No último dia 26 de junho, ganhou repercussão nas redes sociais uma publicação no Instagram de uma escola privada localizada na região de Aldeia, região metropolitana do Recife, a Eccoprime, em que a escola critica uma campanha publicitária da rede de fast food Burguer King contra a LGBTfobia.
Na peça publicitária uma criança diz que não há problema em famílias formadas por um casal de homens ou de mulheres. A escola Eccoprime se manifestou considerando a propaganda um “ataque” e diz que o objetivo da campanha é “promover uma reeducação sexual” das crianças.
De nome estrangeiro e numa região de classe média-alta, a referida escola privada promete uma “educação cristã e bilíngue” e tem no slogan “formando famílias perfeitas”.
Nas redes sociais, as cores e a simpatia das crianças se misturam com vídeos da empresária e diretora da instituição, Andressa Oliveira, pregando contra uma “educação humanista” e vendendo a “necessidade” de colocar Deus e a Bíblia no centro da educação das crianças. A empresária também integra um curso on-line chamado de “Centro de Treinamento de Pais Cristãos”.
::A Escola não é uma empresa::
A publicação da escola contra a campanha da Burguer King foi apoiada por políticos conservadores de Pernambuco, mas também foi alvo de denúncias no Ministério Público de Pernambuco (MPPE).
A Eccoprime é uma das facetas do conservadorismo que tem avançado sobre a educação escolar e de maneira mais explícita nos últimos anos. Campanhas contra o legado do pensador e pedagogo Paulo Freire, contra a pluralidade de ideias que ganhou forma no projeto Escola Sem Partido, a “reforma do Ensino Médio” aprovada pelo governo Temer (2016) e a recente ampliação das escolas militares são parte de um mesmo movimento.
A historiadora Dayanna Louise, mestre em educação e trabalhadora da rede pública de educação de Pernambuco, avalia que a movimentação conservadora na educação não é nova, apenas passou por uma reconfiguração recente. “É um movimento antigo. Desde o primeiro momento a escola surgiu voltada para a educação de homens brancos da elite da sociedade”, lembra a educadora. Os estudos de Dayanna são focados em questões de gênero e sexualidade nas políticas educacionais.
Dayanna lembra que o acesso à educação formal é também um instrumento de poder e é historicamente usada para perpetuar a estrutura social existente há séculos. “Desde os primórdios a educação foi marcada por uma perspectiva de gênero, uma perspectiva étnico-racial, de classe social e de sexualidade muito bem definidas. Então já havia ali uma demarcação sobre quem tem direito à educação, reservada a determinados grupos. É uma lógica de se perpetuar privilégios”, pontua ela.
Os militares, setores de igrejas cristãs e outras organizações historicamente conservadoras já exerciam larga influência sobre a educação, tanto no setor público como no privado. E, segundo a historiadora e educadora, esses grupos se viram ameaçados pelas políticas educacionais promovidas por governos progressistas no Brasil a partir dos anos 2000.
“A partir do início do século 21 passamos a ter uma série de leis, programas e políticas públicas voltadas para a inclusão de grupos historicamente marginalizados. Essa inclusão confronta esse modelo conservador. E esses grupos perceberam que o projeto de sociedade que eles defendem estava ameaçado”, diz Dayanna.
Segundo a estudiosa, esses grupos conservadores são contrários à educação inclusiva. “Eles são contra a inclusão daqueles que historicamente foram excluídos do processo escolar. Os conservadores apenas deram uma nova roupagem para algo muito antigo”, diz ela.
A historiadora aponta ainda que, apesar de acusarem os grupos progressistas de “ideologizar as crianças”, o que os conservadores defendem também é uma ideologia. “Eles se dizem neutros, mas eles não são. Eles têm um projeto muito bem definido para pautas de gênero e sexualidade, mas é um projeto reacionário, que visa salvaguardar as normas e padrões de quem já está em condição de privilégio”, diz ela.
Uma das estratégias dos conservadores seria confundir a sociedade promovendo o medo, em discursos amplamente disseminados em igrejas e nas redes sociais. “Eles partem para a criação de um ‘pânico moral’. Usam o discurso de que falar sobre gênero e sexualidade no espaço escolar é promover o incesto, a pedofilia, é confundir a cabeça das crianças, é destruir valores da família. E esse discurso tem um alcance muito grande”, avalia Dayanna Louise.
Ela lamenta a “compreensão frágil” por parte da sociedade brasileira sobre o debate de gênero e sexualidade. “Se houvesse uma compreensão mais profunda a sociedade entenderia que esses grupos conservadores defendem também um projeto de gênero e sexualidade, mas um projeto que vê a escola a partir de um olhar míope, que não vê a escola como um espaço de diferenças. E a escola é esse espaço plural, que reúne pessoas com diversos marcadores sociais convivendo e aprendendo”, defende a mestra em educação.
Quem tem medo de Paulo Freire?
A compreensão da escola como um espaço de estímulo à diversidade e à pluralidade é uma das marcas do educador pernambucano Paulo Freire (1921-1997), respeitado e estudado em todo o mundo ocidental, mas frequentemente atacado por grupos conservadores brasileiros.
“Paulo Freire pauta uma educação que enfrente o modelo de ‘educação bancária’, que é aquela educação tecnicista, um processo de aprendizagem que não envolve reflexão e questionamento. Então Freire diz que é preciso entender o ato de educar como um ato político, de estimular uma leitura de mundo, de transformar a realidade”, diz Dayanna.
A educadora pontua que, para Freire, a educação vai muito além das normas estabelecidas em livros. “Ele desafia a educação a promover o pensamento para além das regras gramaticais, das fórmulas ou das datas históricas. Ele promove um olhar mais amplo, que compreende a educação como parte da transformação da sociedade”, diz Dayanna Louise.
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O educador pernambucano incentiva participação da comunidade e da família na escola e, principalmente, coloca o estudante como ser capacitado intelectualmente, apto a questionar a sociedade e mundo em que vive. Dayanna considera que esse estímulo à reflexão crítica sobre a sociedade é o que amedronta os conservadores.
“A partir do momento que o estudante pode questionar as regras, esses grupos sociais que estão há séculos ditando as formas de ver e pensar o mundo e aplicando isso às normas educacionais, eles se sentem ameaçados por Paulo Freire”, avalia ela. “Para quem não quer transformar a realidade, Freire é um perigo”, resume.
A historiadora e educadora também aponta que o modelo de educação defendida pelos conservadores, além de reafirmar padrões de gênero, sexualidade, cor e religião, ao negar aos estudantes a reflexão sobre o mundo, eles também mantêm os estudantes seguindo os valores já vigentes na sociedade, sem contestá-los. Para eles, a escola é um espaço meramente preparatório para o mercado de trabalho, sendo o estudante apenas mão de obra.
“Esses grupos dizem que o processo de escolarização serve para que o estudante ‘seja alguém na vida’. Mas o que eles querem dizer com isso? É repetir o padrão ditado pela classe dominante, baseados no individualismo, na exploração do trabalho de grupos subalternos”, avalia Dayanna. “Paulo Freire poderia dizer: ‘todo mundo já é alguém na vida, mas precisamos discutir por que são realidades tão desiguais’”.
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A especialista compartilha com o educador a visão de que a educação é um instrumento para repensar as condições de desigualdade na sociedade. “A escola precisa entender o processo educativo como enfrentamento às desigualdades, não o enfrentamento às diferenças. A escola precisa promover a diferença e enfrentar as desigualdades. Mas eles [os conservadores] querem que a escola faça o contrário”, diz Dayanna.
A sociedade dos conservadores
A historiadora pontua que o modelo de educação reflete o projeto de sociedade dessa elite conservadora que quer manter os próprios privilégios, marginalizando outros grupos. “Eles defendem um projeto de sociedade em que há modelos considerados ‘naturais’, ‘normais’ e importantes de serem mantidos. É uma sociedade pautada pela lógica da branquitude, da elite, da hetero-cis-normatividade, que são perspectivas que naturalizam apenas uma forma de ser e existir”, diz.
Quem não segue o padrão, tende a ser – em maior ou menor medida – jogado para a margem da sociedade. São apenas mão de obra facilmente substituível. “Elas sofrem um processo de abjeção, precarização social, vulnerabilização, considerados cidadãos de segunda categoria. E por isso muitas vezes temos genocídio da juventude negra, da população LGBT, altas taxas de feminicídio, mas isso não ofende esses grupos privilegiados, porque para eles essas vidas só importam como mão de obra”, destaca.
Dayanna Louise também pontua que os privilegiados dependem da existência dos marginalizados. “O sistema precisa de quem foge à norma. Só existem os privilegiados porque existem os explorados. Eles tiram vantagem de haver na sociedade pessoas que são consideradas ‘aberrações’ e que têm negados direitos básicos”.
Além de assegurar vantagens sociais e econômicas, os conservadores ainda usam os grupos marginalizados como “exemplo” a não ser seguido, como se ser diferente do padrão levasse inevitavelmente à precariedade. “Ao marginalizar os grupos ‘diferentes’, os conservadores apontam para os marginalizados e dizem: ‘sociedade, veja o que acontece se você sair das regras’. É uma lógica perversa”, opina a educadora.
A população negra e os LGBTs são parte desses grupos que têm suas expressões culturais, religiosas, estéticas e afetivas combatidas pelo conservadorismo na escola.
“A população LGBT ou a população negra muitas vezes abandona espaços como a escola, justamente porque são espaços em que domina as ‘normas’ que os excluem, assim como exclui pessoas com deficiência, muitas mulheres e qualquer grupos que não tem suas particularidades respeitadas por quem constrói as regras daquele ambiente”, diz Dayanna.
Questionada sobre o papel de grupos cristãos nessa movimentação conservadora, Dayanna Louise lamenta que, na sua avaliação, muitos dos ditos cristãos não compreendem Cristo. “Quando Jesus pede água à mulher samaritana, ele quebra duas barreiras. A primeira é de ele ser judeu pedindo água a uma samaritana, algo que socialmente era visto como humilhação. A segunda é a barreira de gênero”, opina.
“Ser cristão é ser seguidor de Cristo. Mas muita gente não aprendeu a lição de Jesus de quebrar barreiras para ter uma sociedade mais justa. Acho que é preciso repensar esse cristianismo, que muitas vezes tem se associado a discursos de ódio e separação”, conclui.
Fonte: BdF Pernambuco
Edição: Vanessa Gonzaga