No início da década de 80, diversos quilombolas foram expulsos das margens do rio Acará, no Pará, para dar espaço à implantação da empresa que, atualmente, é a Agropalma, maior produtora de óleo de dendê da América Latina.
Sem ter para onde ir, essas pessoas ocuparam as margens da PA-256. Hoje, 40 anos depois, eles são ameaçados pela pavimentação da PA-256, que vai transformar as suas casas em asfalto.
Leia também: Quilombolas lutam pela terra contra gigante do agronegócio e pedem o fim da violência no Pará
Sem qualquer diálogo, audiência pública ou até mesmo explicações, o governo do Pará anunciou a pavimentação da rodovia com grande entusiasmo.
“É uma das obras de infraestrutura de transporte mais importantes para o desenvolvimento do agronegócio no nordeste do Pará”, diz o governo. O ponto é justamente esse: a obra beneficiará, prioritariamente, o agronegócio.
A ordem de serviço foi assinada em janeiro deste ano. Assim, o governador Helder Barbalho (MDB) prometeu 56 quilômetros para a rodovia. Em abril foi dada a autorização para a construção do trecho que compreende a travessia do Rio Capim até o entroncamento da PA-150, em Tailândia.
A PA-256 é uma das rodovias mais extensas do Pará e corta nove municípios: Mocajuba, Cametá, Igarapé-Miri, Moju, Tailândia, Acará, Tomé-Açu, Ipixuna do Pará e Paragominas.
São cerca de 360 quilômetros de uma via que hoje tem trechos bastante precários por ser de piçarra (chão de terra batido).
Com a chuva, característica da região amazônica, a rodovia cria poças de lama e desníveis que tornam a travessia difícil e, sobretudo, onerosa para o agronegócio, que utiliza a via para escoar a sua produção.
Ou seja, uma vez pavimentada, a rodovia servirá para dinamizar o escoamento de produtos do agronegócio como a soja, o milho e o óleo de dendê.
O custo da obra está estimado em R$ 76.768.976,31 com prazo de execução de 24 meses. A empresa contratada é a construtora Terra Plena.
A Comunidade da Balsa
A reportagem do Brasil de Fato esteve na Comunidade quilombola da Balsa, que existe há 62 anos, e conversou com diversos moradores sobre a obra da PA-256 e outras violações de direitos. De um total de 180 famílias que não foram ouvidas por nenhum órgão acerca da obra, 25 casas serão destruídas pelo empreendimento.
No entanto, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) determina que qualquer obra que impacte comunidades tradicionais deve não apenas consultar, mas contar com o consentimento dos membros da comunidade e isso não foi feito com os moradores da Comunidade da Balsa.
:: Agronegócio pagou apenas R$ 16,3 mil em imposto de exportação durante todo 2019 ::
O medo de falar de alguns moradores é logo percebido, mas a desconfiança tem motivo: promessas feitas por membros da empresa que não foram cumpridas. “Meu medo é o que eles podem fazer com a gente depois”, disse um senhor que não aceitou gravar entrevista.
Antônio do Carmo é uma das pessoas que será afetada com a obra. Diariamente o homem vê os caminhões cheios de dendê passarem na sua porta, mas o que tem tirado seu sono, atualmente, é a obra da PA-256.
“A gente anoitece e acorda pensando: e se eles chegarem uma hora para tirar a gente daqui, para onde a gente vai com a família da gente", questiona o homem que chegou a trabalhar para herdeiros da família de Antônio Maia, um fazendeiro que explorava madeira às margens do rio Acará, no início do século XX.
Antônio hoje não tem um emprego fixo, ele faz o chamado "roçado", ou seja, trabalha para outras pessoas em roça e ganha aproximadamente R$ 50 por dia trabalhado. O quilombola afirma que, na verdade, o que ele queria era retornar ao seu território.
"Nós temos um território que é onde nós fomos nascidos e criados. Eu fui nascido e criado na beira do rio. Na época em que a gente saiu, eu mesmo tinha cerca de 9, 10 anos", conta.
"A gente não se governava, não sabia o que fazíamos, nossos pais eram quem decidiam, mas fomos expulsos, fomos enganados por uma empresa. Saímos de lá e viemos fazer uma casinha na beira da estrada. O meu sonho é voltar para o território onde nós fomos nascidos e criados".
Além de ser a moradora mais antiga da Comunidade Quilombola Vila da Balsa, Dona Maria Julieta, de 94 anos, também é uma das pessoas que não consegue dormir com medo do que pode vir a acontecer.
Na guerra entre o mais forte e o mais fraco, a corda arrebenta sempre para o lado mais fraco, diz Dona Julieta com os olhos marejados.
:: Tornar povos tradicionais "invisíveis" ajuda a tomar suas terras, diz antropóloga ::
A mulher, que também trabalhou para a família Maia, apela ao governo estadual que tenha compaixão e não a deixe mais uma vez sem ter para onde ir. "Eu tenho 94 anos, não tenho mais tanta força para lutar. Eu peço que o governo olhe pela gente".
Na casa da Dona Julieta vivem, atualmente, 11 pessoas. O local tem telhado de cavaco (um tipo de madeira) e telhas de cimento com pouco mais de 10 metros quadrados. O banheiro fica na área externa.
O local é simples, a vida é difícil, mas ela tem um teto, suas plantas e algumas galinhas de criação.
O quilombola Joaquim Pimenta afirma que o governo do estado do Pará conversou com empresários e motoristas de caminhão para anunciar a pavimentação, mas não com a comunidade.
"Não tem um plano de governo que venha dizer: vamos sentar com a comunidade e vamos ver para onde vamos colocar essas caras, mas a comunidade está ali, o que eu quero ver é se os tratores vão passar por cima dos caras. Eu estou ali, eu não vou arredar o pé”, afirma.
Além da PA-256
A titularidade do território apresentada pela Agropalma é colocada em xeque pelos quilombolas e também por pesquisadores do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia e do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da Universidade Federal do Pará (UFPA).
As irregularidades fundiárias cometidas pela empresa, inclusive, deram origem ao doutorado de Liandro Cunha, do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD/UFPA).
:: Agronegócio pagou apenas R$ 16,3 mil em imposto de exportação durante todo 2019 ::
No total, três pesquisadores estão em constante contato com os quilombolas pelo reconhecimento dos seus territórios: a professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Rosa Acevedo e a doutoranda Maria da Paz Saavedra, além de Elielson Pereira, doutor pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da Universidade Federal do Pará NAEA/UFPA e pesquisador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia.
Apesar de resistirem contra a Agropalma e a pavimentação da PA-256, o asfaltamento é, apenas, uma ponta de complexo logístico, que prevê ainda a construção de 18 pontes, sendo uma delas sobre o rio Capim e do rio Acará, que banha a comunidade Porto da Balsa.
O Brasil de Fato procurou a Secretária de Transporte e o governo do estado do Pará para saber se há planejamento de realocação dos quilombolas que vivem às margens da PA-256, mas até o fechamento desta reportagem não teve resposta.
Edição: Leandro Melito