É um trabalho manual, único, feito por uma pessoa
Com agulha, linha e muita paciência, as mulheres dão vida à renda irlandesa no município de Divina Pastora, em Sergipe.
O ofício é uma tradição que passa de geração a geração e é patrimônio imaterial do Brasil. Segundo Maria José Souza, vice-presidente da Associação de Desenvolvimento de Renda de Divina Pastora, a Asderen, praticamente todas as mulheres da cidade sabem rendar. Ela mesma aprendeu ainda criança.
“Como eu era muito levada, às vezes minha mãe me colocava de castigo. e o que ela fazia? ela me colocava perto dela. Então eu comecei a ver como se faz renda irlandesa. A minha facilidade é porque eu consigo memorizar tudo que eu vejo”, ressalta.
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A renda irlandesa surgiu na Europa e, apesar do nome, tem influência veneziana.
Ilka Bianchini, que é doutora em propriedade intelectual com uma tese sobre associações de rendas e bordados do Nordeste, conta como esse fazer acabou se estabelecendo em Divina Pastora.
“Uma das versões mais aceitas é que ela veio para a região de Divina Pastora com algumas religiosas. E essas religiosas qualificaram duas mulheres, duas irmãs. As Marocas. E essas irmãs começaram a produzir renda, e a partir do momento que elas começaram a produzir, isso também despertou o interesse de outras mulheres, e elas foram ensinando”.
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Para fazer a renda irlandesa, o primeiro passo são os desenhos, também chamados de riscos. Geralmente, são flores e arabescos desenhados em um papel.
Em seguida, é preciso alinhavar um cordão grosso chamado lacê nesse desenho. E aí chega a hora de preencher os espaços com os pontos da renda irlandesa.
Existem mais de cem pontos, e eles têm alguns nomes curiosos, como dente-de-jegue, cocada, abacaxi. No espaço da associação, as mulheres se reúnem para trabalhar e compartilhar esse conhecimento, como explica Maria José.
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“Se uma rendeira não sabe um ponto e outra amiga sabe, a gente passa. A associação tem essa característica de ensinar, passar o saber. Primeiro porque a gente foi ensinada assim. As nossas mães, nossas avós sempre passavam o conhecimento sem cobrar, passava de coração. E assim a gente continua”.
O trabalho é minucioso. Uma peça grande, como uma toalha de mesa, pode levar seis meses para ficar pronta. Enquanto tecem as tramas da renda, as mulheres conversam, falam da vida doméstica e da cidade.
Antigamente, elas também cantavam. Um hábito que já não existe mais, mas continua vivo na memória de Maria José.
“No verão, muitas iam para praça, que era mais fresco. E aí uma acabava cantando. Música religiosa, de vez em quando música popular. Uma que ficou bem na minha mente era uma que minha mãe e as colegas dela cantavam, que era: “Olê mulher rendeira/ olê mulher renda/ tu me ensina a fazer renda/ que eu te ensino a namorar”.
Apesar das mudanças, a renda irlandesa segue firme da cidade. Inclusive, hoje já existem três homens que sabe rendar.
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Lilian Leite da Silva, de 22 anos, é filha de rendeira, mas até o ano passado, não se interessava pelo ofício, achava que era coisa de gente velha. Foi quando se viu grávida em meio a uma pandemia, que a coisa mudou.
“Eu estava em casa, ficava estressada porque não tinha muito o que fazer. E acabei me interessando. Minha mãe sempre fez, porém eu nunca tive interesse. Mas dessa vez, aprendi. E está sendo muito bom. Fazer, aprender, porque eu estou no processo de aperfeiçoar os pontos. E me deu independência financeira também”.
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A Thainá Santos Souza é ainda mais nova, tem só 12 anos, mas já é aprendiz de rendeira. Ela tem se dedicado a copiar alguns riscos antigos guardados na associação. Desenhos com 20, 30 anos de idade. E Thainá acredita que esse conhecimento vai ajudar na carreira que ela quer seguir.
“Eu quero ser designer de moda. Eu sei que os riscos vão me ajudar porque é uma coisa desafiadora fazer risco, porque o desenho tem que ser todo simétrico, tem que estar todo igual os lados, as formas. Sei que vai me ajudar muito no futuro”.
Agora o desafio da associação é levar a renda irlandesa para fora do Brasil. Atualmente, elas já exportam para a Europa, mas o mercado pode abrir ainda mais. Ilka Bianchini vê um potencial grande em consumidores que buscam peças únicas, muito diferentes dos produtos padronizados feitos pela indústria.
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“Como ela é uma renda feita à mão, ela não é perfeita. Ela tem pequenas diferenças, mas isso não prejudica a renda. Pelo contrário, isso dá mais personalidade a ela. Porque mostra que é um trabalho manual, único, feito por uma pessoa”.
E quem quiser conhecer mais ou encomendar uma peça, é só entrar no Instagram da Asderen: @rendairlandesa.
Edição: Douglas Matos