As famílias da comunidade quilombola Invernada Paiol de Telha, localizada em Reserva do Iguaçu (PR), podem comemorar mais um passo na luta pelo direito ao território tradicional. No dia 8 de junho, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) obteve a imissão na posse das áreas que serão tituladas. Como passo seguinte, a posse das áreas então é passada pelo Incra às famílias quilombolas.
As novas matrículas obtidas estão compreendidas dentro da área reconhecida como de direito da comunidade. Com isso, as famílias podem ingressar em todas as áreas dos 1.460,43 hectares compreendidas no decreto de desapropriação, emitido em junho de 2015.
O direito das famílias acessarem esses cerca de 1,2 mil hectares, objeto da atual imissão na posse, é resultado direto de Ação Civil Pública (ACP) movida pela Associação Quilombola Pró-reintegração Invernada Paiol de Telha Fundão contra o Incra e a União. Protocolada em novembro de 2018, a ação é uma resposta das famílias à morosidade do Estado em assegurar e regularizar o território coletivo.
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Em decorrência da ação, a comunidade teve uma pequena parcela do território titulada no início de 2019, uma vez que essa porção de terra já havia sido adquirida pelo Incra e bastava apenas a emissão do documento. A concessão do documento reservou ao Paiol de Telha o marco de primeira comunidade quilombola parcialmente titulada no Paraná e a primeira parcialmente titulada, sob pressão, no governo Bolsonaro.
Titulação da área
Ainda que não seja propriamente a titulação da área - finalização do longo processo que assegura o direito coletivo sobre o território - a imissão antecipa os efeitos de titulação até que a efetiva titulação aconteça, permitindo às famílias o exercício da posse tradicional quilombola sobre essas áreas.
Como medida liminar, possibilita que a autarquia federal transfira a posse das matrículas para a associação quilombola. Responsável pelo recebimento dos títulos, a associação pode juntamente às famílias já iniciar o processo de ocupação das novas áreas regularizadas.
O que pode parecer uma etapa burocrática no processo de titulação quilombola, para as famílias é sinônimo de segurança, frente livre para pôr em andamento os planos paralisados e melhoria da qualidade de vida. A imissão na posse pelo Incra traz garantias legais sobre a permanência das famílias na área onde se instalam - condição essencial para iniciar um plantio ou subir as paredes de uma nova casa.
Para as famílias quilombolas, que geralmente vivem contexto de vulnerabilidade socioeconômica, a perspectiva de serem expulsas da área e perderem algum plantio ou casa é inibidor de ação no território.
“Antes a gente vivia numa panela de pressão, sem saber se plantava e perdia tudo, com medo de expulsão. Agora a gente agradece que a justiça está sendo feita, e a terra está voltando pra gente. A gente sente mais segurança em construir uma casinha, criar um porco, dar sequência ao projeto da agroindústria. É uma vitória”, comemora a quilombola Jucimeri dos Santos.
Além da ocupação das famílias nas novas matrículas, a associação pode passar a reivindicar junto ao Estado um conjunto de serviços essenciais, como saneamento e fomento à produção de alimentos, por exemplo.
Jucimeri relata que as famílias sofrem com escassez de água, luz e saneamento na área já ocupada - condições também essenciais para proteção ao contágio da covid-19. “Hoje a gente combina na comunidade para não ligarem os aparelhos ao mesmo tempo. Se muita gente usar o chuveiro ao mesmo tempo, a luz cai”, relata.
“Vamos priorizar para que as famílias se sintam aconchegadas e seguras em seus lares”, complementa, sobre planos agora mais próximos.
Acionamento da justiça
Os cerca de 225 hectares titulados inicialmente não asseguravam mínimas condições de reprodução da vida às 300 famílias do Paiol de Telha. Foi a decisão liminar dada pela juíza Silvia Regina Salau Brollo, da 11ª Vara da Justiça Federal, em março de 2019 - no âmbito da Ação Civil Pública - que assegurou à comunidade a entrada nos cerca de 1,2 mil hectares restantes.
Na decisão, a juíza estabeleceu o prazo de 180 dias, a partir da decisão, para que a União liberasse para o Incra o valor necessário para que fossem adquiridas as outras cinco áreas restantes, já declaradas de interesse social para desapropriação pela Presidência da República em 2015.
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“Verifica-se que o processo da Comunidade Invernada Paiol de Telha foi aberto no ano de 2004. Foi o primeiro processo de titulação aberto no Paraná. Apesar de estar listado como primeiro processo, na ordem de prioridade ou antiguidade, ainda não foi concluído. Assim, é imperioso reconhecer que houve omissão do Poder Executivo federal em dar cumprimento ao comando constitucional e, por isso, os réus devem ser obrigados a darem seguimento adequado e completo para a titulação de todo o imóvel”, manifestou a juíza na decisão.
“Falta vontade política de resguardar direitos constitucionais previstos há mais de trinta anos”, complementou ela, em referência aos dispositivos constitucionais que reconhecem o direito quilombola aos territórios tradicionais.
Ainda em 2019, a Advocacia Geral da União (AGU) recorreu da decisão proferida pela 11ª Vara da Justiça Federal, mas em julgamento emblemático no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), em Porto Alegre (RS), em setembro do mesmo ano, o recurso da União não foi acolhido. Permaneceu, assim, a decisão de que a União devia assegurar orçamento para a titulação da totalidade do território quilombola Paiol de Telha.
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“A decisão é paradigmática, primeiro porque coloca a política quilombola como uma política constitucional que gera um dever ao Estado, e a sua não realização implica, igualmente, em responsabilidade deste pela inércia. Segundo, a decisão reorienta as responsabilidades do Executivo com as políticas que já iniciou, uma vez que há Portaria de Reconhecimento do território tradicional e eventualmente também o Decreto desapropriatório. Com isso, o Executivo está manifestando a vontade estatal de realização da política e deve ser comprometido a finalizar o processo de titulação, não cabendo a este se esquivar com desculpas de orçamento”, destacou a assessora jurídica da Terra de Direitos Maíra Moreira.
“O orçamento é político, é fruto de decisões políticas e as comunidades quilombolas precisam ser destinatárias desses recursos”, enfatizou.
Luta pela totalidade do território
Liderança do Paiol de Telha que acompanhou de perto a luta de mais de 50 anos para reconquistar a terra dos antepassados, Ana Maria da Cruz, anunciou com alegria a recente vitória, mas logo chamou a atenção para a continuidade da luta. Isto porque o decreto presidencial de desapropriação considerou apenas 1.460 hectares da área de 2,9 mil hectares reconhecida pelo Incra como de direito da comunidade. (Veja mapa)
“O que eu quero ainda é a outra parte. Temos reconhecido pelo Estado 2,9 mil hectares. Conquistamos metade, faltam ainda quase 1,5 mil hectares. Essa área que falta faz parte da minha vida, é onde minha avó materna Cianinha morou e que quero devolver aos meus sobrinhos”, destacou Ana, que também é coordenadora executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) no Paraná e região sul.
A ampliação do território, com áreas não consideradas no decreto presidencial, possibilitaria o retorno de famílias à área. Em decorrência do abandono estatal vivenciado no território e uma realidade de pouco chão para tanta gente, centenas de quilombolas do Paiol de Telha tiveram que se instalar nas cidades próximas.
Além da ruptura com a vida comunitária, a ida no meio urbano não significou necessariamente melhora da qualidade de vida. Com uma tradição de vida no campo, as famílias quilombolas vivenciam, com frequência, contextos de ainda maior miserabilidade longe de seus territórios.
“Há uma relutância por parte das instituições de efetivar direitos quilombolas, o que dificulta o acesso à terra e representa um empecilho na reparação do povo afrodescendente pelos mais de três séculos da escravização africana”, destacou a assessora jurídica da Terra de Direitos, Izadora Nogueira.
A relutância do Estado, no caso do Paiol de Telha, tem sido também pela lentidão dos órgãos responsáveis pela titulação em assegurar a totalidade do território às famílias.
“O impacto da lentidão é que o povo ficou paupérrimo, pobres. Enquanto alguns enriqueceram, como empresas que exploram os territórios quilombolas, o meu povo ficou na favela, sem ter como trabalhar na cidade. Muitos não tinham e não têm escolaridade e como conseguir trabalho na cidade, passam fome e todo tipo de dificuldade”, explicou Ana Maria.
Outra forma de manifestar a relutância à efetivação dos direitos quilombola tem sido a política implementada pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido). Opositor à titulação quilombola, o presidente cumpre à risca a promessa feita em campanha eleitoral de não assegurar “nem um centímetro para quilombola ou reserva indígena”.
Além do Incra estar lotado em pasta sob comando de opositores à política quilombola - coordenado pela ruralista Tereza Cristina (PSL) - houve redução em aproximadamente 90% do orçamento de 2021 para a política de regularização de territórios quilombolas, em comparação ao orçamento do ano anterior, conforme Nota Técnica do Ministério Público Federal.
“Bolsonaro se elegeu com a promessa de que não destinaria mais recursos para a política quilombola, e que esta não teria mais nenhum território titulado. Uma política de morte para a política pública e, consequentemente, para a própria população quilombola. Com a chegada da pandemia, isso se confirmou de forma ainda mais alarmante, por isso, a posse da totalidade do território e a titulação ainda parcial de Paiol são grandes conquistas em uma conjuntura tão adversa”, destacou a assessora jurídica da Terra de Direitos, Maira Moreira.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Rebeca Cavalcante e Lia Bianchini