VAZIO DE DADOS

ONG faz mapeamento de comunidades tradicionais e expõe falhas em cadastros oficiais

Levantamento mostra que existem 3,5 vezes mais comunidades tradicionais no Cerrado do que as listadas oficialmente

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Somente no Cerrado existem pelo menos 3,5 vezes mais comunidades do que as registradas pelo governo - André Dib/ ISPN©

A Rede Cerrado divulgou o primeiro relatório de um processo de mapeamento das comunidades tradicionais brasileiras, realizado desde novembro do ano passado, que aponta uma realidade de luta contra violência, falta de acesso a políticas sociais e apagamento da existência dessas populações.

Nomeado de "Tô no Mapa", o projeto tem atuação do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) e apoio do Instituto Cerrados. Foi criado um aplicativo que possibilita o autocadastro dos povos e que reúne informações sobre as condições em que vivem.

"Mapear é um ato político. É muito importante que as comunidades façam isso a partir de uma discussão dentro da própria comunidade", afirma a antropóloga Katia Favila, secretária executiva da Rede Cerrado e especialista em educação e gestão ambiental.

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Segundo a Rede Cerrado, o governo não tem um mapeamento de todas as comunidades tradicionais brasileiras e parte das que se inseriram no mapa nem mesmo estão nos cadastros oficiais do poder público. Isso impede o acesso a políticas sociais e a garantia de direitos.


Quebradeiras de coco-babau estão entre os povos tradicionais listados no mapa / Foto: Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu

Um levantamento das instituições envolvidas mostra que existem 3,5 vezes mais comunidades tradicionais na região do que as listadas oficialmente. Hoje, o "Tô no Mapa" registra mais de cinco mil famílias entre quilombolas, indígenas, ribeirinhos, pescadores artesanais, extrativistas, quebradeiras de coco-babaçu e outros.

"A gente tem um vazio de dados no Brasil", contextualizou a antropóloga Katia Favila em entrevista ao programa Bem Viver. Ela afirmou que o processo de mapeamento começou em uma pesquisa que saltou de 600 comunidades e chegou a quase 2 mil.

"A partir desse projeto, com ações muito simples, a gente começou com um número e terminou com um dado muito superior", completa a especialista. "A ação mostrou uma enormidade de comunidades, que a gente sabe que existem, mas não estão aparecendo em nenhum dado oficial."

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Como o aplicativo continua recebendo dados, os números de comunidades mapeadas deve crescer e a tendência é de que esse processo confirme as falhas existentes nos dados oficiais do governo. 

Em meio à pandemia do coronavírus, a falta de acesso a políticas sociais mostra um lado ainda mais cruel. "A falta de conhecimento do estado brasileiro sobre essas comunidades fez com essas comunidades morressem", alerta Katia.

Sem constar nos cadastros do governo, os povos não têm acesso à priorização pra vacinação e enfrentam dificuldades em chegar ao atendimento na área de saúde. "Várias comunidades falam claramente que elas estão perdendo a história delas, porque os mais velhos estão morrendo" conta a antropóloga. 

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"É drástico, é triste e é inaceitável que, em 2021, a gente ainda passe por isso de muitas comunidades não serem reconhecidas e não terem a prioridade que elas deveriam ter no atendimento à saúde, porque elas são mais vulneráveis", alerta.

Conflitos

O "Tô no Mapa" também reúne informações sobre os conflitos vividos por essas populações. Grande parte dos registros relata problemas de disputa territorial e invasão territorial, representando 53% dos conflitos informados. Seguidos por contaminação por agrotóxicos (17%), conflito por água (6%) e queimadas não controladas (4%).

Katia Favila afirma que a invisibilidade de povos tradicionais beneficia os causadores dessa violência. "Quem sai ganhando? Quem está provocando esse tipo de conflito com essas comunidades que já estão fragilizadas, que não têm seus territórios garantidos e ainda tem um movimento político para dizer que elas não existem."


Povos tradicionais indígenas também sofrem consequências da falta de cadastro nacional / Divulgação CNBB

 

 

Edição: Vivian Virissimo