Os problemas que comunidades tradicionais enfrentam há anos podem se intensificar
Além dos empresários do agronegócio e da mineração, os do mercado imobiliário certamente têm interesse no avanço do Projeto de Lei (PL) 490/2007, que inviabiliza e impõe retrocessos para a demarcação de terras indígenas.
Com o objetivo de gerar lucro para poucos, existem vários casos de avanço sobre territórios indígenas com a anuência ou, diretamente, com o compromisso do poder público em trabalhar em defesa de interesses privados contra os direitos de povos indígenas, muitas vezes por meio da própria tentativa de modificação da legislação local.
Com o requerimento de urgência recentemente aprovado, o PL da Grilagem (Projeto de Lei 2.633/2020) também promete beneficiar a especulação imobiliária com terras indígenas.
O PL, entre outras coisas, visa regularizar a invasão privada de terras públicas em geral, e inclusive facilitar a invasão em áreas de comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas.
O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) emitiu uma nota pública contra o avanço da legalização da grilagem no Brasil no início deste mês.
Nela, o CNDH afirma que o “Congresso não deve premiar quem viola direitos de agricultores familiares, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, aumentando a desigualdade, estimulando a violência no campo, a especulação imobiliária e o trabalho em condições análogas à escravidão”.
Mulheres indígenas contra a especulação em Alter do Chão (PA)
No final do ano passado, a Associação de Mulheres Indígenas de Alter do Chão (PA) iniciou uma campanha contra o avanço de grandes empreendimentos sobre o território indígena do povo Borari, que está à espera de demarcação da área.
Elas denunciam que devido ao avanço de projetos turísticos e de mineração vêm perdendo terras e que os habitantes tradicionais vêm sendo empurrados para as regiões periféricas do território.
Em 2017, foi apresentado o Projeto de Lei 1621/2017 na Câmara de Santarém (PA) que pretendia modificar a Lei de Uso, Ocupação e Parcelamento do Solo das Zonas Urbana e Rural, e autorizar, por exemplo, a construção de prédios de até 19 metros de altura.
Devido à resistência das populações tradicionais, os Ministérios Públicos Estadual e Federal recomendaram a suspensão do PL, tanto para que fossem realizados estudos técnicos, como para garantir a realização de consulta prévia, livre e informada à população que seria atingida.
Comunidade Mbya Guarani da Ponta do Arado em Porto Alegre (RS)
A Prefeitura de Porto Alegre também tenta alterar a legislação municipal para permitir um projeto imobiliário, da empresa Arado Empreendimentos Imobiliários Ltda., que possui potenciais impactos ambientais e sobre indígenas que vivem na Ponta do Arado, no bairro Belém Novo, no Extremo Sul da capital gaúcha.
A gestão de Sebastião Melo (MDB-RS) está formulando o terceiro PL dos últimos 6 anos, que visa ajustar as leis para permitir a implementação de um projeto que prevê a construção de mais de 2,3 mil lotes de média e alta renda, e que coloca em risco a preservação de banhados e ecossistemas importantes que ajudam a evitar alagamentos na região.
Desde 2018, a Ponta do Arado, que fica às margens do Rio Guaíba e dentro de uma área de preservação ambiental, é ocupada por indígenas Mbyá-Guarani.
Estudos antropológicos que ainda não foram finalizados indicam resquícios históricos de habitação indígena no local. Além disso, a área de mata e na beira do rio garante as condições necessárias para a sobrevivência dos Guarani, que já estão presentes no Extremo Sul de Porto Alegre, no bairro Lami, e na divisa da região com a cidade de Viamão, nas localidades do Cantagalo e de Itapuã.
A empresa e a prefeitura omitem a presença dos Guarani na Ponta do Arado. Eles não constam no projeto da empresa, sequer são citados nas audiências públicas e demais debates sobre o destino da área.
Tampouco são levados em consideração em algum planejamento do poder público que preveja alternativas, como a manutenção da comunidade indígena junto à área de preservação.
A Arado Empreendimentos contratou uma empresa de segurança privada e montou um posto próximo à aldeia. A comunidade foi alvo de um ataque a tiros, comprovado em investigação policial posterior.
A Arado ainda instalou uma cerca com sensor de movimento para monitorar os indígenas, concretou poço artesiano e não permitiu outros acessos para buscar água potável, proibiu que buscassem lenha e isolou a aldeia a tal ponto que apenas podia ser acessada de barco pelo Guaíba.
A situação de cercamento gerou um “confinamento desumano” segundo o Tribunal Regional Federal da 4ª Região que, em janeiro de 2020, determinou a retirada da cerca e exigiu que a empresa respeitasse o direito de ir e vir dos indígenas, além do acesso à água.
A empresa ainda entrou com pedido de reintegração de posse na Justiça Estadual, que foi atendido, mas posteriormente suspenso. Enquanto isso, os Mbya Guarani aguardam a demarcação da terra, atualmente em fase de estudo pela Funai (Fundação Nacional do Índio).
Na luta por acesso à água potável, uma parceria do Instituto Econsciência, Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Laboratório de Etnoarqueologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul LAE/UFRGS, da Amigos da Terra Brasil e com os/as indígenas da Retomada construíram um projeto para autonomia da comunidade da Ponta do Arado. O grupo implementou um sistema de tratamento da água do Guaíba para torná-la potável.
A defesa do Cinturão Verde Guarani em São Paulo (SP)
Os indígenas da Terra Indígena Jaraguá, na Zona Norte da capital paulista, têm motivos de sobra para não acreditar na ideia divulgada pela mídia de que o novo ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, seria “mais aberto”.
De família ruralista, e integrante da Sociedade Rural Brasileira (SRB) por mais de 20 anos, Leite e sua família têm uma disputa judicial contra a comunidade por uma parte da Terra Indígena Jaraguá.
As comunidades indígenas que vivem ali já sofreram recentemente uma tentativa de avanço da especulação imobiliária sobre suas terras.
Em 2020, a Construtora Tenda S.A. derrubou mais 500 árvores da Mata Atlântica, a escassos metros da aldeia Tekoa Ytu, a única das seis aldeias da região que ainda não teve finalizado o processo de demarcação.
A comunidade resistiu, ocupou o espaço e conseguiu fazer com que a Justiça suspendesse as obras de construção das 11 torres. Os indígenas querem que na área seja construído um parque ecológico e um Memorial da Cultura Guarani.
Além disso, os indígenas do Jaraguá vêm lutando junto às comunidades Guarani Tenondé Porã, no extremo sul de São Paulo, para que seja aprovado o projeto de Lei do Cinturão Verde Guarani, que visa manter as áreas de Mata Atlântica em pé, recuperar áreas degradadas e nascentes de água. O projeto já foi aprovado em primeiro turno, mas está parado na Câmara Municipal de São Paulo.
É preciso deter os processos de especulação imobiliária sobre terras indígenas em todo o país, inclusive nas áreas urbanas. Eles são rejeitados pelas comunidades e movimentos indígenas, e negativos também do ponto de vista da justiça ambiental.
As mudanças em debate em Brasília que dizem respeito às terras indígenas visam também promover fortemente o crescimento de projetos desse tipo.
Por esses motivos, continuamos na luta contra o PL da Grilagem, a farsa do Marco Temporal e em defesa da Demarcação Já das Terras Indígenas!
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Leandro Melito