Passadas mais de 24 horas desde o anúncio do assassinato do presidente de facto do Haiti, Jovenel Moïse, temos as primeiras informações a respeito do ataque feito em 7 de julho, quando homens armados não identificados atacaram a casa de Moïse e o mataram a tiros. No ataque, sua esposa também ficou gravemente ferida e se encontra hospitalizada em Miami, Flórida.
Claude Joseph, o primeiro-ministro interino, e agora presidente em exercício do Haiti, confirmou a notícia na madrugada e declarou estado de sítio por 14 dias, até 22 de julho.
Na mesma noite, o secretário de Comunicação do Estado, Frantz Exantus, informou que dois suspeitos foram presos pela polícia nacional. Horas depois, em entrevista coletiva, o diretor da Polícia Nacional do Haiti (PNH), León Charles, informou que a polícia entrou em confronto o suposto grupo responsável pelo assassinato nas imediações da residência de Moïse em Pelerin.
Ele confirmou que capturou dois dos supostos assassinos e matou outros quatro. “A PNH bloqueou a estrada que poderia permitir a fuga dos mercenários. Alguns deles se refugiaram em Pelerin, quatro foram mortos, dois foram presos e três policiais feitos reféns foram resgatados”, disse Charles.
Apenas na noite de quinta, 8, a polícia confirmou a informação de que os mercenários envolvidos no assassinado de Moïse eram dois
haitiano-estadunidenses e 26 colombianos. Do total desses 28, quinze estavam sob custódia da polícia. Os outros formam abatidos ou fugiram. Entre os detidos, está o estadunidense James Solages, o que não deve ser visto como surpresa, já que os EUA têm infiltrado mercenários e armas no Haiti há anos.
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Ainda na quarta, Claude Joseph relatou que teve uma reunião com o Core Group, composto pelos embaixadores do Brasil, Canadá, França, Alemanha, Espanha, União Europeia, Estados Unidos, além de representantes das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos. Disse também que conversou durante 30 minutos com o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, sobre o assassinato e a crise política.
Nesse contexto, as declarações mais recentes de chefes de Estado do hemisfério não deveriam nos surpreender. Biden manifestou-se "pronto para ajudar o Haiti", frase que não poderia deixar de gerar consternação no país. Já o presidente colombiano Iván Duque instou a OEA a intervir com uma missão urgente no Haiti para "garantir a estabilidade democrática e institucional" que ele mesmo não consegue garantir em seu próprio país.
É preciso mencionar que estes são os mesmos atores internacionais que sustentaram o governo de facto de Moïse, apesar da acelerada decomposição social e econômica do país e a despeito do mais completo colapso da ordem democrática. Os mesmos indutores do caos organizado, nesta autêntica política de oportunismo são aqueles que agora pretendem resolver a crise de forma pretoriana, apresentando-se como garantidores da ordem e da democracia.
Não seria estranho começarmos a ouvir, mais uma vez, conceitos tão distantes do arsenal conceitual colonialista como os de "intervencionismo humanitário", "responsabilidade de proteger", "não indiferença", "ameaças incomuns e extraordinárias" ou o perigo à "segurança nacional dos Estados Unidos".
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Organizações da sociedade civil haitiana e outros setores progressistas expressaram preocupação com essas reuniões. Em nota, o Jubileo Sur / Américas, uma rede de movimentos sociais, pessoas, organizações ecumênicas e de direitos humanos na América Latina e no Caribe, destacava que “é importante prevenir uma nova ocupação militar e rejeitar a opção da ocupação de forças multilaterais, cuja presença exacerbou a crise haitiana, e que são responsáveis por crimes graves no Haiti e múltiplas violações dos direitos básicos da nação entre 2004 e 2015”.
Da mesma forma, os Movimentos Sociais da Alba, também destacaram que o assassinato de Moïse não deve servir de pretexto para uma nova intervenção no Haiti. “Os povos da nossa América, não choramos pelos carrascos do povo, mas alertamos sobre os possíveis cenários que podem ser desencadeados com este assassinato em benefício dos interesses imperialistas, que vivem da geração do caos como a principal estratégia de dominação. A memória da resistência haitiana nos remete ao momento histórico de 1915, quando após o assassinato do presidente Vilbrun Guillaume Sam, o exército estadunidense invadiu o Haiti. Estariam eles repetindo sua estratégia?”, questionou a ALBA em um comunicado.
Moïse: devorado pelos seus próprios demônios?
É importante dar um breve contexto e uma sucinta caracterização de Moïse, que chegou à presidência da república como representante do partido PHTK, uma organização política de extrema-direita e ultraneoliberal, que representa os setores residuais do duvalierismo ainda presentes entre as classes dominantes haitianas.
Inclusive, seu mentor e fundador, apadrinhado pelos Estados Unidos e pelo Core Group, o ex-presidente Michel Martelly, começou sua “carreira política” como um paramilitar financiado pela ditadura hereditária e vitalícia de François e Jean-Claude Duvalier. Diversos representantes desse regime que assolou o país entre 1957 e 1986 ocuparam, ao longo dos governos de Martelly e Moïse, cargos políticos, diplomáticos, legislativos e ministeriais.
Moïse foi nomeado como sucessor de Martelly por ser uma espécie de outsider da classe política, uma das manobras mais frequentes das diferentes direitas latino-americanas. Seu "capital" foi gerado como expoente de uma oligarquia supostamente modernizadora, e seu carro-chefe para chegar à política foi o projeto de desenvolvimento de zonas francas agrícolas voltadas para a exportação com base no noroeste do país, em particular por meio de sua empresa AGRITRANS S.A., construída a partir da expropriação criminosa de milhares de hectares de propriedade comunitária e camponesa.
As eleições que o consagraram presidente em 2015 caracterizaram-se por uma prática de fraude massiva, o que implicou, após quase um ano de conflitos e regime interino, a realização de novas eleições que também seriam questionadas como fraudulentas por diversos atores nacionais e observadores internacionais, mas que, no entanto, seriam finalmente validadas pela ONU e pela OEA, organizadores e financiadores quase exclusivos do próprio ato eleitoral. A participação cidadã, à época, mal chegava a 18% dos votos, refletindo o cansaço e a descrença da população.
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Iniciado o seu governo, Moïse rapidamente enfrentaria a oposição das classes populares, dos setores médios e até de alguns segmentos da burguesia local. O aprofundamento das políticas neoliberais degradaria rapidamente a situação econômica do país, tendo como agravante a "recomendação" do FMI de eliminar os subsídios dos combustíveis, o que levaria 2 milhões de pessoas às ruas do país em julho de 2018. Soma-se a isso, um desvio multimilionário de recursos públicos equivalente a pelo menos um quarto do PIB nacional, segundo investigações do Senado e do Tribunal Superior de Contas.
O próprio Moïse, suas empresas e uma dezena de seus altos funcionários estariam implicados no evento. Diante desse processo de remobilização popular, que começava a exigir sua renúncia, Moïse iniciaria a extensa deriva autoritária que viemos analisando e documentando nos últimos anos, a qual incluiu: o fechamento do Parlamento, a intervenção do Judiciário e a nomeação de juízes parciais, o governo através de decretos, o assassinato de jornalistas e opositores, a autorização de massacres em bairros populares da capital, a criação de uma espécie de polícia política conhecida como "Agência Nacional de Inteligência", o boicote às eleições previstas na Carta Magna, a tentativa de modificar ilegalmente a Constituição vigente, e, a partir do último 7 de fevereiro, a sua permanência no poder ainda que expirado o mandato constitucional.
Nos últimos anos, as evidências da cumplicidade de Moïse e o PHTK com o crime organizado e as gangues armadas se multiplicaram, de acordo com investigações e denúncias de organizações de direitos humanos como a Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos do Haiti (RNDDH) e a Fundação Je Klere. Gangues que, vale destacar, cresceram exponencialmente em coincidência com o ciclo de mobilização popular, que inferimos ser uma espécie de "solução paramilitar" para o problema que enfrentava o establishment em uma área tão estratégica como a Bacia do Caribe.
De fato, uma das primeiras hipóteses, que circulou amplamente pelo país no dia do assassinato, era a de que um desses grupos, treinados, armados e financiados contra o próprio poder político, e que ganharam autonomia e capacidade operacional, poderia ter sido o responsável por devorar um dos seus progenitores.
No plano internacional, principalmente a partir de 2019, Moïse fortaleceria seus laços com os Estados Unidos e o governo Trump, tornando-se um lobista dos interesses norte-americanos em organizações regionais como a OEA, reconhecendo o autoproclamado Juan Guaidó como presidente "encomendado" da Venezuela, abandonando a plataforma energética Petrocaribe, sabotando espaços de integração regional como a CARICOM e expressando apoio e simpatia por diversos regimes neoliberais e paramilitares do continente. Isso lhe daria uma espécie de imunidade e garantiria sua blindagem internacional.
Gendarmes da paz?
Já faz algum tempo que estamos analisando a possibilidade de utilização de duas alternativas para resolver a crise haitiana "de cima", esta que se explica "de baixo" pela incapacidade do Estado e da classe política de gerar um mínimo consenso social em torno um dos projetos sociais mais desiguais e injustos do planeta, em cujas figuras de horror não vamos abundar aqui.
Trata-se de duas estratégias utilizadas pela oligarquia haitiana, a burguesia importadora e seus parceiros transnacionais desde pelo menos o século passado: o recurso às ditaduras “nacionais”, sejam de natureza militar como a do general Raoul Cédras, ou de tipo paramilitar, como a do clã Duvalier. Ou o recurso às ocupações internacionais, desde a ocupação estadunidense de 1915-1934 até os 15 anos das missões militares multilaterais da ONU de "paz e justiça", que invadiram o país entre 2004 e 2009 através da MINUSTAH e MINUJUSTH.
Desde 2018 e 2019, várias autoridades de Estado e apoiadores políticos da oposição conservadora têm viajado, de forma pública ou clandestina, assiduamente aos Estados Unidos para negociar, como alternativa, apoio para algumas dessas "soluções". E elas envolvem invariavelmente a competição técnica, política, econômica e armamentista norte-americana.
Os elementos catalisadores da crise se aceleraram com a chegada ao poder do Partido Democrata, já que algumas de suas frações internas passaram a pressionar por algum tipo de pseudonormalização institucional no país de seu fiel, mas incômodo aliado. Isto se devia à dificuldade de explicar aos seus setores mais "progressistas" o porquê do apoio de um governo que não realizava eleições, que era governado por decreto, que havia fechado o Parlamento, que deslocava e prendia jovens, que criava por decreto uma polícia política, que assassinava oponentes políticos e autorizada repetidos massacres.
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Daí a proposta de um calendário eleitoral maratônico, cuja obrigatoriedade enfrentava, à medida que se aproximava a data de sua concretização, a prova inapelável de que Moïse era incapaz de garantir as condições mínimas de segurança, paz e harmonia para a realização de algum tipo de eleição. Era algo que poderia facilmente abrir a caixa de Pandora, "reacelerar" a mobilização popular e colocar milhões de pessoas de volta nas ruas. Porém, o que ninguém poderia prever é que o cenário de escolha, por parte das classes dominantes, de alguma dessas "soluções" – a ditadura ou a ocupação – seria adiantado desta forma com um assassinato e seu consequente vazio de poder.
Edição: Arturo Hartmann