Quarto estado em número de feminicídio no país durante a pandemia, o Rio Grande do Sul ganhou, nesta terça-feira (5), mais uma ferramenta para as vítimas de violência doméstica no estado. De autoria do deputado estadual Jeferson Fernandes (PT), o Projeto de Lei 95/2020, que dispõe sobre abrigamento para mulheres e crianças vítimas de violência durante a pandemia, foi aprovado pela Assembleia Legislativa do estado por 48 votos favoráveis e um contrário, e segue agora para sanção do governador.
De acordo com o levantamento do Levante Feminista contra o Feminicídio no RS, tendo como fonte a Secretaria da Segurança Pública e o Coletivo Feminino Plural, entre 2012 a 2020, o RS registrou 62.403 ameaças, numa média de 40.267 ao ano; 212.547 lesões corporais, numa média de 23.616 ao ano; 14.350 estupros, uma média de 1.594 ao ano, 837 feminicídios consumados, uma média de 93 ao ano e 2.422 tentitivas de feminicídios, uma média de 302 ao ano, totalizando 92.559 casos de violências contra as mulheres em nove anos.
Esses dados foram entregues, em um documento da Campanha Nem Pense em Me Matar, impulsionada pelo Levante Feminista Contra o Feminicídio no RS, ao presidente da Assembleia Legislativa, deputado Gabriel de Souza (MDB), no dia 22 de junho deste ano.
Ainda sem resposta, o documento reivindica o envolvimento do órgão na aprovação de leis de interesse das mulheres, assim como na implementação das leis já existentes. “Uma das demandas foi pela colocação na pauta da Assembleia o PL 95/2020, por estar em coerência com a Lei Maria da Penha e com a Lei 14.022, que previu a intensificação de medidas na pandemia”, aponta a jornalista e cientista política, integrante do Grupo Operativo Nacional do Levante Feminista Contra os Feminicídios, Télia Negrão.
A jornalista acrescenta que no documento também foi solicitado, entre outros pontos, que seja priorizado e se atue favoravelmente na análise dos projetos de lei e outras medidas autorizativas que visem eliminar a violência contra as mulheres no Rio Grande do Sul, com medidas de prevenção, atendimento e acolhimento, e a responsabilização dos agressores e assassinos de mulheres, de acordo com o espírito da legislação nacional. Pede também que a Assembleia trabalhe pela efetivação das Leis estaduais existentes, tendo como referência as Leis Maria da Penha e Contra o Feminicídio e Violência Sexual, que estabelecem os princípios orientadores.
Conforme explica Télia, a base das solicitações é a constatação, por parte do movimento feminista, da falta de medidas efetivas para enfrentar a violência. Em especial através de serviços em rede, de âmbito estadual, como as delegacias, casas abrigo, centros de referência especializados, juizados de violência doméstica e familiar, defensoria pública especializada, todos eles previstos na Lei Maria da Penha.
“Com a extinção da Secretaria de Políticas para as Mulheres, que assegurava a coordenação das políticas e orçamento, a desativação do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, como mecanismo de monitoramento e controle social, e o fim da Rede Lilás que coordenava um sistema de políticas, o enfrentamento à violência e às desigualdades de gênero sofreram fortes retrocessos", afirma. "É inaceitável o número de feminicídios no estado, cerca de um a cada três dias, e que acumulam até o momento 47 casos. A cada feminicídios ocorrem muitas tentativas, que não têm sido evitadas pelas políticas públicas. Tratam-se de sobreviventes de tentativas de assassinatos, que ficam com sequelas físicas e psíquicas, famílias traumatizadas e o sentimento de injustiça pela falta de medidas reais e concretas”, complementa.
Para ela, a aprovação do PL 95/2020 vem ao encontro de uma necessidade real de abrigamento de pessoas que se encontram numa situação limite e que, pela ausência de medidas, permanecem na companhia do agressor.
Pandemia e a violência em isolamento
“Infelizmente se confirmou o alerta das Nações Unidas quanto ao possível incremento das violências em função da maior permanência no espaço privado na crise sanitária. Segundo temos notícias, no ano de 2020 caíram as notificações, em especial dos abusos sexuais no primeiro semestre, chegando a 53% em relação ao ano anterior, e no final do ano chegamos, mesmo assim, com cinco estupros de crianças e adolescentes por dia no Rio Grande do Sul. Isso e muito preocupante", expõe a deputada federal Maria do Rosário (PT), presidente da Frente Parlamentar Mista da Criança de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente e autora da Lei 14.022/2020.
A Lei, que completou um ano nesta quarta-feira (7), prevê a intensificação da Lei Maria da Penha na pandemia e estende seus efeitos para crianças e adolescentes, idosos e pessoas com deficiência. Conforme explica a parlamentar, o motivo desta extensão se deve à característica em comum da maioria dessas violências, que é sua perpetração no espaço privado, a casa, por pessoas conhecidas e de relações de afeto, muitas vezes sem testemunhas e sem possibilidade de denunciar.
“Essa dificuldade se agravou na pandemia. Isso nos traz outro alerta, que é a função protetiva da escola, com espaço de denúncia e escuta das crianças pelas professoras, e também o papel socialmente construído das mulheres, em especial das mães, em relação às crianças e adolescentes e a necessidade de assegurar os meios para que possam sair de situação de extrema violência que as atinge no âmbito doméstico, tendo não raro como única alternativa deixar a casa”, destaca.
A violência de gênero é insidiosa, construída no processo das relações e atinge momentos de maior gravidade, que podem chegar ao feminicídio, e vem produzindo vários alertas ultimamente, destaca Maria do Rosário. “Quando uma mulher é morta na frente de seus filhos, no ambiente da casa, temos uma mensagem muito triste, a de que é possível tirar a vida de pessoas por ciúme, por descontentamento em função à expectativa de papéis, como os serviços domésticos, pelo exercício do poder na base da força. É preciso que se cumpra a Lei 14.022, que é abrangente, pois como uma lei nacional deve ser implementada, tendo o estado um papel fundamental.”
Situação gaúcha e a importância da lei
“No governo Leite tudo piorou muito. Em 2019 nós já éramos o terceiro estado brasileiro que mais matava mulheres. 2020 quando começou a pandemia nos tornamos o quarto estado que mais matou mulheres”, destaca a coordenadora do Força-Tarefa Interinstitucional de Combate aos Feminicídios, Ariane Leitão.
De janeiro deste ano, até o final de junho, de acordo com a Secretaria da Segurança Pública, foram registrados no estado 15.643 casos de ameaça, 8.484 de lesão corporal, 48 feminicídios consumados, 123 tentativas e 931 registros de estupros. Conforme destaca Ariane, que também é advogada feminista e especialista em Direitos Humanos, estupro foi o crime que mais teve notificação na pandemia, ao mesmo tempo em que foi o crime mais subnotificado.
"Se ele é o mais subnotificado e cresceu a notificação dele mais que todos os outros é porque a coisa está realmente complicada, está acontecendo muito estupro em virtude do isolamento social. E dentro deste dado que aponta que, em média, cinco mulheres são estupradas no RS por dia, a maioria é estupro de vulnerável, ou seja, são crianças até 14 anos de idade. A situação é realmente muito séria, grave”, frisa a advogada.
Para a deputada estadual Juliana Brizola (PDT), os números de violência contra mulheres ainda seguem assustadores. “Nós enquanto sociedade e entes públicos, precisamos manter o olhar atento ao tema constantemente. O isolamento social enfrentado na pandemia da covid-19, que obriga situações de maior confinamento, vem aumentando os casos de violência doméstica no Brasil. É dever do Parlamento formular, de forma permanente, políticas públicas que protejam a vida dessas mulheres”, afirma.
De acordo com a parlamentar, a formação de políticas públicas que combatam a violência doméstica e familiar e os feminicídios são fundamentais e necessárias para a sociedade. “Não podemos nos omitir frente à grave situação que milhares de mulheres e seus dependentes passam diariamente. A lei Maria da Penha foi um marco no combate à violência doméstica. Desde a promulgação desta lei, políticas sociais e instituições públicas foram aprimoradas para darem resposta a todas as formas de violência praticadas contra as mulheres. Mas muito temos que avançar e as casas de abrigo são importante ferramenta dentro desse contexto”, afirma.
Na avaliação da deputada estadual e Procuradora da Mulher na Assembleia Legislativa, Franciane Bayer (PSB), um dos maiores desafios para o enfrentamento da violência doméstica como um todo, seja contra as mulheres, crianças ou idosos, que são os mais vulneráveis, é fazer com que a denúncia chegue aos órgãos competentes e que a rede de proteção seja atuante e eficaz. “Sabemos também que a denúncia é a principal arma que temos para combater a violência, mas para que as vítimas se sintam encorajadas a denunciar seus agressores é preciso que a rede de proteção e acolhimento funcione. Muitas mulheres não denunciam por medo, pois não tendo para onde ir ou como se sustentar, precisam continuar convivendo com o agressor”, destaca.
Outro fator preocupante quando se trata da violência que acomete as mulheres é a falta de casas-abrigo. Atualmente o estado conta com 14 para vítimas de violência doméstica, número insuficiente para o atendimento às mulheres e crianças vítimas de violência. “O aumento do número de casas-abrigo disponíveis é um passo muito importante, mas que deve vir acompanhado de campanhas de conscientização, da abordagem desse assunto nas escolas de maneira educativa, visando sempre romper o ciclo de violência, ou mesmo impedir que ele inicie. É importante se pensar em um conjunto de políticas públicas”, afirma a vereadora porto-alegrense Daiana Santos (PCdoB).
Para a vereadora, a aprovação do PL 95 é um grande avanço na rede de proteção às vítimas de violência doméstica. “Já existe a estrutura do sistema de justiça criminal à disposição dessas vítimas, mas, muitas vezes por falta dessa estrutura física de abrigamento, elas acabam voltando ao convívio com os agressores, reforçando e tornando cada vez mais perigoso o ciclo da violência - fato que muitas vezes custa suas próprias vidas. Esperamos que com uma atenção maior do estado à essa pauta, as políticas públicas protetivas e educativas também passem a ganhar maior atenção e mais recursos”, complementa
Segundo o deputado Jeferson Fernandes, o PL é uma medida preventiva, aguardada com muita ansiedade por mulheres e crianças que enfrentam risco real de morte, todos os dias, por estarem expostas aos seus agressores e sem alternativas. Para ele, mais do que os espaços físicos, é necessário garantir o acolhimento das vítimas. “Estas pessoas precisam ser recebidas por equipes preparadas para acolhê-las, com o devido cuidado, porque elas sofrem duas vezes: pela agressão e pela exposição, no momento em que fazem a denúncia e passam a ser perseguidas e ameaçadas pelos agressores. É uma situação traumática.”
Conforme complementa Ariane, a ideia é fazer com que o Estado organize espaços emergenciais para atender essas mulheres, crianças, adolescentes e até idosos, se for um dependente da mulher vítima da violência. “Existe uma lei que já está tratando dos abrigos que foi aprovada recentemente", afirma, em referência ao PL 102/2019, que dispõe sobre a criação e regulamentação de casas de abrigo para mulheres vítimas de violência, assim como assistência psicossocial e jurídica e o acolhimento dos filhos das vítimas de violência. "A aprovação do PL é uma grande vitória do movimento feminista, uma vitória das mulheres gaúchas como um todo. Tivemos deputadas de várias matizes ideológicas trabalhando conosco, votando conosco”, sublinha.
Falta de recursos é uma grande preocupação
Na avaliação da deputada Franciane, o RS está avançando no que diz respeito a políticas públicas de proteção a mulheres e seus dependentes. Conforme informa a parlamentar, foi aprovado recentemente na Assembleia Legislativa a criação de oito Promotorias de Justiça especializadas, com atuação na vara da violência doméstica e familiar contra as mulheres. “Outras iniciativas importantes para frear os índices de violência e feminicídio tramitam na Casa. Mas é preciso fazer um alerta. Muitas vezes, por melhor que sejam as intenções, as leis acabam esbarrando em um problema para que sejam realmente efetivas que é a escassez de recursos”, pontua.
No mesmo sentido, a deputada estadual Luciana Genro (PSOL) afirma que o PL aprovado é importante porém é autorizativo, só terá efeito se houver recursos no orçamento para sua implementação. “Precisamos de políticas públicas educativas, repressivas e também mitigadoras da violência contra as mulheres. Infelizmente não temos nada disso deste governo. Vamos lutar para que o Orçamento de 2021 contemple estas políticas”, aponta.
Ela recorda que em 2019 aprovou uma emenda destinando R$ 250 mil para o Centro Estadual de Referência da Mulher Vânia Araújo Machado (CRM) e R$ 250 mil para o Conselho Estadual da Mulher, ambas convertidas em compras de vagas em abrigos para mulheres vítimas de violência no programa Acolhendo Vidas. Em 2020, aprovou também um emenda de R$ 400 mil para compra de vagas em abrigos para mulheres em situação de violência, em Porto Alegre, Canoas, Santa Rosa e Caxias do Sul (cidades apontadas pelo CRM com falta de vagas) e de R$ 100 mil para fortalecimento e manutenção do CRM.
A deputada Franciane, juntamente com outras colegas deputadas, apresentou um projeto que cria o Fundo Estadual para Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. “A intenção é ter um mecanismo para receber recursos e, assim, financiar ações como o abrigamento de mulheres em situação de violência e programas de capacitação para que tenham condições financeiras de seguir em frente, tendo em vista que muitas são sustentadas pelo próprio agressor”, finaliza.
Para Maria do Rosário a aprovação do PL 95/2020 é muito importante, mesmo que a pandemia já tenha avançado um ano e meio. “Ela sinaliza a necessidade permanente de políticas públicas de atendimento às mulheres e seus filhos, um abrigo longe do agressor, que deve ser responsabilizado para que a violência não se normalize e não se naturalize”, conclui.
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Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira