Coluna

Militares e o apoio a Bolsonaro: CPI, crise, desgaste e reação

Politicamente, o governo Bolsonaro encontra-se em desgaste crescente, dependendo do centrão e dos militares para manter a sua estabilidade - Foto: Sérgio Lima/AFP
O desgaste do governo Bolsonaro atinge em cheio os militares

Flávio Rocha, Tarcízio Melo, Julia Lamberti, Lucas Ayarroio, Thiago D’Carlo e Renan Ferreira*
 

 

Uma característica do governo Bolsonaro é o elevado número de militares em sua composição. Eles ocupam postos estratégicos em todos os escalões do governo, sendo ministros, presidentes de estatais, agências reguladoras ou diretores de órgãos da administração pública.

E com prebendas [cargos bem remunerados] institucionais, corporativas e pessoais em termos de orçamentos, salários e jetons. Participam dessa situação oficiais da ativa e da reserva.

Esta relação, benéfica para ambas as partes, chegou a um momento extremamente delicado. Em maio, o general Eduardo Pazzuello não foi punido pela participação em ato ao lado do presidente Bolsonaro.

O ocorrido gerou revolta e críticas em parte da opinião pública e da classe política, à esquerda e à direita. Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública do governo Temer, em entrevista ao El País, afirmou que o fato incentivaria a anarquia nas fileiras militares.

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Na movimentação política que se intensificou com o agravamento das crises sanitária e econômica, aumentou a percepção de desgaste do presidente da República. E isso começou a ser “turbinado” a partir de integrantes do próprio governo.

Em entrevista à GloboNews, Hamilton Mourão suscitou certa desconfiança de que poderia haver um possível consenso entre militares, empresários e parte da centro-direita e direita não bolsonarista para impedir que o presidente chegasse ao fim de seu mandato.

Todavia, a espiral em que se transformou a conjuntura política brasileira desafia os observadores mais experimentados, e mesmo os mais imaginativos. No dia 07 de julho ocorreu um episódio seríssimo de choque e crise entre as Forças Armadas e o presidente da CPI da Covid, o senador Omar Aziz.

A origem deste choque está nas suspeitas de corrupção no ministério da Saúde quando esse era comandado justamente pelo general Eduardo Pazuello e que envolviam a tentativa de compra da vacina indiana Covaxin.

O representante da empresa estadunidense Davati Medical Supply, uma intermediária na venda de vacinas, o Luiz Paulo Dominguetti Pereira, um cabo da polícia militar de Minas Geras (!) , deu uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, no qual afirmou que recebeu um pedido de propina de um dólar por dose em troca de fechar um contrato com o Ministério da Saúde.

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Dominguetti apontou que Roberto Ferreira Dias, diretor de Logística do Ministério, havia feito o ato de corrupção em jantar no restaurante Vasco, no Brasília Shopping. O policial militar e representante comercial nas horas vagas, também disse que Marcelo Branco, tenente-coronel do Exército, esteve presente ao encontro.

Após essa entrevista, no dia 30 de Junho, a comissão da CPI da Covid no Senado aprovou a convocação do tenente-coronel do Exército Marcelo Branco, que foi assessor no departamento de Logística no Ministério da Saúde.

Esse departamento era comandado justamente por Roberto Ferreira Dias, que foi exonerado do cargo após as denúncias e pouco antes de ter sido também convocado a depor na CPI.

Durante a sessão, Dias tornou-se o primeiro depoente a sofrer voz de prisão por parte do presidente da comissão, Omar Aziz, por ter faltado com a verdade repetidas vezes durante as perguntas feitas pelos senadores.

Nesse intervalo de tempo, o general Eduardo Pazuello, que atualmente é Secretário de Estudos Estratégicos da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, manifestou-se sobre o noticiário do pedido de propina envolvendo a Covaxin, pois ele era o Ministro da Saúde durante o período.

Segundo ele, o presidente havia solicitado que fosse realizada uma apuração preliminar de uma possível corrupção na compra da vacina, mas sustentou que não havia encontrado irregularidades.

No dia 07 de Julho, o Ministério da Defesa e os Comandantes das três forças lançaram uma nota de repúdio em resposta a uma fala do senador Omar Aziz, feita durante uma sessão da CPI, abrindo mais uma crise política no governo Bolsonaro.

Em sua fala, Aziz disse que “os bons das Forças Armadas devem estar envergonhados” e ainda que haveriam alguns membros do “lado podre” envolvidos com “falcatrua” dentro do governo - algo visto como desrespeitoso e irresponsável por parte dos militares.

E citou, nominalmente, alguns militares que estão aparecendo em depoimentos comprometedores, envolvidos em atos de corrupção ou incompetência governamental, ou crimes, como os coronéis Elcio Franco e Glaucio Guerra (envolvido com o fornecimento suspeito de vacinas e irmão de um ex-policial federal acusado de integrar a milícia do Rio de Janeiro, segundo apurou a Agência Pública.)

Aziz, porém, afirmou, em sessão no Senado, que a nota era uma “tentativa de intimidação” desproporcional, expressando, inclusive, indignação com a reação pífia do Presidente da Casa, Rodrigo Pacheco que teria dito que o Parlamento não tentou ofender as Forças Armadas e que os senadores prezavam pela harmonia e estabilidade.

Ocorre que essa nota, assinada pelos comandantes militares e pelo Ministério da Defesa, foi publicada no dia 08 de julho, um dia depois de uma reunião ocorrida no Palácio do Planalto.

Segundo o Correio Braziliense, participaram os comandantes militares, o ministro da Defesa, o chefe da Casa Civil, o ministro chefe do GSI e o próprio presidente Bolsonaro. , além dos diretores da  Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e da Polícia Federal - em resumo, toda a cúpula do aparato securitário que está sob o comando do poder executivo federal.

O objetivo era a realização de um balanço dos 30 meses do governo Bolsonaro. Mas a coisa foi além e houve uma avaliação mais detida dos recentes protestos pelo país, que foram contra o governo e, especialmente, contra a figura do presidente.

Houve a exibição de imagens criticando o protesto e ressaltando a presença de símbolos comunistas nas manifestações. Na matéria, foi ressaltado o fato de que, a partir da avaliação, a tendência seria a de que as Forças Armadas não deixariam de se manifestar politicamente na defesa do Executivo e de seus interesses.

Como que para confirmar essa tendência, no dia 9 de Julho é publicada uma entrevista com o comandante da Aeronáutica, o brigadeiro Carlos Almeida Baptista Junior. Nele, o brigadeiro reitera o tom da crítica dura ao senador Aziz, mas toma o cuidado em dizer que a nota não foi contra a CPI, mas um agravo às declarações de seu presidente.

Segundo ele, os ataques seriam levianos, pois associariam as Forças Armadas a corrupção. Apesar de manter um tom ponderado, a entrevista é recheada de ironias a atuação dos senadores e há aquele costumeiro tom de superioridade militar em relação aos poderes civis da república brasileira.

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O fato é que os processos políticos começam a ganhar uma maior tração no Brasil a partir do segundo semestre de 2021. A crise sanitária produziu mais de 500 mil mortes e afetou a já combalida economia brasileira, atingindo em cheio as classes mais pobres.

Politicamente, o governo Bolsonaro encontra-se em desgaste crescente, dependendo do centrão e dos militares para manter a sua estabilidade (e vendo os dois grupos se desentendendo justamente na questão das vacinas, algo que a CPI começa a desvendar agora) .

As manifestações lideradas pela oposição de esquerda e pela sociedade civil, porém, e com participação crescente de setores da direita, começam a crescer e chamam a atenção da comunidade internacional.

Ocorre que o desgaste do governo Bolsonaro é o desgaste dos seus principais grupos apoiadores, e isso atinge, em cheio, os militares. Ao contrário do que ocorreu com o término do regime autoritário pós-1964, as Forças Armadas podem sofrer uma perda de credibilidade acentuada junto à sociedade brasileira, e que se espalhará por diferentes classes sociais.

A percepção que cresce é que elas estão se afastando de suas funções básicas de garantir a segurança e a defesa, que intervém em setores que não entendem absolutamente nada (o caso da saúde pública), estão mais preocupadas em garantir interesses corporativos às expensas de outros setores do estado e da sociedade, tem corrupção entre os seus quadros e, estão ajudando a alienar o patrimônio nacional e, o que é pior: dão sustentação ao pior presidente da história republicana recente do Brasil.

Para usarmos uma comparação fácil de ser entendida: o desgaste no prestígio das Forças Armadas na sociedade brasileira poderá ser tão grande quanto o das polícias militares nas periferias de grandes capitais, como Rio de Janeiro ou São Paulo.

Isso será inédio para eles.

Nesse contexto, é prudente acompanharmos os movimentos das Forças Armadas brasileiras, e mais prudente ainda imaginarmos possíveis cenários nos quais elas atuem de maneira mais assertiva nos próximos meses.

Daqui até 2022 haverá uma grande possibilidade delas reagirem institucionalmente se tiverem uma percepção de que os poderes civis da República brasileira - congresso ou judiciário - estão se intrometendo em seus interesses.

Farão isso ostensivamente, enquanto nos bastidores negociarão no sentido de acumular forças e capital político para manterem os ganhos que conquistaram no governo de Jair Bolsonaro.

Isso significa, na prática, que lutarão para manter o papel tutelar sobre o futuro presidente, seja ele de esquerda ou de direita.

Considerando-se o imponderável que se instalou na vida política nacional, também é prudente considerar que essas mesmas Forças Armadas podem começar a ter dúvidas se poderão manter esse papel histórico de tuteladoras do poder civil no futuro.

É nessa dúvida que as forças brasileiras comprometidas com a democracia de base popular devem começar a pensar e a planejar. A sociedade brasileira e o mundo mudaram mais rápido do que certos generais, almirantes e brigadeiros. Não seria demais começarmos a imaginar que futuros governos tratarão de colocar a reforma estrutural e cultural do estamento militar brasileiro no topo das prioridades políticas.

A conferir.

 

*Flávio Rocha, Tarcízio Melo, Julia Lamberti, Lucas Ayarroio, Thiago D’Carlo e Renan Ferreira são pesquisadores do Observatório de Política Externa Brasileira, da Universidade Federal do ABC (UFABC).

**O OPEB (Observatório de Política Externa Brasileira) é um núcleo de professores e estudantes de Relações Internacionais da UFABC que analisa de forma crítica a nova inserção internacional brasileira, a partir de 2019. Leia outras colunas.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Leandro Melito