No dia 27 de maio deste ano, o Brasil viu o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) fazer sua primeira visita a um território indígena. A cidade escolhida foi São Gabriel da Cachoeira, no norte do Amazonas, onde visitou a Terra Indígena Balaio e a comunidade Maturacá, na TI Yanomami. Na primeira, quem o recebeu foi Álvaro Tukano, liderança histórica na luta pela demarcação no Alto Rio Negro. A presença do ativista nas fotografias oficiais chocou muitas pessoas. Bolsonaro é um declarado inimigo dos direitos indígenas.
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Em 1º de julho, Daiara Tukano, filha de Álvaro Tukano, publicou uma carta em que repudiou Bolsonaro. Presente nas redes sociais, ela virou alvo de insultos, agressões e ataques misóginos por parte de bolsonaristas. E, ao mesmo tempo, viu seu pai ser atacado por opositores ao presidente.
A estratégia de Bolsonaro, como tem sido prática desde que assumiu o poder, mais uma vez tinha a intenção de “dividir muitas famílias, de gerar esse desgaste emocional e constrangimento”, nas palavras de Daiara.
Em entrevista exclusiva à Amazônia Real, Daiara expõe sua contrariedade ao presidente Bolsonaro, assim como defende a atitude do pai em tentar dialogar com esse governo. Formada em artes visuais e mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília (UnB), Daiara, hoje com 38 anos, é uma ativista do movimento indígena. Sua pesquisa de mestrado teve foco sobre o direito à memória e à verdade dos povos indígenas.
Ela tem se dedicado a estudar a história das políticas indigenistas, a formação e a caminhada dos movimentos indígenas. E é com os conhecimentos da academia e os tradicionais, adquiridos de seus ancestrais, que fez com que Daiara publicasse a carta expondo sua revolta:
“Acho vergonhoso um governo se prestar a esse tipo de manipulação do sofrimento, para ainda debochar da miséria, se promover com a dor e descontextualizar tantas lutas e histórias”. Abaixo, a íntegra de sua entrevista:
Amazônia Real – Você foi duramente criticada após publicar uma carta, repudiando a visita de Bolsonaro à Terra Indígena Balaio, onde o seu pai Álvaro Tukano é líder.
Daiara Tukano – Tem muita gente que se sente na liberdade de questionar, de expressar sua surpresa, sua revolta, seu descontentamento sobre essa situação atacando o meu pai ou a minha pessoa, minha família ou meu povo. Senti a necessidade de esclarecer como funciona um pouco essa dinâmica que esse governo tem feito de dividir muitas famílias, de gerar esse desgaste emocional e constrangimento.
Houve um momento em que Bolsonaro nem era considerado no Congresso. Era como uma figura exótica, mas já falava muitas barbaridades. Na época, ele insultou a deputada Maria do Rosário [PT]. Disse que ela só não merecia ser estuprada, porque era feia. Participei de manifestações contra esse posicionamento extremamente violento, misógino.
Foi também o momento em que estava começando a construir essa coisa de “mito”. E apareceram pequenas células de seguidores virtuais do Bolsonaro, que se organizaram para atacar manifestantes feministas, que questionavam a cultura do estupro. Eu vi os bolsominions surgirem.
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Amazônia Real – Já sofreu ameaças?
Daiara – Eu já fui ameaçada de morte, de estupro por esses grupinhos virtuais. Quando a gente fez as denúncias, a Polícia Federal apontou que na maioria eram adolescentes de 14 e 16 anos. Nos últimos anos esse discurso de ódio foi crescendo e ganhando proporções muito maiores e ferindo muitas questões que são de saúde mental, de identidade, e de tantas pessoas: de mulheres, de negros, de indígenas e outros.
Tenho aprendido muito acompanhando muito a luta dos movimentos sociais. Na Esplanada dos Ministérios, assisti à fala dele fazendo elogio à tortura. É muito triste ver pessoas que me conhecem e que sabem disso tudo e ainda assim se sentem na liberdade de me interpelar ou de me agredir, por conta dessa polarização que tem crescido. A gente tem que tentar atravessar esse momento tão desafiador, insistindo num diálogo mais humano.
Não é por que uma liderança ou uma aldeia decidem cobrar do Estado ou até dialogar com o Estado para questões que lhe são próprias de seu território, que esse povo, que essas pessoas, que essas famílias estão de acordo com todas as outras barbaridades que esse sujeito tem falado.
Amazônia Real – Como analisa o discurso de Bolsonaro sobre a mineração?
Daiara – Pessoalmente me coloco em oposição ao governo Bolsonaro. Eu vejo que toda essa história que começou diante da necessidade de se reparar uma estrada (a BR-307) e se consertar uma ponte e acabou sendo manipulada para tratar dessa questão muito cabeluda da mineração. E quando é feito esse tipo de política, que a gente pode chamar de politicagem, se tende a superficializar essa discussão.
O presidente da República tem um desconhecimento, uma ignorância muito grande, sobre as realidades indígenas. Eu acredito que suas falas são carregadas de falta de informação, de preconceito e de um certo ódio muito cruel. Sua fala demonstrou uma incapacidade de escutar o que deve ter sido falado pelas lideranças indígenas presentes nessa ocasião.
Amazônia Real – E o interesse dele em conseguir apoio das lideranças que querem o garimpo?
Daiara – É lamentável usar esse tipo de situação de conflitos ou necessidades locais, como palanque para promover seus interesses partidários e econômicos próprios. A pauta principal de Jair Bolsonaro no Congresso sempre foi o garimpo, a mineração. Depois ele se juntou ao agronegócio. Ele já falou publicamente que era um hobby dele, ser garimpeiro, que se ele pudesse correria para um garimpo para ‘relaxar’.
Ele representa interesses que são de um grupo muito reduzido e de uma visão de mundo muito reduzida. Essa postura do governo de se colocar diante desses debates dos povos indígenas, não apenas com relação ao garimpo, mas com relação ao arrendamento, ao agronegócio, à presença do agronegócio em terras indígenas, tem sido socialmente irresponsável.
A gente viu Ricardo Salles (ex-ministro do Meio Ambiente) e a ministra da Agricultura (Tereza Cristina) visitando territórios indígenas no Mato Grosso onde certas lideranças defendem o arrendamento. Esse tipo de palanque sempre é usado de uma maneira a desconstruir a luta coletiva. É uma posição de dividir famílias, dividir povos e fragilizar os diálogos e as comunidades para abrir uma brecha para que essas coisas aconteçam mesmo que à força.
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Amazônia Real – Sobre a questão da terra indígena Balaio, que acabou sendo usada pelo presidente Jair Bolsonaro para fazer defesa de tratamento precoce, medicação sem eficácia para Covid-19. Na ocasião, ele mostrou desconhecer até o nome do povo indígena que vive na comunidade Tukano, os chamando de “os balaios”. Me explica o contexto desta terra indígena.
Daiara – O povo Yepá Mahsã, mais conhecido como Tukano, vive na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela. No Brasil, somos mais de 6 mil pessoas que residem em diversas terras indígenas, sendo uma delas a TI Balaio. Antes de ser demarcada, ela surgiu diante do movimento de resistência à gestão do SPI (Serviço de Proteção aos Índios, órgão indigenista antes da criação da Funai), e aos internatos salesianos na região do Rio Negro.
Porque, no início do século 20, passamos por um momento de uma grande perseguição cultural, da demonização das cerimônias dos nossos pajés, e também de exploração da borracha que gerava muitas situações de escravidão. As famílias, os clãs que se instalaram, no início do século 20 e metade do século 20, estavam querendo fugir dessas violências. Não existe “povo balaio”. As famílias que vivem lá são majoritariamente Tukano e Desano que saíram do [rio] Vaupés.
Amazônia Real – Por que o local foi escolhido? A reserva dos Seis Lagos que fica na TI Balaio é uma das maiores de nióbio do mundo.
Daiara – Escolheram esse local por ser próximo a sítios sagrados importantes para nossos povos. O Morro dos Seis Lagos é considerado um lugar muito sagrado, onde a gente nem entra dentro daquela água, porque tem espíritos antigos que fazem parte da nossa criação. O Pico da Neblina é um lugar extremamente importante, além de ser a montanha mais alta do Brasil.
Existem motivos culturais e históricos pelo qual nossas famílias, nossos clãs, se instalaram nesse lugar muito antes de imaginar de ter conhecimento de que ali também existe essa grande mina de nióbio e outros minerais presentes.
Amazônia Real – Como foi o processo de demarcação da terra indígena?
Daiara – No momento da redemocratização do Brasil, onde inclusive meu pai [Álvaro Tukano] foi uma figura muito presente – durante a Constituinte ele foi assessor do [deputado federal] Mário Juruna (1943-2002) – ele esteve na articulação da União dos Povos Indígenas, que foi uma representação fundamental para construção de todo o processo constituinte e da homologação dos direitos indígenas.
O nosso povo teve uma espera de mais de 20 anos pelo reconhecimento legal do nosso território Balaio. Meu pai ficou em Brasília acompanhando o processo até conseguirmos a homologação da terra. Nesse período, também aconteceu todo o processo de reconhecimento da área de preservação do Parque Nacional do Pico da Neblina. Então, é um território que tem uma dupla legislação e, desde que aconteceu essa dupla afetação, começou a ter um conflito no acesso às aldeias.
É uma terra que é acessível por uma estrada, que é a BR-307. Antes da demarcação da TI e da criação do Parque Nacional, essa estrada ia até Cucuí, na fronteira com Colômbia e Venezuela, passava até ônibus. Fui à minha aldeia de ônibus quando era criança. Existia um trânsito, uma possibilidade maior de ver os parentes, de ir para São Gabriel da Cachoeira. Mas nos últimos 20 anos parou de haver uma manutenção.
Para a população da terra indígena Balaio, a questão da BR-307 sempre foi mais urgente que essa história de mineração. A estrada tinha condições terríveis, aconteceram muitos acidentes fatais.
Eu já andei em algumas estradas do Brasil, mas aquela com certeza foi a pior porque num trecho de 100 quilômetros, os toyoteiros cobravam 2 mil reais para levar de São Gabriel da Cachoeira até a aldeia Balaio. Agora eu te pergunto: que família indígena tem 4 mil reais (custo de ida e volta) para pagar? Quem que tem isso?
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Amazônia Real – Por que não houve a manutenção da BR-307?
Daiara – A manutenção da estrada sempre era travada por conta da legislação ambiental. Como existe uma sobreposição de territórios, de terra indígena e de parque nacional, isso acabou gerando um conflito de interpretação das leis.
A gestão do Parque Ambiental, está sobre a condução do Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio) e que tem sempre colocado as suas preocupações com relação à contaminação de território, e orientado que dentro do parque nacional não pode retirar madeira para consertar as pontes nem piçarra para a manutenção da estrada mesmo que esses materiais existam no território.
Todos os pedidos de manutenção acabavam se perdendo numa disputa burocrática e as pessoas continuavam na pior. É uma lástima, porque os direitos indígenas enquanto direitos originários e cláusula pétrea deveriam prevalecer diante das demais legislações, incluindo nosso direito de ir e vir.
Amazônia Real – E a questão do nióbio, que sempre foi uma das bandeiras do presidente Bolsonaro?
Daiara – A presença de nióbio na TI Balaio e no Parque Nacional Pico da Neblina veio à tona no início da década de 1970 pelas pesquisas do projeto Radam. A pressão do lobby da indústria da mineração tem aumentado desde então. Quando surgiu o estudo do Parque Nacional também aumentou a visibilidade da riqueza mineral desse território. Os territórios indígenas são da União.
Durante o processo Constituinte, a gente não conseguiu estabelecer direito de propriedade, no sentido de posse, de cartório. A gente não é dono da terra. A terra pertence ao Estado brasileiro e foi colocado esse ponto: temos a posse, o usufruto tradicional da superfície, mas tudo que tem embaixo é do governo. Isso gera uma série de complicações. Como pode o Estado ter acesso ao seu subsolo sem afetar minimamente pessoas que vivem em cima dessa superfície?
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Amazônia Real – É uma questão muito complicada…
Daiara – Demais! Também a gente estava falando de garimpo. Como é que funciona essa gestão, essa distribuição, dessa tal riqueza? Eu compreendo os países quererem manter as suas reservas de minério, de ouro, toda essa questão econômica, mas eu não vejo em lugar nenhum do mundo, nenhum território onde haja exploração mineira e que a população local seja de fato beneficiada. O garimpo está aumentando em várias regiões.
A Terra Indígena Yanomami é uma das mais afetadas: as balsas de garimpo têm invadido o município de Santa Isabel do Rio Negro (AM) e pouco tem se falado sobre isso. O garimpo vem acompanhado de uma série de violências que aumentam a vulnerabilidade social da população indígena e ribeirinha. Me refiro a situações de trabalho escravo, aumento de prostituição, alcoolismo, violência intrafamiliar e êxodo das comunidades, além do enfraquecimento das tradições.
Para aqueles que defendem a legalização do garimpo, um dos argumentos talvez mais plausíveis seja que, com um possível monitoramento dessa mineração, os impactos sociais possam ser mais controlados e que não se repita uma experiência de Serra Pelada. Vejo que, de ambos os lados, existe um medo de que nossa população seja atropelada pelo avanço dessa exploração mineira e vivamos mais uma fase de genocídio.
Essa discussão tem gerado divisão entre os diferentes povos da região, inclusive meu povo. Eu pessoalmente acredito que os impactos da mineração seja legal ou ilegal continuarão sendo terríveis.
Amazônia Real – Como vê os atuais ataques contra os povos indígenas?
Daiara – Estamos em um momento histórico muito difícil, de ataques, no sentido de todo esse processo de desmantelamento dos direitos indígenas que está acontecendo, desde governos anteriores. Quando chegou um governo que era considerado mais progressista, do Partido dos Trabalhadores, já começou uma articulação muito forte por parte de interesses de grandes indústrias, majoritariamente do agronegócio e da mineração, para desmantelar e desconstruir toda a estrutura de defesa e de implementação dos direitos indígenas.
Essa desarticulação das instituições, o enfraquecimento político e estrutural da Funai, passando pelo corte de recursos físicos, materiais, humanos, em todas as pastas, de saúde, de educação e da própria Fundação Nacional do Índio, tem sido um processo muito violento de desgaste do acesso e da implementação desses direitos.
O crescimento desse discurso de ódio contra os povos indígenas vem inflamando grupos de garimpeiros, e madeireiros, arrendatários, não apenas na região amazônica, mas também no extremo Sul do país. Hoje, os países onde mais se matam defensores dos direitos humanos e do meio ambiente no mundo são o Brasil e a Colômbia. E dentro desse grupo de defensores de direitos humanos e do meio ambiente, a grande maioria são pessoas indígenas também.
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Amazônia Real – Como analisa a situação dos Yanomami e dos Munduruku?
Daiara – Quando se fala do povo Yanomami, a gente poderia até considerar como de recente contato. Não fizeram contato em 1500, fizeram contato já no século 20. Desde o primeiro contato com esses povos, vêm crescendo o nível de violência. Teve momentos em que, talvez, as violências, os ataques, as invasões, pelo garimpo ilegal foram menos noticiados.
Então, se hoje a gente vê essa situação em que aldeias indígenas são literalmente bombardeadas, metralhadas por grupos que defendem a mineração ilegal, é porque também se criou um contexto de promover essa violência. Isso é um absurdo! Está começando a ter manifestações de garimpeiros, como se fossem manifestações de direito trabalhista. O governo está abrindo espaço para que isso aconteça.
Existe uma parte de responsabilidade da gestão dos estados, do Pará, de Roraima, do Amazonas, na figura dos governadores e prefeitos. E, claro, também do presidente da República, que tem aberto espaço para a legalização e para se debater de fato a implementação dessa prática garimpo nos seus estados.
Muitas vezes, eles representam interesses de grupos econômicos, de grupos industriais e até de pequenos lojistas nos seus estados, nos seus municípios, onde eles estão interessados em promover ali as suas indústrias e bases e se reeleger para manter essa dinâmica de poderio político.
Amazônia Real – E sobre essa questão dos crimes ambientais que vêm acontecendo nas terras indígenas motivados pelo discurso favorável à mineração e aos grileiros?
Daiara – Eu vejo que faz parte de um longo caminho de processo colonial. Essa visão de que o território deve ser considerado como um bem ou um recurso a ser explorado, e de uma visão de economia capitalista que é muito conflituosa com as visões de mundo e de víveres indígenas. O esforço para se desconstruir toda a visão de conservação é enorme.
Eu estou agora aqui no Pará, na frente de uma loja de construção que tem um cartaz enorme para garimpo. É a “Leroy Merlin” [rede de lojas francesa] dos garimpeiros. Então é muito difícil. Como que essas pessoas acham que elas vão estar bem no mundo, qual é a visão de riqueza, de conforto, de bem-estar delas?
Essas pessoas acham realmente que uma vida saudável é ter aquele modelo de vida que está na propaganda, de ser proprietário de uma casa, de um carro, de ter esse estilo de vida sem pensar se estão se alimentando bem, de estar vivendo em comunidade, de ter uma segurança familiar, eu diria até psicológica, porque são modelos de mundos, onde as pessoas se relacionam de maneira profundamente diferente.
Estou falando isso porque acho interessante pensar o meio ambiente de uma maneira mais complexa, até como dizem os nossos colegas, de uma maneira socioambiental. É toda a relação com o mundo e a relação entre nós, enquanto sociedade. Esse discurso do capitalismo sempre vai trazer uma insatisfação presente e o desejo de querer consumir e adquirir mais e mais incentivando também essa exploração.
E não é apenas dos recursos naturais, mas até a exploração dos modelos de trabalho, como diria Paulo Freire, que falava que o sonho do oprimido é tornar-se opressor. Falar na preservação do meio ambiente, e na defesa dos direitos ambientais, também inclui trabalhar no discurso, assim, numa ideologia.
Compreender que um território de floresta é o que vai garantir água potável, inclusive para os centros urbanos. Considerar que a manutenção da biodiversidade, é fundamental para manter o equilíbrio na terra, e que fazemos parte deste ciclo de vida.
Amazônia Real – Está preocupada com a militarização na gestão pública e em especial no caso da Funai?
Daiara – Muitas vezes penso que o Brasil nunca teve acesso pleno à democracia. Esse período que chamamos historicamente de ditadura militar teve uma recessão declarada dos direitos democráticos deixou marcas muito profundas na cultura brasileira e na maneira como as pessoas entendem que a nossa sociedade possa se organizar.
Eu nasci ainda no início da década de 1980, no final da ditadura militar, não tenho uma vivência como a dos meus pais, da geração anterior, que foi extremamente criminalizada e passou por uma série de violências que até hoje são consideradas tabu. As pessoas não têm os conhecimentos dos crimes que foram cometidos durante esse período da ditadura, a quantidade de assassinatos, envenenamentos e verdadeiras chacinas que aconteceram durante as gestões militares.
Não têm conhecimento dos crimes e das torturas praticadas nas prisões indígenas, que foram instituídas no (período) do SPI – antigo órgão indigenista, substituído pela Funai, em 1967. Não têm conhecimento dos crimes cometidos inclusive contra crianças, nos internatos indígenas, em várias regiões não apenas a região do Rio Negro.
Esse modelo foi muito duro, cruel e lamentavelmente tem pessoas que continuam glorificando esse modelo de gestão da sociedade, ignorando todos os crimes e também que existem muitas violências que continuam sendo praticadas. Têm sido feitas indicações políticas de gestores sem conhecimento da questão indígena.
Conheço muitos servidores antigos que ficam extremamente chocados e frustrados em ver como a Fundação Nacional do Índio está sendo dirigida. Porque a Funai não foi criada para isso. Ela foi criada no momento de desconstruir todas as violências praticadas na ditadura militar. Então, ter um retorno a essa militarização consegue gerar frustrações maiores no sentido de que, de fato, está sendo uma dificuldade enorme se construir democracia.
As indicações a cargos de confiança, de gestores de carreira militar que são mais gestores técnicos, mas que não conhecem profundamente a história do Brasil, a história dos nossos povos e de toda a complexidade que nos cerca. Em 1916, o Código Civil proclamou os indígenas incapazes. Em 1973 (com o Estatuto do Índio), passamos a ser relativamente incapazes.
Só em 1988 (com a Constituição) a tutela do Estado é retirada e mantida apenas para povos isolados. Foi uma luta a gente conseguir os pouquíssimos direitos que temos na nossa Carta Magna. Nós vivemos ainda hoje num país extremamente racista.
Amazônia Real – Durante a sua trajetória nos estudos e na militância, sofreu muito preconceito?
Daiara – Não tive a oportunidade de crescer na minha aldeia, mas já tive a oportunidade de conhecer vários outros territórios indígenas no Brasil. Pude ver a tristeza dos rios poluídos pelo garimpo, a tristeza daqueles que sentem saudades dos rios que um dia foram vivos. Entrei na universidade para estudar artes.
Quando fui chegando à fase adulta consegui compreender essas histórias da minha família, da minha vida, e entender mais coisas sobre o movimento indígena. Procurei aprender devagar como que eu poderia colaborar de alguma forma. Toda minha formação me abre o olhar para ser testemunha de como é forte e violento o processo de genocídio, da destruição, do acabamento do conhecimento de uma tradição, o modo de vida, de uma história e de uma identidade.
Tive que presenciar a morte do meu avô, o falecimento de vários tios. Eu vejo o êxodo da floresta, dos jovens que não voltam para seus territórios. Vi que o lugar onde o meu bisavô está enterrado, onde meu pai nasceu, que antes era uma grande aldeia, agora só tem uma casa. Eu vejo os ataques a nossa população na nossa região que fica ali no fogo cruzado entre garimpeiros, traficantes, tantos grupos e tantas outras autoridades.
Acredito muito que através da educação e da cultura a gente possa compartilhar essas histórias e fortalecer as nossas identidades. É importante sair dessa crise de um Brasil que rejeita seus povos originários, que rejeita os negros, os indígenas, para que possamos ter um modelo mais justo de sociedade.