O STF brasileiro nunca teve em sua composição uma pessoa indígena, tampouco uma mulher negra
Por Cláudia Maria Dadico*
Mais uma vez o Brasil assiste a um processo de sucessão de Ministro no Supremo Tribunal Federal. Para ocupar a vaga de Marco Aurélio Mello, recentemente aposentado, o Presidente da República não surpreendeu: indicou o advogado-geral da União, André Mendonça, um homem branco, cisgênero, heterossexual.
A indicação, que parte do pressuposto de restarem preenchidos os requisitos constitucionais - ser brasileiro nato, ter mais de 35 e menos de 65 de idade, notável saber jurídico e reputação ilibada – deu-se muito mais em função de um atributo muito específico e que não consta do texto constitucional: o fato de ser “terrivelmente evangélico”, conforme anunciado pelo Presidente desde o início de seu mandato.
Leia mais: "Não vejo Jesus refletido nessa indicação", diz ativista evangélico sobre André Mendonça no STF
A indicação levanta, pelo menos, três questões relevantes no debate em torno do desenho constitucional do processo de indicação dos membros do Supremo: a independência na atuação de seus integrantes, a observância do princípio da laicidade do Estado e de suas instituições e a falta de representatividade de grupos politicamente minoritários.
Quanto à independência, Dalmo Dallari destaca que a história recente do país é pródiga em indicações que se devem a “antigas ligações político-partidárias, ou por relações de amizades com o Presidente da República ou com pessoas muito influentes no governo”.
O método de indicação pelo Presidente da República, seguido de sabatina pelo Senado Federal que tem apenas confirmado a escolha, favorece o comprometimento do futuro indicado com a agenda política do Chefe do Poder Executivo, o que se confirma a partir de decisões que, uma vez consumada a indicação, raramente contrariam os interesses do governo.
Muito mais democrático e republicano seria que o nome do indicado fosse escolhido a partir de listas formadas mediante participação ativa da sociedade, não apenas de entidades representativas de advogados, juízes e do Ministério Público e dos tribunais, mas principalmente de entidades da sociedade civil.
Além de garantir maior participação e amplo debate sobre o histórico dos indicados e compromissos que assumiram ao longo de suas trajetórias profissionais, tal mecanismo preservaria, em maior medida, a independência do escolhido.
A laicidade estatal, adotada como princípio estruturante do Estado brasileiro desde 1891 e expressamente adotada pela Constituição Federal (art. 19, I), também é posta em xeque quando o critério de escolha do Ministro é conduzido em função de opções religiosas. Não há qualquer problema que a Corte Suprema tenha integrantes católicos, evangélicos, espíritas, de religiões de matriz africana, muçulmanos, budistas, ateus ou agnósticos.
As crenças dos juízes dizem respeito à sua vida privada e, num estado laico não devem, ou, ao menos, não deveriam contaminar o conteúdo de decisões estatais, muito embora sejam constitutivas das subjetividades e, portanto, inseparáveis de suas bagagens de vida. A questão se torna problemática quando a religião professada pelo indicado é, abertamente, o critério determinante da indicação.
Isso porque uma das dimensões mais importantes do princípio da laicidade estatal é a proteção do Estado em face da religião. Essa divisão entre esferas – Estado secular e religião – tem por finalidade assegurar igual tratamento a todos, independentemente de suas opções religiosas. Nesse sentido, a laicidade é imposição dos princípios da igualdade e da vedação à discriminação por critérios proibidos.
Mas não é só isso. A distinção entre Estado e religião impõe que as decisões jurisdicionais sejam conformadas pelo Direito e não por normas extrajurídicas ou interpretações ditadas pelas preferências religiosas dos julgadores, por mais respeitáveis que sejam. Daniel Sarmento destaca o dever que pesa sobre todo juiz, consistente em “filtrar racionalmente suas pré-compreensões religiosas” a fim de evitar que estas tenham influência no resultado de julgamentos.
A escolha de alguém por ser “terrivelmente evangélico” e que, nesta qualidade, já defendeu posições públicas qualificadas como fundamentalistas, abala a credibilidade dos jurisdicionados em um Poder Judiciário imparcial e independente, pois estará implícito, de certa forma, que as demandas que terão maior probabilidade de êxito serão aquelas alinhadas às visões de mundo ditadas por interpretações radicais dos cânones evangélicos.
Por fim, com a indicação de mais um homem branco, cisgênero e heterossexual o Brasil perde mais uma oportunidade de ter uma Suprema Corte mais plural e diversa. Ou, pior, continuará exibindo uma composição que reflete uma ordem social desigual, constituída pelo heterossexismo, machismo e racismo estruturais.
O Supremo Tribunal Federal brasileiro nunca teve em sua composição uma pessoa indígena. Nunca teve, tampouco, uma mulher negra entre seus integrantes.
Com isso, o órgão de cúpula do Poder Judiciário perde legitimidade democrática. Como afirma Jane Reis, “o conceito de representação democrática do judiciário deve funcionar como um fator de avaliação das cortes quanto à transparência institucional, porosidade às demandas da sociedade civil e abertura a diversos pontos de vista. Entendida sob essa perspectiva, a noção de representação argumentativa pressupõe que as cortes sejam institucionalmente estruturadas como organismos com composição plural”.
Sabe-se que o enfrentamento do heterossexismo, do machismo e do racismo estruturais não se limita a questões de representatividade. Silvio Almeida afirma que “a mera presença de pessoas negras e outras minorias em espaços de poder e decisão não significa que a instituição deixará de atuar de forma racista”.
Não se trata, tampouco, de adotar uma perspectiva essencialista, que parte do pressuposto de que decisões judiciais proferidas por determinadas pessoas, por seu pertencimento a determinados grupos, seriam qualitativamente melhores em razão de determinados atributos pessoais que, idealmente, caracterizariam tais grupos, segundo concepções de um certo senso comum.
Nesse sentido, é de fundamental importância para a luta antidiscriminatória e antirracista que pessoas negras e integrantes de outras minorias subalternizadas estejam representadas nos espaços de poder, com a ressalva de que, quando se fala em representatividade numa perspectiva antirracista, fala-se em representatividade substancial, ou seja, de pessoas efetivamente engajadas e comprometidas com as lutas de superação das desigualdades.
Isso deve ser aferido a partir da trajetória pessoal e profissional da pessoa indicada, de seus compromissos com as questões da antidiscriminação, do enfrentamento à violência e ao ódio a que são submetidos os grupos vulnerabilizados, como decorrência do legado histórico escravista e colonial, que não só não foi superado, como, ao contrário, permanece em contínua atualização em tempos de neoliberalismos e extremismos políticos em todo o mundo.
Desta forma, a indicação de mais um homem “terrivelmente evangélico”, branco, heterossexual e cisgênero, cuja atuação na advocacia geral da União tem se caracterizado por uma fidelidade acrítica à agenda governamental, amplifica o debate sobre o desenho constitucional do processo de indicação de ministros para o Supremo Tribunal Federal.
É preciso que os atributos da independência, da observância à laicidade estatal e da representatividade sejam levados a sério no processo de escolha, como requisitos indispensáveis ao funcionamento da instituição em conformidade com sua missão constitucional.
Por fim, é urgente a nomeação de uma jurista, negra ou indígena, mas, sobretudo, antirracista, para integrar o Supremo Tribunal Federal do Brasil. Mais que um ganho de legitimidade democrática, trata-se de uma questão de justiça histórica. As falas das indígenas e das mulheres negras, na concepção aqui exposta, são falas de suas ancestralidades.
Como afirma Jurema Werneck, “são passos que vêm de longe”. É disso que se trata quando se toma consciência da grande oportunidade que a sociedade brasileira tem em suas mãos.
*Cláudia Maria Dadico é Doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS, juíza federal, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. Escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rebeca Cavalcante