar claramente caso uma indicação dessa natureza se confirme.
"Nós temos o dever de nos manifestar publicamente e nos opor a indicação que, a meu ver, será contrária ao texto Constituição e representará uma passo muito violento contra os valores que que a própria Constituição prevê, como os valores da liberdade de credo, contra os valores da não-discriminação".
Há forte resistência entre os senadores com o nome de André Mendonça, mas o governo conta com uma tradição bastante favorável às indicações para o STF.
Até hoje, na história da República brasileira, só um presidente teve indicações ao STF rejeitadas pelo Senado. Todas elas ocorreram no distante ano de 1894, durante o mandato de Floriano Peixoto, o segundo presidente do país.
Na época, o então presidente tinha uma postura autoritária e colidiu de frente com as forças econômicas dominantes da época.
Desde então, nunca mais o Senado rejeitou um nome, nem mesmo nos momentos mais críticos do governo de João Goulart, pouco antes do golpe militar de 1964. Mais recentemente, um nome que enfrentou grande resistência foi o do ministro Edson Fachin.
Menos pelo seu perfil e mais por causa de quem o indicou. O ano era 2015 e a então presidente Dilma Rousseff enfrentava uma forte oposição, que culminaria no seu impeachment cerca de um ano depois. A votação em plenário, com 52 votos favoráveis e 27 contrários à indicação, não chegou a ser apertada, mas foi uma das menores aprovações da história para o STF.
Modelo defasado
Normalmente, a indicação para o STF, embora tenha um rito constitucional, é na verdade um acerto de cúpula entre as forças políticas e econômicas do país. Há pouco espaço para a participação ou controle social, tampouco um procedimento mais rigoroso quanto ao perfil do indicado.
A forma como os ministros são escolhidos é a mesma desde o início da vida republicana brasileira. O Senado aprova por maioria absoluta, numa mera formalidade.
"Esse é um modelo que acaba favorecendo acertos, indicações individuais, negociações, e nós temos um processo que não analisa a formação jurídica mais aprofundada", aponta o juiz Gabriel Napoleão, da AJD.
Não há uma proposta única para corrigir o atual modelo de escolha dos ministros do STF. O ponto central, avaliam juristas, é garantir algum controle social no processo de escolha. Na Argentina, por exemplo, há participação da sociedade civil durante a sabatina no Senado para a escolha do indicado.
"Outra proposta é limitar o poder de escolha do presidente, mas a partir de uma lista tríplice, feita com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), do próprio Judiciário e o Ministério Público. Não ser uma indicação tão isolada. Esse me parece o problema estrutural, acaba sendo uma escolha solitária", diz o professor Antônio Maués, da UFPA.
Edição: Vivian Virissimo