No dia 07 de julho, o Ministério da Defesa emitiu nota oficial em que repudiava declarações emitidas pelo senador Omar Aziz, presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga a gestão da pandemia de covid-19.
Assinada pelos comandantes das forças armadas e pelo ministro da Defesa, ele próprio um general, lia-se no texto que as forças armadas “não aceitarão qualquer ataque leviano às Instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”.
À nota institucional somava-se o coro das vivandeiras. Ainda no dia 07 de julho, o Clube Militar manifestou seu apoio à nota da Defesa. Referindo-se à CPI da Covid como “Circo Parlamentar de Indecência”, o comunicado afirmava que a fala do senador Omar Aziz se enquadraria “perfeitamente” para o Congresso Nacional, “onde seus integrantes, em sua grande maioria, não conseguem justificar a origem de seus patrimônios, cuja investigação é sempre bloqueada por uma Suprema Corte que envergonha o nosso Brasil”.
No dia seguinte, a nota-ameaça era reforçada. Matéria veiculada pelo jornal O Globo trazia manifestação de oficiais de que “não aceitariam serem desrespeitados” e prometiam reação mais dura caso fossem citados casos de suspeita de corrupção envolvendo militares.
Segundo o jornal, a expectativa era de que os membros da CPI pensassem “duas vezes” antes de mencionar relação entre as forças armadas e casos de corrupção na Saúde.
O suposto ataque teria sido proferido por Aziz ao se referir ao “lado podre das forças armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo”.
A fala se deu após depoimento de Roberto Ferreira Dias, ex-diretor de logística do Ministério da Saúde e ex sargento da Força Aérea Brasileira, que resultou em pedido de prisão contra o servidor.
Ao comentar a nota da Defesa e o depoimento que a motivou, o senador Randolfe Rodrigues afirmou em Plenário que a fala do presidente da CPI era “uma constatação” acerca de “elementos que não representam as forças armadas” e que poderiam estar envolvidos em corrupção. A fala, uma tentativa de apaziguar ânimos, pecava pelo excesso de complacência.
A ocupação escancarada da administração pública pelos militares é um fato. Levantamento realizado em julho de 2020, indicava mais de 6 mil militares em cargos no governo federal – alguns, ainda na ativa, como é o caso do ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.
Não fosse suficiente, em junho de 2021, o governo federal assinou decreto que transformava em cargos de natureza militar postos ocupados por militares da ativa no Supremo Tribunal Federal (STF), em tribunais superiores, nos ministérios da Defesa, Minas e Energia, dentre outros.
Bolsonaro fez ainda alterações no estatuto dos militares, permitindo que integrantes das forças não tivessem de passar à reserva após período de dois anos em cargos de natureza civil. Na prática, as medidas formalizavam a militarização da administração pública.
A militarização, por certo, se estendeu também à Saúde. Os militares ocuparam a pasta com suas patentes e fardas. Apenas no primeiro mês da gestão de Pazuello, um general da ativa, foram 30 os militares alocados na pasta.
Um desses militares foi o coronel Elcio Franco. Número 2 do Ministério da Saúde na gestão Pazuello, Franco ocupava a Secretaria Executiva da pasta. O coronel do Exército foi recorrentemente mencionado por Roberto Dias em sua oitiva na CPI da Covid, tendo sido enfaticamente apontada sua responsabilidade pelas negociações de imunizantes contra Covid-19.
Reforçando seu argumento, Dias citou ainda a falta de autonomia em seu próprio setor, o Departamento de Logística, onde a Coordenação Financeira, a Coordenação Logística e o posto de seu assessor direto haviam sido ocupados por militares, todos nomeados pelo coronel Elcio.
Não é fortuito considerar que a Coordenação Logística foi um dos focos da suposta pressão pela liberação da Covaxin, anteriormente narrada pelo servidor Ricardo Miranda à CPI.
Em suma, seu depoimento deixava patente o envolvimento dos militares do Ministério da Saúde na negociação da vacina e, portanto, a suspeita de envolvimento dos fardados nos supostos esquemas de corrupção.
Os movimentos questionáveis de militares na gestão da pandemia, todavia, não se restringem às tratativas para compra de vacinas.
Dados do Tesouro Nacional apontam uso de R$ 110 milhões do valor destinado à vacinação contra covid-19 em contratos milionários para manutenção de aeronaves, gastos com alimentação, serviços de lavanderia, dentre outros.
O uso da verba da vacinação teve aval do coronel Elcio Franco, através de assinatura de Termo de Execução Descentralizada, enquanto faltavam vacinas para a população.
O valor se somava aos mais de R$ 500 milhões destinados ao Ministério da Defesa para enfrentamento à covid-19. Parte do montante foi empregado na manutenção de aeronaves como as utilizadas em voos que levaram a território indígena cerca de 100 mil comprimidos de cloroquina produzidos pelo Exército.
O remédio não tem eficácia contra covid-19. O mal uso da verba destinada à gestão da pandemia foi confirmado em relatório produzido pela procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo, Élida Graziane Pinto.
O documento enviado à CPI da Covid aponta que foi o Ministério da Defesa a pasta que mais utilizou recursos destinados ao Sistema Único de Saúde em despesas alheias à saúde – compra de uniformes, por exemplo, responde por R$ 1,2 milhão da verba destinada ao ministério.
Nesse contexto, é seguro afirmar que a recente exposição de militares em episódios de mau uso do orçamento público e em casos hoje investigados pela CPI no Senado soam como um alarme.
Os militares funcionam numa lógica corporativa. Como nos lembra Ana Penido de Oliveira, “há a ideia de que são um corpo único e quando alguém ataca aquele corpo é como se estivesse atacando o todo”.
A investigação de irregularidades no contrato da Covaxin e o suposto envolvimento de militares no Ministério da Saúde em pedido de propina na aquisição da AstraZeneca, ao levar às portas dos quartéis os escândalos de corrupção normalmente atribuídos pelos militares às instituições civis, não apenas abalam perante a opinião pública a imagem autoconstruída de superioridade moral das instituições castrenses, como são percebidas pelos militares como um ataque à própria instituição.
Referindo-se à fala do senador Omar Aziz, o general Santos Cruz, insistente e erroneamente tido como um quadro “moderado” em meio aos arroubos autoritários de sua instituição, disse em entrevista à CNN que não existe “banda podre” nas forças armadas, apenas um problema ou outro.
O ex-ministro de Bolsonaro se esforçava em separar os militares do governo da instituição de onde saíram. No dia 09 de julho, o Comandante da Aeronáutica, o brigadeiro Carlos Alberto Baptista Jr., julgou pertinente conceder entrevista ao jornal O Globo e reforçar o que chamou de “alerta às instituições”.
Afirmando que “homem armado não ameaça”, a entrevista criticava a condução da CPI da Covid e, conquanto justificava a presença de militares do governo, refutava as declarações de que se tratava de um governo militar.
Ambos, Santos Cruz e Baptista Junior, afirmavam não haver leniência com desvio de condutas – esqueceram-se de mencionar a não punição de Eduardo Pazuello que, enquanto general da ativa, participou de ato abertamente político ao lado de Jair Bolsonaro.
A reação dos fardados às declarações da CPI, para além da ameaça evidente, sinalizavam uma outra questão para uma instituição aparelhada por oficiais movidos por interesses político-partidários e corporativistas. O depoimento de Roberto Dias levou em estrada verde-oliva aos militares no governo.
Com isso, a investigação da CPI tem uma linha clara que implicaria os coronéis e generais no Planalto em esquemas de corrupção que, enquanto morríamos os brasileiros, buscavam lucrar na aquisição da vacina. A instituição se vê agora envolta na contradição que ela mesma construiu: como manter-se distante de um governo que leva consigo não apenas seus quadros, mas suas fardas e patentes?
Em que pesem o esforço de descolamento entre instituição e governo, o fato é que, para aqueles que defendem a existência de algum lado que não seja pobre nas forças armadas, está cada vez mais difícil justificar a posição.
Movida por um projeto de poder, a instituição refuta o ônus das consequências dos atos de seus quadros na administração pública, enquanto se recusa a abrir mão dos postos ocupados.
Autoritária, prova reiteradamente sua aversão à democracia, o que fica claro em entrevista do presidente do Supremo Tribunal Militar, general Luis Carlos Gomes Mattos, ao afirmar que “estão [a oposição] esticando demais a corda”.
Politizada, faz fileira ao governo em críticas aos protestos contra o Executivo e mantém-se alerta contra o retorno do “perigo vermelho” no país.
Em maio deste ano, pouco depois do depoimento cheio de mentiras do general Pazuello, questionávamos o porquê do receio dos senadores da CPI da Covid em acusar a responsabilidade dos militares na condução desastrosa da pandemia no país.
Hoje, a pergunta é outra: terão os senadores a coragem necessária para se seguir com as investigações, mesmo face à ameaça autoritária, ou serão intimidados pelos coturnos em marcha que hoje ocupam Brasília?
*Jorge M. Oliveira Rodrigues é pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES/UNESP).
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Leandro Melito