Pandemia

Férias nas praias paraenses denunciam falsa normalidade

A diminuição das restrições para combater a expansão da Covid-19 no Pará coincidiu com o período das férias escolares

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A imagem acima mostra praia do Atalaia, em Salinas no dia 18 de julho - Igor Mota

Mais de 243 mil pessoas já estiveram nas praias exuberantes de Salinas, no nordeste paraense, nas duas primeiras semanas de julho. O número é seis vezes o tamanho da população do município de Salinópolis, estimada em 40 mil habitantes.

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Nas redes sociais, hotéis, bares e restaurantes anunciam shows e outros eventos que estão ocorrendo na cidade, com a contratação, inclusive, de atrações de outros estados. Nas imagens é possível verificar que o público, os cantores e suas bandas estão sem máscaras e aglomerados. Mas a pandemia do novo coronavírus não acabou no Brasil, tampouco no Pará.

Em 9 de julho, no Diário Oficial do Estado (DOE), o governador Helder Barbalho (MDB) publicou o Decreto 800/2020, que alterou para verde o bandeiramento de 72 cidades paraenses (exatamente a metade do número de municípios do estado), que estão distribuídas na Região Metropolitana de Belém, no Marajó Oriental, no Nordeste paraense e no Baixo Tocantins.

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A bandeira verde significa risco baixo de proliferação do coronavírus. De acordo com técnicos do projeto “Retoma Pará”, que avaliam o retorno das atividades econômicas no estado, o Pará encontra-se com a evolução da Covid-19 em fase decrescente e com a capacidade hospitalar controlada.

Ato continuo, até o governador embarcou no clima de “normalidade” criado pelo novo bandeiramento. No último domingo (18), Helder Barbalho publicou em suas redes sociais fotos ao lado da esposa, dos irmãos e do pai, o senador Jader Barbalho (MDB). A família estava na praia do Atalaia – a mais badalada de Salinas. A gestão de Helder Barbalho é investigada pela Polícia Federal por suspeitas de desvios de recursos públicos destinados ao combate da pandemia.


Família Barbalho, em Salinas, no Pará / Reprodução Instagram

Na contramão desse clima de falsa normalidade, a vacinação segue lenta: segundo a Secretaria Estadual de Saúde, apenas 29% da população foi completamente imunizada no Pará. O estado registrou, até 23 de julho, 568.161 casos de covid-19 e 15.914 mortes relacionadas à doença.

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“A nossa maior preocupação é a de que as pessoas encarem a flexibilização como uma espécie de ‘volta à normalidade’. Por isso, é importante que o governo oriente a população de que não estamos em um cenário epidemiológico livre de riscos, pelo contrário”, afirma a médica epidemiologista e pesquisadora do Laboratório de Epidemiologia, Territorialidade e Sociedade do Núcleo de Medicina Tropical da Universidade Federal do Pará, Marília Brasil Xavier.

Salinas é banhada pelo Oceano Atlântico e faz parte da chamada Zona Costeira Amazônica. Ela abriga algumas das praias mais procuradas do estado, a exemplo das praias do Atalaia, do Maçarico e da Corvina.

Aglomerações proibidas


Praia do Atalaia em Salinópolis, no dia 18 de julho / Igor Mota

Nos municípios, que passaram da bandeira amarela à verde – a segunda menos restritiva na escala criada pelo governo – está agora autorizado o funcionamento de bares, lanchonetes e restaurantes e a realização de eventos privados com até 300 pessoas. 

Em ambos os casos, deve-se respeitar os limites de ocupação de 75% da capacidade dos estabelecimentos, o uso de máscaras, álcool em gel e o distanciamento social. O bandeiramento verde só fica atrás do azul, que prevê um cenário de controle quase total da covid-19.  

O decreto estadual ressalta que permanecem vetadas aglomerações, reuniões e manifestações em espaços públicos, “para fins recreativos, com audiência superior a 300 pessoas”, e que permanecem fechadas boates e casas noturnas, além de continuar proibida a realização de shows, festas abertas ao público e presença de público em eventos esportivos.  

Mas, motivadas pelo novo bandeiramento, milhares de pessoas se deslocaram para o litoral paraense, lotando praias, balneários e festas noturnas, provocando aglomerações e, na maioria dos casos, negligenciando o uso de máscaras. Essa foi a primeira vez que o bandeiramento verde coincidiu com o período das férias escolares no estado. 

“O fato de você dar esse ‘cartão verde’, esse ‘passaporte da alegria’ para a população do Pará é algo bastante preocupante, porque estamos no meio de uma pandemia, com muitos países, inclusive, já entrando na quarta onda de infecções”, avalia o epidemiologista Jesem Orellana, pesquisador da Fiocruz Amazônia.

Segundo ele, é preciso ter cautela quando o assunto é diminuição de casos e baixa ocupação de leitos, ressaltando que o Brasil está entre os países que menos realiza testagem para covid-19 e que, portanto, os números obtidos pelas secretarias estaduais de saúde não representam a realidade epidemiológica dos estados, mas uma estimativa, as vezes distante da realidade, sem falar nas subnotificações.  

“É muito difícil você imaginar uma situação homogênea, em termos de dinâmica da epidemia, considerando os casos novos de infecção, hospitalizações e mortes por covid-19, em dezenas de municípios de um estado com a complexidade que tem o Pará”, reforça Orellana.

Os outros 72 municípios do estado, que se encontram nas regiões do Marajó Ocidental, Xingu, Carajás e Tapajós, estão sob bandeiramento amarelo, de risco intermediário. 

A pesquisadora Marília Xavier alerta para o perigo dessa “sensação de normalidade”. Ela chama atenção para os riscos de uma explosão de casos nos dias consecutivos ao mês de julho. “Se você tem a percepção, por parte da população, de que tudo está bem, é realmente muito preocupante, porque nós podemos ter consequências muito sérias após este período de julho”, afirma a médica, que também é professora titular da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual do Pará.

Segundo ela, o problema não está só em ir às praias, mas também no aumento da exposição das pessoas que “estão normalizando uma situação que ainda é muito arriscada, sobretudo por conta do surgimento de novas variantes, com capacidades maiores de transmissão”. 

Variante delta


O pesquisador Jesem Orellana / Reprodução/Youtube

Os dois pesquisadores ouvidos pela Amazônia Real manifestaram preocupações com a expansão da variante Delta no Brasil e, especialmente, na Amazônia, onde ambos atuam. Orellana alerta que a variante já pode estar circulando no Pará, mas a precariedade da vigilância genômica e laboratorial do estado, pode estar atrapalhando o monitoramento da ocorrência da nova cepa entre os paraenses.

“O fato de não termos encontrado a variante Delta em quase todas as unidades da federação neste momento, não significa que ela não esteja circulando pelo menos na maioria dos estados do Brasil.  Significa pura e simplesmente que eles não tiveram a capacidade de detectar essas [novas] variantes”, destacou Jesem Orellana.

O pesquisador lembrou ainda que a variante surgida em Manaus em outubro do ano passado – hoje conhecida como Gama – só foi descoberta cerca de três meses depois pelo Ministério da Saúde do Japão, em uma vigilância aeroportuária de rotina. 

O monitoramento genômico do coronavírus no estado do Pará é feito pelo Instituto Evandro Chagas (IEC), instituição de referência nacional e internacional ligada ao Ministério da Saúde. A agência procurou a instituição para obter informações a respeito do monitoramento da variante Delta no estado e se há algum caso confirmado ou suspeito em circulação no Pará, mas até a publicação da reportagem não houve resposta. 

A Sespa informa que não há nenhum caso confirmado da presença da cepa e que tem implementado ações de fiscalização e controle epidemiológico nas fronteiras do Pará com outros estados, como o Maranhão. No entanto, a secretaria não informa de que maneira esse controle tem sido feito nos aeroportos do estado.

Ainda segundo a Sespa, parâmetros utilizados pela equipe do “Retoma Pará”, os quais subsidiaram a flexibilização das medidas restritivas em algumas regiões do estado, levaram em conta tanto o cenário epidemiológico, como o “cenário socioeconômico”.

A variante, identificada em outubro do ano passado na cidade indiana de Maharashtra (daí porque a chamaram de variante indiana em um primeiro momento), tem preocupado a Organização Mundial de Saúde por conta da sua alta capacidade de transmissão. Marília Xavier explica que até agora a ciência ainda não conseguiu comprovar se a variante é mais letal do que as demais cepas, mas aponta para os riscos dela se tornar predominante no Pará. Para a pesquisadora, o estado já demonstrou fragilidade na oferta de leitos e na estrutura hospitalar nos momentos de pico da pandemia. 

De acordo com o último boletim da Fundação Oswaldo Cruz com dados do InfoGripe, que monitora os casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) no Brasil, 26 capitais apresentam tendências de alta no número de casos de covid-19, incluindo Belém. Até o dia 22 de julho, a capital do estado do Pará já havia registrado 104.618 casos confirmados de covid-19 e 4.993 óbitos em decorrência da doença.

A reportagem tentou contato com a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Saúde de Belém (Sesma), perguntando sobre a flexibilização das medidas sanitárias, o cenário epidemiológico da capital paraense e o fluxo  intenso de banhistas em duas praias do município, Outeiro e Mosqueiro. Mas até o fechamento desta reportagem não houve retorno. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Pará (Segup), 156.180 pessoas já passaram pela praia Outeiro na primeira quinzena de julho, e 75.386 em Mosqueiro.

A Amazônia Real apurou que desde 31 de maio a Prefeitura de Salinópolis oculta a situação epidemiológica do município. Questionado sobre a ausência da divulgação dos boletins epidemiológicos no site e nas redes sociais da prefeitura, o secretário de saúde de Salinópolis, Dayler Júlio Borges Monteiro, respondeu enviando um boletim atualizado do dia 21 de julho – mesmo dia do contato.

Diante da insistência da reportagem em solicitar os boletins de todos os dias deste mês, o secretário respondeu: “Tivemos um problema de inserção de dados porque a coordenadora epidemiológica estava ausente por doença e, infelizmente, não fizemos [os boletins] dos primeiros dias deste mês”.

Segundo o boletim enviado por Dayler Monteiro, o número acumulado de casos em julho era de apenas 11 infecções e 1 morte por covid-19. O município, no entanto, de acordo com dados da Sespa, é o quarto com maior taxa de letalidade da doença (8,9%), superando as duas maiores cidades do estado, Belém (4,79%) e Ananindeua (3,26%). Até o dia 23 de julho, Salinas acumulava 1.169 casos e 104 mortes por covid-19, segundo dados da Sespa.  

Em nota, o governo do estado informou que, em julho, “a Operação Verão 2021, emprega 3 mil agentes de segurança em mais  40 localidades paraenses para garantir segurança e tranquilidade para os veranistas”. E que a Vigilância Sanitária Estadual tem realizado fiscalizações e ações informativas em bares, restaurantes e outros estabelecimentos comerciais, para o cumprimento das medidas sanitárias previstas no Decreto 800/2020.

Sem óbitos?

Coincidência ou não, no mesmo período da publicação do governador na praia do Atalaia com a família, no fim da tarde, a Sespa publicava o boletim epidemiológico do último domingo (18), em sua conta no Twitter. Segundo a secretaria, não havia sido registrado nenhum caso novo de infecção e de óbito relacionado ao coronavírus nos últimos sete dias, notícia que surpreendeu positivamente até os mais pessimistas. 

No dia seguinte, o assunto era a manchete principal da versão impressa do Diário do Pará, jornal da família Barbalho, administrado pelo irmão do governador, Jader Filho. Na foto da praia, ele é o que aparece atrás de Helder e Jader Barbalho, com óculos escuros de lentes espelhadas. 

A notícia também foi publicada na versão digital do jornal e em todas as redes sociais do veículo, mas logo foi tirada do ar. Por telefone, a redação do jornal informou que a reportagem foi apagada por conter “um erro”. 

A Amazônia Real chegou a questionar se o veículo iria publicar alguma nota a respeito do fato, por se tratar de uma informação de impacto direto na saúde pública do estado, mas não obteve resposta.

No boletim publicado na segunda-feira (19), a Sespa informou um dado bem diferente, acrescentando 90 registros de infecção e 11 óbitos por covid-19, ocorridos nos últimos sete dias.


Boletim epidemiológico do estado do Pará de 19 de julho / Sespa

Questionada sobre essa oscilação, a falta de precisão e a confiabilidade dos dados epidemiológicos do estado, a Sespa informou que “apesar da possível defasagem por parte dos municípios no sistema de monitoramento, a análise e cruzamento da informação também se dá por outros sistemas, como é o caso do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), onde os óbitos são registrados obrigatoriamente.”

A nota da Sespa diz ainda que as tomadas de decisão do estado, a respeito da flexibilização das medidas sanitárias, também levam em consideração possíveis defasagens e variações nos bancos de dados da secretaria

“O povo preferiu as praias”

Na manhã do dia 23, sexta-feira, Helder Barbalho anunciou o retorno das aulas presenciais no estado para o dia 2 de agosto. As aulas estão suspensas desde o início da pandemia. 

O cenário fica ainda mais crítico quando se considera a baixa cobertura vacinal do Pará. O estado reflete o problema nacional da aquisição de vacinas por parte do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) que, deliberadamente, defendeu medidas comprovadamente ineficazes – como o uso de hidroxicloroquina e outros fármacos – no tratamento da covid-19, em vez de adquirir imunizantes, conforme investigações da CPI da Covid, em Brasília.

Orellana reforça a situação do Brasil a respeito da vacinação e os riscos que uma imunização lenta pode acarretar. “Uma vacinação que não progride rapidamente, abre oportunidades para que o vírus possa se adaptar a essas vacinas e, eventualmente, driblar o efeito protetor gerado por elas, o que seria um grande desastre não só para o Brasil, mas para a humanidade”, diz.

O fluxo intenso de veranistas nas férias de julho comprometeu a imunização de alguns grupos etários na capital paraense. Pedrina Pinto, enfermeira que coordena um dos principais pontos de vacinação do município, instalado nas dependências da Faculdade Integrada da Amazônia (Fibra), na Rua Gentil Bittencourt, no bairro Batista Campos, conta que a procura pela vacina tem variado no mês de julho.

Segundo a coordenadora, nos fins de semana a procura já tem sido baixa e ela atribui a evasão ao período de férias. 

“Essa baixa procura que a gente está vendo aqui hoje é por conta das praias e dos balneários. O povo preferiu as praias a vir se vacinar. Depois, quando voltam, querem que a gente tenha vacina ou que remarque a vacinação daquela determinada faixa etária, isso atrasa o andamento da imunização do restante do público”, relatou Pedrina.

A Amazônia Real acompanhou a vacinação em dois pólos centrais de vacinação em Belém no último sábado (17), o da Fibra e do Shopping Boulevard, no centro de Belém. Cadeiras vazias e profissionais ansiosos por vencer mais uma etapa da vacinação, aguardavam pelos nascidos em 1991 (pessoas com 29 anos) e pessoas de outras faixas etárias que, por algum motivo, haviam perdido a segunda dose da vacina Astrazeneca.

“Eu acredito que mesmo que a gente tivesse expandido a faixa etária aqui hoje, não teria público, é justamente a faixa etária que escolheu viajar e curtir as férias. Falta consciência e responsabilidade nas pessoas”, disse Mara Letícia, enfermeira coordenadora do polo de vacinação do Boulevard.

“Nós, profissionais da saúde, estamos muito preocupados com os resultados dessas férias de julho, porque já vimos esse filme no natal passado. As pessoas parecem esquecer a gravidade dessa doença. Estamos cansados. Para a gente não tem férias”, pontuou Pedrina Pinto.