Uma cooperativa criada por fazendeiros do Sindicato Rural de Primavera do Leste, do Mato Grosso, está dividindo o povo Xavante da Terra Indígena Sangradouro/Volta Grande.
Incentivada pela Fundação Nacional do Índio (Funai), a iniciativa foi batizada de “Independência Indígena” e opôs, de um lado, indígenas contrários ao projeto; e de outro, defensores de plantações de monocultura, sobretudo de arroz.
O território indígena fica em Primavera do Leste, a 238 quilômetros da capital de Mato Grosso, Cuiabá. É uma região forte do agronegócio, que faz um cerco à área protegida. Para Hiparidi Toptiro, que é líder em Abelhinha, uma das 57 aldeias da TI Sangradouro/Volta Grande, esta é mais uma afronta de fazendeiros que almejam tomar esses territórios há anos.
“Se 80% do plantio fica com produtores rurais e 20% com os Auwé (outro nome dado ao povo Xavante), quem sai perdendo?”, questiona Hiparidi.
Segundo ele, além de não compensar financeiramente para os indígenas, outro aspecto ruim da cooperativa é que havia previsão de desmate, para o plantio, de 50 hectares, mas imagens de satélite comprovam que já foram abaixo mais de 1.600 hectares, “sendo boa parte sem licenciamento ambiental”.
Outra preocupação dele é que este tipo de iniciativa signifique também uma invasão cultural e desmonte o modo de vida originário em Sangradouro.
“Qualquer um que olhar a nossa organização social e cultural, sabe que é muito difícil dar certo esse tipo de coisa. Essa parceria é insustentável. São vários os problemas, logo, logo. Isso não vai muito longe”, vaticina.
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Hiparidi defende que seu povo plante, colha e comercialize o que quiser, mas por si só, sem “arrendar” nem um palmo da reserva que tem mais de 100 mil hectares de terra.
Chateado e indignado, o líder indígena acredita que alguns de seus parentes caíram em ‘lero-lero’. “Tem até professores Xavante, formadores de opinião envolvidos, isso é uma vergonha para nós (…) Muito triste (…) É lavagem cerebral”, critica.
A Cooperativa Indígena Sangradouro/Volta Grande (Cooigrandesan) foi fundada pelo Sindicato Rural de Primavera do Leste. O projeto Independência Indígena é resultado de uma parceria entre o governo de Mato Grosso com o Sindicato Rural de Primavera do Leste e a Fundação Nacional do Índio.
“Nossa maior expectativa com esse plantio é mostrar para o mundo que a gente é capaz de produzir e ser independente, sem precisar buscar recursos na cidade. Tivemos algumas dificuldades no início, mas futuramente por meio dessa lavoura mecanizada alcançaremos o nosso progresso sem provocar o desmatamento ou danos ao meio ambiente ou ao ser humano”, disse o presidente da cooperativa, Gerson Warawe em nota do governo estadual sobre o Independência Indígena.
Cerco do agronegócio
Mas a Associação Xavante Warã, que há 25 anos articula as comunidades Xavante na defesa de direitos e do território Auwé, refuta essa perspectiva otimista de Gerson Warawe.
“É mais um estímulo à dependência e ao arrendamento, com ares de legalidade. Sabemos que a finalidade última desse projeto – que é político – é de se apropriar do nosso território, sob falsa e hipócrita justificativa de desenvolvimento econômico das nossas comunidades.
Antigos argumentos para novas investidas sobre os nossos direitos e nosso território. É o cerco do agronegócio no cerrado e todas os seus projetos de estradas, centrais hidrelétricas e ferrovia, que destrói a forma de vida do povo Auwé Xavante no Ró/Cerrados, nosso meio de vida, trazendo doenças e morte”, diz a organização, em nota.
“A riqueza de nossos repertórios culturais e conhecimentos, desenvolvidos ao longo dos milênios em que habitamos o cerrado, não é condizente com o discurso que se baseia em ideias que relacionam os povos indígenas com miséria, pobreza, subdesenvolvimento. Pobre é o projeto desse governo para o Brasil”, acrescenta a nota.
O documento alerta ainda que a cooperativa do Independência Indígena replica o projeto falido desenvolvido pela Funai na ditadura militar e traz de volta “velhos fantasmas da tutela e do desenvolvimentismo, sob novas roupagens modernizantes, a rondar e cobiçar a riqueza do nosso território e da nossa cultura”.
Indígenas pró-agronegócio
O professor Xavante Daniel Maratedewa Dzaywa, líder na aldeia Sangradouro, dentro da TI Sangradouro/Volta Grande, pensa diferente. Ele é apoiador da cooperativa.
“O objetivo do meu povo da comunidade é avançar, porque a gente tem muito tempo acompanhando esse trabalho, mas nunca desenvolveu. Por isso fizemos parceria com nossos produtores, nosso vizinho, para que o trabalho dê certo. São 132 mil hectares de território total, mas 1.000 hectares para fazer o plantio foi determinado”, explica.
Daniel reafirma que o grupo apoiador da cooperativa “é Bolsonaro”, referindo-se ao apoio da comunidade ao presidente. Tanto é assim que, em 15 de maio, ele integrou uma comitiva que saiu de Primavera do Leste rumo a Brasília para participar do ato pró-presidente.
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Outra liderança Xavante que também se diz bolsonarista e está de acordo com a “parceria” é Airere Bartolomeu.
Segundo ele, a comunidade quer se beneficiar com a cooperativa para estruturar a saúde e comprar medicamentos, obter equipamentos e melhorar de vida.
“Quem não quiser participar não participa. Estamos sem comida”, justifica. Airere alega que seu povo quer avançar, aprender com os não-indígenas, entrar na globalização e “não ficar parado no tempo e espaço”. Ele nega qualquer cabresto. “Estamos de olhos vivos.”
“Narrativa mentirosa”, diz MPF
Para o procurador Ricardo Pael, do Ministério Público Federal de Mato Grosso (MPF-MT), o formato da Cooigrandesan é ilegal.
“Contraria desde a Constituição Federal, que garante o usufruto de riquezas naturais de reservas aos indígenas e somente a eles, até o Estatuto da Terra, regras e decretos, balizadores de territórios demarcados. Contraria também a vontade da maioria dos Xavante, eles me disseram que não usam essa tal organização mista e não concordam com isso”, afirma o procurador em entrevista à Amazônia Real.
“A minoria que está aceitando essa situação é vítima de uma narrativa mentirosa.”
“Existe hoje uma grande fake news circulando de que os indígenas não podem plantar, não podem ter trator e isso é uma mentira. Não existe nenhuma lei, decreto, norma no Brasil que proíba os indígenas de plantar nas terras deles. Podem plantar e vender. Só não podem fazer é arrendamento misto”, pontua Pael.
O procurador cita, inclusive, a comunidade dos indígenas do povo Suruí, em Rondônia, que plantam e exportam café, somente com apoio estatal.
“O café dos Suruí inclusive já foi premiado na Suécia. A empresa Três Corações queria comprar toda a produção deles de tão bom que é”, comenta. Outra etnia, os Paresi de Mato Grosso, produzem soja e feijão de uma variedade nova, pipoca, amendoim e vendem.
Pael diz ter ouvido um número considerável de indígenas Xavante e concluiu que a cooperativa incrustada em Sangradouro prejudica o lado mais frágil, dentro desse projeto da Independência Indígena. “O interesse do fazendeiro do sindicato rural é apenas de lucrar.”
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Em março passado, o MPF-MT pediu explicações à Funai e ao Ibama sobre a Instrução Normativa Conjunta Funai/Ibama nº 1, de 22 de fevereiro de 2021, que viabiliza a cooperativa.
Dispõe sobre os procedimentos a serem adotados durante o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizados ou desenvolvidos no interior de terras indígenas cujo empreendedor sejam organizações indígenas.
A IN, de acordo com análise prévia do MP, contraria pelo menos três cláusulas do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado em dezembro entre MPF, Ibama, Funai e indígenas, para balizar a atividade de lavouras mecanizadas e a questão ambiental em reservas de MT.
Sem resposta, em maio o MPF recomendou à Funai e ao Ibama que retirem do artigo 1º da Instrução Normativa a expressão “organizações de composição mista de indígenas e não indígenas”, assim como revoguem o parágrafo 1º do mesmo artigo, dentro de 10 dias.
“Isto porque o texto viola o princípio do usufruto exclusivo, previsto na Constituição Federal e na lei da criação da Funai, além do Estatuto do Índio e da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI)”.
Sindicato rural apoia
O Sindicato Rural de Primavera do Leste afirma que a cooperativa do Independência Indígena é uma demanda que recebeu do próprio povo Xavante, que também pediu como contrapartida medicamentos e alimentos, já que se sentem abandonados pelo Estado.
“O produtor rural, seja de forma direta ou indireta, e o sindicato como entidade de representação de classe, perceberam a necessidade de escutá-los e ajudá-los, com essa questão de criação desse corpo legal, desse organismo denominado cooperativa”, argumenta o gestor administrativo do Sindicato Rural de Primavera, Renato Cozanelli.
Segundo ele, “infelizmente a União, a Sesai e a Funai não vão reportar a receita para que eles possam buscar autonomia nesse processo em relação à lavoura mecanizada”.
Sendo assim, diz Cozanelli, os produtores rurais entraram no caso para apoiá-los, por meio de uma cooperação técnica, com prestação de serviço e contas. “Chegou uma hora que os indígenas não queriam mais viver de migalhas e nem assistencialismo. Perceberam que podemos ser autossuficientes.”
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Cozanelli afirma ainda que os produtores, além do plantio de arroz, levam diversas formas de sustentabilidade aos indígenas.
“Já receberam 90 caixas de mel para produzir. Isso gera consumo próprio e uma moeda de troca, comercialização desse mel para que eles possam comprar outros subsídios de alimentação. Amanhã ou depois eles têm área de lâmina d‘água para piscicultura e usar redes para pescar peixes e se alimentar e dividir isso como cooperativa”, exemplifica.
Tudo OK para a Funai
A Funai respondeu, por meio de nota, que garante legalidade na parceria em Sangradouro. O órgão afirmou que a instrução normativa não viola o princípio do usufruto exclusivo, previsto na Constituição, e estabelece normas específicas para o licenciamento ambiental de projetos sustentáveis desenvolvidos pelos indígenas nas aldeias.
Segundo a Funai, a construção do normativo ocorreu após estudos institucionais e partiu da necessidade de condições específicas para atender à demanda indígena em projetos de etnodesenvolvimento, bem como estabelecer um rito próprio entre Funai e Ibama.
Segundo o órgão indigenista, as organizações de composição mista devem ser de domínio majoritário indígena, obedecendo a inalienabilidade e indisponibilidade das Terras Indígenas, sendo vedado seu arrendamento.