Não tem como pensar em uma nova conciliação no Brasil, sem pensar na luta antirracista
O ex-deputado federal, Jean Wyllys, deixou o PSOL e se filiou ao PT, no final de maio. A filiação, um ato online com a presença dos principais líderes petistas, entre eles os ex-presidentes Lula e Dilma, deixou no ar a questão sobre um possível retorno de Wyllys ao parlamento nacional.
O jornalista e escritor, que deixou o mandato em 2019 por conta de graves ameaças, garante que apenas um pedido especial o faria voltar a disputar uma nova eleição: “A minha candidatura, ela só vai existir, e no último caso, se for uma questão estratégica, uma questão estratégica pensada, inclusive pelo Lula."
Eleito em 2018 como deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro, Wyllys entrou no olho do furacão das fake news bolsonaristas após o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. Na ocasião, o parlamentar fez forte oposição ao processo e chegou a cuspir em Bolsonaro, então deputado federal, que durante voto favorável ao golpe, homenageou um torturador da ditadura militar.
“Eu conheci muita gente bacana [no Congresso Nacional], mas havia muita gente deplorável naquele lugar, muita gente que, ao mesmo tempo, reflete o processo eleitoral no Brasil, que é dominado por oligarquias, pela força da grana, pela mentira. Eu não tenho saudade de conviver com aquela gente.”
Sua chegada ao Partido dos Trabalhadores, afirma Wyllys, também busca comprometer o PT com pautas importantes para o país após anos de perdas em direitos sociais.
“Um novo Lula deve estar comprometido com causas que são importantes para o mundo agora, uma conciliação que não volte atrás em relação a questões tão importantes como as questões de sexualidade, de gênero, ou seja, as questões LGBT, a luta antirracista”, afirma.
Nesta edição do BDF Entrevista, Jean Wyllys também lembra de sua saída do país e o começo da pandemia, quando se refugiou na universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Também aponta os motivos de sua saída do PSOL e comenta como se tornou espelho para uma geração de LGBTQIA+, que se viu representada por suas pautas.
“Não é fácil, né? Na verdade, a minha ideia não é necessariamente influenciar, embora eu tenha completa consciência de que outras pessoas que vieram antes de mim me influenciaram, que cada um de nós, que rompe um grilhão, vai libertando o outro, ainda que existam pessoas dentre nós que amem suas correntes.”
Confira alguns trechos da conversa:
Brasil de Fato: Jean, queria começar com uma notícia boa, que tem chegado aqui pra gente muito devagar, a passos lentos, mas você já foi vacinado, né? E aí, como está a experiência, essa sensação? Eu imagino que muito positiva, né?
Jean Wyllys: Sim, cara, eu fiquei muito feliz por ter chegado a minha idade. A Europa avançou bastante na vacinação, né? A princípio houve um problema entre os países, entre a União Europeia e as farmacêuticas.
O contrato da quantidade de vacinas, também cada país tem sua própria dinâmica, sua própria crise política, sua própria infraestrutura, então, uns avançaram mais que outros, mas de uma maneira geral, a Europa avançou bastante, a Espanha avançou muito, a Catalunha principalmente, e aí chegou a minha a idade, que é de 45 a 50.
Eu fiquei muito feliz, embora antes eu estivesse seguindo todas as medidas sanitárias. Eu, quando a pandemia começou, quando ela foi decretada, quando ela foi reconhecida pela ciência, eu estava nos Estados Unidos, na cidade de Cambridge, como professor convidado da Universidade de Harvard.
Harvard foi uma das primeiras instituições de ensino no mundo a fechar as portas, por reconhecer que havia uma pandemia. Então, essa primeira onda, eu acompanhei toda lá e, desde o princípio, eu adotei as medidas sanitárias, uso das máscaras, limpar as mãos, o distanciamento necessário.
Você comentou sobre a solidão que a pandemia impôs. Como é que você enfrentou isso por aí? A Espanha, como você disse, passou por um momento muito terrível, de muita reclusão e de muito medo.
O meu momento de maior solidão, em que eu experimentei a solidão mais dura, o exílio dentro do exílio, foi quando eu estava nos Estados Unidos. Na primeira onda, eu estava numa região muito fria, era inverno no estado de Massachusetts, que fica na região chamada Nova Inglaterra.
O frio é muito rigoroso. Eu tinha em Cambridge, na verdade em cidades vizinhas de Cambridge, bons e grandes amigos que foram muito acolhedores nesse momento. Mas no primeiro momento mesmo, em que a gente teve que ficar em casa, foi duro, muito duro pra mim.
Houve um terror no primeiro momento, um terror coletivo. A nossa gente não sabe lidar com a ideia da morte, a gente não experimentou, a gente sabe que houveram extinções em massa de outras espécies, por exemplo, a epidemia de gripe espanhola, a minha comunidade em especial, a comunidade LGBT, viveu os horrores da epidemia de AIDS nos anos oitenta, anos noventa. Até mesmo pela memória desse horror, de como foi difícil pra mim ser um adolescente no crescimento, na curva ascendente da epidemia de Aids.
A epidemia começou inclusive antes de eu me tornar adolescente. Então, o que era se tornar adolescente naquele momento, todos esses terrores vieram à tona naquele momento em que eu estava em Cambridge.
Então, foi o momento mais doloroso pra mim. Eu me exilei dentro do exílio, era um exílio dentro do exílio, dentro de um apartamento minúsculo que era o quarto que a universidade me dava, que era o suficiente, claro, mas era um quarto. Eu não tinha companhia, minha família, a minha mãe longe, a incerteza sobre se eles iam se infectar, se não iam, aquele momento foi muito mais difícil do que quando eu vim para a Espanha.
Você não vem ao Brasil há dois anos já, você teve que sair num auto-exílio, assim como Márcia Tiburi, Anderson França, a professora Larissa Bombardi, Débora Diniz. Era o certo a fazer? Como foi essa saída e como você processou isso estando aí depois?
Na verdade, eu não gosto da palavra auto-exílio e acho que a gente deveria tirá-la, né? Porque ninguém se exila, ninguém rompe com a sua vida, faz uma ruptura com a sua vida, com a sua família, com tudo que você construiu, ninguém se lança numa aventura incerta, insegura sobre o seu futuro, se ela não estiver motivada por um medo terrível ou por um instinto muito primitivo de preservação da sua vida.
Como eu disse, eu não sou mártir, eu não tenho vocação pra isso, em nome de nenhuma causa e nem nome. O Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio, que sofreu tortura, coisas terríveis, foi uma pessoa que me disse isso, falou que eu devia ir embora. Os mártires não são heróis.
Não foi um auto-exílio, foi um exílio, eu fui obrigado a sair, porque a violência contra mim era muito grande, e é uma violência que só agora está sendo compreendida. Dois anos depois é que está se compreendendo as engrenagens dessa violência, o mecanismo dessa violência, como ela foi financiada, que forças políticas ela agrega.
Naquele momento as pessoas não compreendiam, porque elas eram ignorantes em relação a questão, como de certa forma quase todos éramos, mas elas não compreendiam também por uma falta de empatia com o fato de eu ser um homossexual.
Então, em um país que se acostumou a assassinatos e torturas e outras violências contra a comunidade LGBT, ver um um deputado sendo torturado psicologicamente, com ameaças de morte, sofrendo as violências que eu sofria, não fazia muita diferença. A minha vida, ela tinha um valor pra mim, ela tinha um valor pra minha família, ela tinha um valor para os meus amigos e essas pessoas, meus amigos, minha família, as pessoas que me amavam disseram: você não pode continuar assim, isso que você está vivendo não é vida.
As pessoas que me viam em cárcere privado sem ter cometido nenhum tipo de crime, sendo a pessoa honesta e decente que eu sou, as pessoas que me viam sendo escoltado por cinco policiais pra ir em qualquer lugar, porque em qualquer lugar as pessoas se sentiam autorizadas a usar de violência contra mim. Essas pessoas disseram: você tem que sair. E por isso eu saí, não foi uma escolha.
Agora que o chefe da nação eleito por meio dessa propaganda política, que também só agora estamos entendendo como é que ela funciona, que é a desinformação, esse chefe da nação agora ameaça abertamente uma nação inteira.
A violência que era aplicada contra uma pessoa ali na Câmara dos Deputados, quando ele cruzava os corredores comigo, quando ele estava nas reuniões de comissão, era a representação de uma violência, de uma força política de extrema direita, que agora está se estendendo a toda nação e talvez as pessoas agora compreendam melhor as razões de eu ter saído, não foi escolha, não é nenhum exílio leal.
A sua saída do PSOL acontece em um momento em que o partido também tem buscado seu espaço. Há uma movimentação dentro do partido - imagino que ela não esteja em desacordo com uma frente única para 2022 - para disputar a eleição presidencial. O deputado federal Glauber Braga, lançou uma pré-candidatura à presidência. Foram esses movimentos que te fizeram deixar o PSOL?
Olha, eu tenho respeito por muita gente no PSOL. Acho que o PSOL é um partido necessário. Em uma democracia tem que haver partidos como o PSOL. Eu respeito muito o deputado Glauber Braga e além de respeitá-lo, eu gosto muito dele. Nós temos uma relação de amizade, pessoal.
A minha saída do PSOL não teve a ver com brigas no partido, eu nunca disputei o partido, nunca tive interesse. Nunca integrei nenhuma das correntes partidárias, correntes que muitas vezes colocaram as lutas institucionais em primeiro lugar, que agiram de maneira muitas vezes fratricida, nunca me envolvi nisso.
Eu não fiz parte da ruptura do PT que deu origem ao PSOL, então eu não tenho nenhum Complexo de Édipo. Eu tinha uma relação bacana com o partido, sempre tive divergências com o partido e sempre dialoguei pra fora, meu compromisso sempre foi com as causas.
E foram causas e os princípios mais uma vez que me levaram a sair do PSOL e me filiar ao PT. Eu já estava mesmo afastado do PSOL há muito tempo. Desde que saí pro exílio, eu não tenho um partido. Muita gente pode ter pensado que o partido me manteve, me ajudou de alguma maneira, alguma ajuda material, financeira. Não. E nem acho que era compromisso do partido, não tinha obrigação nenhuma, nem eu pedi.
Quando Lula teve seus direitos políticos devolvidos e ele saiu e fez aquele discurso, que foi, não por coincidência, no dia do meu aniversário, dia 10 de março, ele me ligou pra me desejar feliz aniversário, e eu pensei: É isso, o Lula vai voltar com tudo.
Lula é esse cara que conversa com todo mundo, o Lula é o cara da conciliação, é da natureza dele, da formação política dele, sindical, é da generosidade dele, da identidade cultural nordestina, de quem viveu na periferia de São Paulo. Lula é o cara da conciliação.
E essa conciliação tem que ser feita por um novo Lula, um Lula comprometido com causas que são importantes para o mundo agora, uma conciliação que não volte atrás em relação a questões tão importantes como as questões de sexualidade, de gênero, ou seja, as questões LGBT, a luta antirracista.
Não tem como pensar numa conciliação, uma nova conciliação no Brasil, sem pensar na luta antirracista, sem pensar...Eu sei que muita gente não gosta dessa palavra, mas então pra quem não gosta da palavra genocídio, vamos falar no extermínio da juventude negra e pobre que é herdeira desse racismo estrutural, social, inconsciente no Brasil.
Esse novo Lula não pode deixar de lado a luta ambientalista e, portanto, a emergência climática. Portanto, vislumbrar a Amazônia como um ativo brasileiro importante nessa nova colocação geopolítica do Brasil, porque a Amazônia tem a ver com a manutenção do clima no mundo.
Não podemos pensar no mundo doravante sem pensar numa quarta causa que é a renda básica universal. Há recursos no mundo para garantir a todo cidadão uma renda básica universal que não permita que as pessoas morram de fome. O PT já se envolveu nisso mais ou menos, as políticas como o Bolsa Família foram muito importantes, o Eduardo Suplicy é alguém dentro do PT que defende a renda básica. Mas eu, aqui fora, conheci outras pessoas que defendem a renda básica universal, pessoas que são sociais-democratas.
Aí, então, eu pensei: é hora de fazer o Lula se comprometer com essa conciliação. Ele é um cara generoso, é hora de fazer ele se comprometer com essa agenda. Então, qual é a forma de comprometer? É eu entrar no PT. Eu sou gay, reconhecido por essa agenda nacionalmente, todo mundo sabe quais são as agendas que eu defendo: eu defendo uma nova política de drogas, eu defendo as questões de sexualidade de gênero.
Eu pensei: quando eu entrar no PT e ele me receber, assinar minha ficha de filiação, ele vai passar esse recado, ele vai aceitar passar esse recado e ele aceitou passar esse recado. E essa foi a razão. Então, não tem a ver com nada em relação ao PSOL, que fique lá. O PSOL tem lugar na democracia.
Há figuras do PSOL muito bacanas e respeitáveis, e há outras que eu não respeito, como também há figuras dentro do próprio PT que eu não respeito. Como eu disse, não tem a ver com o partido, mas tem a ver com causas.
Durante seus mandatos, foi eleito duas vezes no prêmio do Congresso em Foco, como melhor congressista. Tem saudades dessa luta institucional? A tua filiação passa também por uma ideia de voltar a se candidatar?
Não. Não passa não. Claro que em política a gente sempre tem que colocar as coisas com muita cautela, pra não haver desmoralização no futuro, para que as pessoas não digam: ah, ele disse que não ia se candidatar e ele se candidatou.
A minha candidatura, ela só vai existir, e no último caso, se for uma questão estratégica, uma questão estratégica, pensada, inclusive, pelo Lula, digamos. Eu não tenho nenhuma vontade de ser candidato de novo, eu não vislumbro uma maneira diferente de fazer campanha. Eu já reinventei bastante a forma de fazer campanha em dois mil e quatorze, que foi a campanha que me deu 145 mil votos. Mas depois disso eu fui atacado por uma campanha de desinformação, orquestrada, que minou a minha votação bastante em 2018.
A ideia da extrema direita era impedir a minha vocação, a minha reeleição. A ideia era me drenar, me sangrar, me deixar completamente desprotegido institucionalmente, para ao fim e ao cabo, me eliminar fisicamente.
Eu não tenho nenhuma saudade de viver naqueles corredores. Tenho saudade de muitos dos meus amigos que lá estão de deputados incríveis que eu conheci, deputadas, principalmente, incríveis, com as quais eu convivi como Maria do Rosário, como Manuela D'Ávila, Erika Kokay, Margarida, Erundina, minha companheira de partido, Benedita da Silva. E outros homens também, que eu não vou citar o nome, porque eles já são maioria lá.
Eu conheci muita gente bacana, mas havia muita gente deplorável naquele lugar, muita gente que, ao mesmo tempo, reflete o processo eleitoral no Brasil, que é dominado por oligarquias, pela força da grana, pela mentira. Eu não tenho saudade de conviver com aquela gente.
Eu sei que os meus mandatos fizeram muito bem a muita gente. Foram muito importantes pra muita gente e plantou sementes, levou muitas pessoas a se filiarem, a se candidatarem e hoje há muitas pessoas que estão, inclusive, na institucionalidade. Mas não, eu quero colaborar dessa maneira que eu tô colaborando, e volto a dizer: a minha candidatura, ela existirá como uma última questão.
E mesmo assim, na hipótese de eu me candidatar, você não vai me ver pedindo voto, nem mentindo pras pessoas. Eu nunca vou dizer aquilo que o eleitor quer ouvir. Então, eu vou continuar defendendo o que eu defendo. Eu defendo, por exemplo, a legalização do aborto, mesmo, acho que as mulheres são donas do seu corpo, uma mulher deve decidir quando deve ou não ser mãe. Eu não vou deixar de dizer isso.
Eu defendo a legalização e a regulamentação do uso de drogas, do comércio de drogas, como forma de combater o tráfico, como forma de combater o encarceramento em massa e a morte de jovens pretos. Então, se alguém me perguntar, você é a favor da legalização da maconha? Sou. Eu não vou mentir, eu não vou dizer nenhuma mentira, nunca.
Então, eu sou uma pessoa não grata para muita gente. Pra fazer uma campanha com mentira, posando, eu não vou. Eu sou gay, você vai me ver sempre criticando fundamentalistas religiosos, que defendem a cura gay, ou que dizem que amam o pecador, mas não amam o pecado. Foda-se, não existe pecado, homossexualidade não é pecado.
Em uma entrevista recente, o Gilberto, o Gil do Vigor, que se destacou nessa última edição do BBB, falou sobre a influência que você teve na vida dele, quando na edição que você participou, falou que era gay e que o fluxo de votos em você poderia ter esse componente de perseguição. Quando ouviu aquilo em rede nacional, ele se viu reconhecido. Como você lida com essa responsabilidade, de ser um espelho para outros?
Bom, não é fácil, né? Na verdade, a minha ideia não é necessariamente influenciar, não foi influenciar. Embora eu tenha completa consciência de que outras pessoas que vieram antes de mim me influenciaram, que cada um de nós que rompe um grilhão, vai libertando o outro, ainda que existam pessoas dentre nós que amem suas correntes. Haveria muito menos escravos no mundo se não houvesse pessoas que não querem se libertar, que amam suas correntes.
Mas, em geral, quando um se liberta, quando um acende uma luz, uma outra luz se acende. Então, eu fico muito feliz de ter servido de luz para uma geração de gays e lésbicas e pessoas trans, assim como várias pessoas foram luzes pra mim. Figuras como João Silvério Trevisan, como Luís Carlos Lacerda, como Rosimary Muraro, como Caetano Veloso, como Ney Matogrosso, como James Green que organizou o movimento, como Hebert Daniel, Caio Fernando Abreu e todo o trabalho que Caio fez, numa época de AIDS por exemplo, toda sua literatura.
Vange Leonel, Laura Finocchiaro, cada um de nós que acende uma luz serve de iluminação para outra pessoa. Eu fico muito feliz de ter servido de iluminação para o Gilberto e para outros tantos, fico feliz com o sucesso dele. Eu não pude acompanhar o Big Brother, só pelas mídias sociais, porque aqui não roda o conteúdo da Globo.
Fico muito feliz por ele, acho que ele é mais um de nós que rompe toda essa lógica do não, pra se afirmar como sujeito.
Edição: Isa Chedid