“A prisão é, formalmente, a imposição de uma pena, a pena privativa de liberdade. Mas isso não significa que o sujeito sob privação de sua liberdade deva se privar também do seu contato familiar, do direito à saúde, da sua liberdade de culto.”
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Essa ponderação foi feita à RBA pela advogada e pesquisadora Bruna Portella, do Instituto de Estudos da Religião (Iser). Para ela, isso é o que deve acontecer caso o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, implemente o projeto de acabar com a assistência religiosa presencial, atualmente em estudo.
“Sabemos que frequentemente a privação de liberdade é usada como uma ‘carta branca’ para imposição de violências físicas e psicológicas das mais variadas. E a suspensão da assistência religiosa significaria o esvaziamento do texto constitucional, que a prevê explicitamente, o fim de um canal de comunicação extramuros e o incremento de uma privação”.
Prisão sem assistência religiosa
O Iser é uma das mais de 450 entidades, incluindo pastorais, conselhos, comissões, fóruns, núcleos e coletivos do Brasil e do exterior, das mais diversas vertentes religiosas, que endossam carta aberta da Pastoral Carcerária contrária à proposta.
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Para a instituição, o eventual fim da assistência religiosa significa, em primeiro lugar, mais uma privação num ambiente já repleto delas. “Os canais de comunicação entre a pessoa privada de liberdade e sujeitos extramuros, como familiares, companheiros, assistentes religiosos, oferecem possibilidades de romper com a violência cotidiana no cárcere, seja através do acolhimento, seja pela possibilidade de escoar denúncias de violência”, disse Bruna.
“Muito se fala sobre a necessidade de garantir o direito constitucional da pessoa privada de liberdade de se comunicar com seu defensor ou advogado, mas a realidade é que quem se ocupa do contato cotidiano são esses outros sujeitos, que se tornam, na prática, tão ou mais fundamentais, não por acaso, são os movimentos de familiares de pessoas presas e vítimas de violência de Estado que têm articulado os mais significativos enfrentamentos aos retrocessos”, ressaltou.
Audiências virtuais
A preocupação de religiosos com essa proposta em estudo é bastante legítima, segundo Bruna. Assim, a emergência sanitária da covid já foi utilizada para alavancar pautas retrógradas. Um exemplo conexo é a virtualização das audiências de custódia – que são o primeiro encontro do acusado com um juiz, com a finalidade de fazer o controle da legalidade da prisão.
Durante as votações do pacote anticrime, em 2019, a virtualização dessas audiências já estava em pauta, mas não conseguiu avançar.
Na pandemia, essa iniciativa retornou com força considerável. “Apesar de muita contestação, desde novembro o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) têm permitido que as audiências de custódia sejam virtuais, o que esvazia completamente a possibilidade de que o juiz escute denúncias de tortura ou perceba visualmente se há sinais de violência”, disse.
“Na prática, há uma desnaturação do instituto, que continua existindo, mas incapaz de cumprir suas funções”, afirmou ainda.
“Esse processo de esvaziamento também está em jogo na questão da assistência religiosa. Sob o discurso de que o direito será mantido apesar do formato, cria-se uma funcionamento completamente esvaziado e, a médio e longo prazo, uma justificativa para a extinção da modalidade presencial.”
Grupos religiosos
Entre os apoiadores da Pastoral Carcerária, há o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), que representa a Igreja Católica. E também evangélicas, como a Luterana, Presbiteriana, Anglicana e algumas do ramo Batista, entre outras evangélicas. Igrejas grandes, como Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, não subscreveram a carta.
Na avaliação do sociólogo Clemir Fernandes, também pesquisador do Iser, a falta de outras grandes denominações pode ter razões diversas. Desde possivelmente desconhecimento ou falta de articulação para assinar o documento, até preconceito por outros grupos religiosos e políticos com os quais não gostariam de se associar a uma pauta assim.
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“Embora, pela natureza desses grupos evangélicos, tanto pentecostais quanto tradicionais, eles seriam contra qualquer cerceamento como pretende a proposta do Depen. Mas pode haver outras razões de natureza política neste contexto maior em que o país vive atualmente”, acrescentou.
Pluralidade
Fernandes entende haver ofertas demais de certos grupos religiosos e escassez e mesmo falta de outros grupos nesse trabalho de assistência religiosa. “O Estado deve estimular caminhos para aumentar a pluralidade e garantir isonomia dos grupos, não priorizando uns em favorecimento de outros.”
Historicamente, o Iser tem defendido que a assistência religiosa deve considerar o protagonismo da pessoa privada de liberdade.
Ou seja, ela demandaria a assistência que gostaria de ter, inclusive escolhendo o grupo ou grupos religiosos distintos aos quais quer participar desse trabalho. “A oferta de grupos religiosos deve ser a partir da demanda dos presos e não o contrário, para fortalecer a dimensão de ator dotado de direito que tem a pessoa presa, conforme se percebe no teor do texto constitucional”.