Ao lado da pandemia de covid-19, enfrentamos uma verdadeira pandemia de remoções forçadas ilegais
Por José Carlos Garcia
Há muito se sabe que as condições sociais em que as pessoas nascem, crescem, vivem, influenciam grandemente suas condições de saúde. A pandemia global de covid-19 agudizou contradições e desigualdades sociais, impactando com muito mais rigor as populações mais pobres e vulneráveis.
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No Brasil, a ausência de uma coordenação nacional centralizada no combate à pandemia e na definição de medidas de redução de impactos nas populações em situação de vulnerabilidade acabou levando outros órgãos a assumirem esse protagonismo, com destaque especial a governos estaduais e prefeituras e ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Com o lento avanço da vacinação em nosso país – em 27/07/2021, apenas 18% da população brasileira estava totalmente vacinada, de acordo como site Our World in Data – as principais estratégias de controle da disseminação da doença seguem sendo o uso correto de máscaras, a lavagem constante das mãos ou o uso de álcool em gel 70° e o isolamento social.
Pessoas com precárias condições de habitação, como famílias aglomeradas em poucos cômodos, com pouca ventilação e inadequadas condições sanitárias, e ainda aquelas em situação de rua, acabarão por ter muito menos possibilidade de adoção destas estratégias, expondo-se muito mais intensamente ao vírus.
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Além disso, a fragilidade geral de suas condições sanitárias e econômicas, inclusive alimentares, podem estar relacionadas a uma maior debilidade de seus sistemas imunológicos, favorecendo tanto o contágio, quanto o desenvolvimento de formas graves da doença, já que deficiências nutricionais aumentam a suscetibilidade a infecções.
Assim, a última coisa que podemos querer em meio a uma pandemia global é um aumento do número de pessoas nestas condições, tanto por razões humanitárias e morais em relação a elas próprias, quanto do ponto de vista geral da cadeia de contágio da Covid-19.
Curiosamente, não foi o que observamos no país. De fato, vivemos um aumento do número de ações de despejo em meio à pandemia, que chegou à ordem de 79% no estado de São Paulo, em boa medida decorrentes de falta de pagamento de aluguéis ou financiamentos, já que muitas pessoas perderam seus empregos ou sofreram importante queda de renda durante a pandemia, comprometendo sua capacidade de pagamento.
:: Estado de São Paulo concentra 28% dos despejos durante a pandemia ::
Em boa parte dos casos, as remoções se fazem com uso abusivo da força por parte da Polícia Militar.
Sem emprego, renda, auxílio emergencial ou mesmo casa, é impossível a estas pessoas cumprirem o imperativo fique em casa, propugnado pela Organização Mundial de Saúde – OMS.
Estarão, assim, muito mais expostas ao SARS-CoV-2, correndo risco muito maior de contraírem a doença, e de transmiti-la. É neste contexto que várias medidas foram tomadas com a finalidade de reduzir os despejos:
1. A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro aprovou, em 25/09/2020, a Lei 9.020, que determina a suspensão do cumprimento de mandados de reintegração de posse e imissão na posse, despejos e remoções judiciais ou extrajudiciais, como medida temporária de prevenção ao contágio pelo novo coronavírus durante o estado de calamidade pública definido por decreto estadual. Esta Lei havia tido sua eficácia suspensa por decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em representação de inconstitucionalidade ajuizada pela Associação de Magistrados do Estado do Rio – AMAERJ, mas a decisão do TJ foi suspensa em 23/12/2020 por liminar do Ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, na Reclamação 45319, de modo que a Lei está em pleno vigor; em 09/06/2021, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou o Projeto de Lei 146/2020, que, a exemplo da lei fluminense, suspende a execução de todos os mandados de reintegração e imissão na posse, despejos e remoções judiciais e extrajudiciais durante a pandemia de Covid-19 – ao momento em que este artigo era redigido, o PL encontrava-se com o Governador João Dória, para sanção ou veto; projetos com teor similar foram apresentados em outros estados, como o PL 1010/2020, na Assembleia Legislativa de Pernambuco – até o fechamento deste artigo, ele ainda não havia sido votado pela ALEPE, mesmo com a aprovação de sua tramitação em regime de urgência desde 30/06/2021;
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2. O Conselho Nacional de Justiça aprovou, em 02/03/2021, a Recomendação 90/2021, que, apesar de não ser obrigatória, indica aos órgãos do Poder Judiciário que, enquanto perdurar a situação de pandemia, avaliem com especial cautela o deferimento de tutela de urgência que tenha por objeto desocupação coletiva de imóveis urbanos e rurais, sobretudo nas hipóteses que envolverem pessoas em estado de vulnerabilidade social e econômica, verificando, inclusive, se estão atendidas as diretrizes estabelecidas na Resolução nº 10 do Conselho Nacional de Direitos Humanos – CNDH, de 17/10/2018;
3. O Ministro Luis Roberto Barroso, do STF, concedeu a medida liminar na ADPF 828, em 03/06/2021, que suspendeu, por seis meses, medidas administrativas ou judiciais que resultem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que sirvam de moradia ou que representem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis, nos casos de ocupações anteriores a 20 de março de 2020, quando do início da vigência do estado de calamidade pública (Decreto Legislativo nº 6/2020); com relação às ocupações posteriores àquela data, o Poder Público poderá atuar a fim de evitar a sua consolidação, desde que as pessoas sejam levadas para abrigos públicos ou que de outra forma se assegure a elas moradia adequada; suspendeu, também por seis meses, a possibilidade de concessão de despejo liminar sumário, sem a audiência da parte contrária (art. 59, § 1º, da Lei nº 8.425/1991), nos casos de locações residenciais em que o locatário seja pessoa vulnerável, mantida a possibilidade da ação de despejo por falta de pagamento, com observância do rito normal e contraditório. A liminar concedida pelo ministro apenas ressalvava as ocupações situadas em áreas de risco, suscetíveis à ocorrência de deslizamentos, inundações ou processos correlatos, mesmo que sejam anteriores ao estado de calamidade pública, nas quais a remoção poderá acontecer, respeitados os termos do art. 3º-B da Lei federal nº 12.340/2010; as situações em que a desocupação se mostre absolutamente necessária para o combate ao crime organizado – a exemplo de complexos habitacionais invadidos e dominados por facções criminosas – nas quais deve ser assegurada a realocação de pessoas vulneráveis que não estejam envolvidas na prática dos delitos; a possibilidade de desintrusão de invasores em terras indígenas; e as posições jurídicas que tenham por fundamento leis locais mais favoráveis à tutela do direito à moradia, desde que compatíveis com a Constituição, e decisões judiciais anteriores que confiram maior grau de proteção a grupos vulneráveis específicos, casos em que a medida mais protetiva prevalece sobre a presente decisão. É caso da Lei fluminense 9.020;
4. Finalmente, em 14/07/2021, o Congresso Nacional finalmente aprovou o PL 827/2020, depois de quase um ano e meio de tramitação, que suspende todas as desocupações judiciais, extrajudiciais e administrativas, até 31 de dezembro do corrente ano, também estabelecendo inúmeras vedações à concessão de liminares nestes casos. A medida vale para imóveis exclusivamente urbanos, não se aplica a ocupações posteriores a 31 de março de 2020 e não alcança desocupações já finalizadas na data de publicação da Lei. No momento de fechamento deste artigo, o texto estava aguardando sanção presidencial.
Não obstante, várias medidas judiciais vêm sendo tomadas determinando despejos em áreas urbanas e rurais, ao aparente arrepio das recomendações, leis e decisões vinculantes do Supremo acima indicadas. Segundo dados da Campanha Nacional #Despejo Zero, até o início de junho mais de 14.300 famílias haviam sido desalojadas durante a pandemia no Brasil, e mais de 84.000 seguiam ameaçadas de remoção.
::Com atuação da Campanha Despejo Zero, STF suspende desocupações por seis meses::
A própria resistência de setores da magistratura ao reconhecimento de vigência destas Leis, de que o ajuizamento da representação de inconstitucionalidade pela AMAERJ contra a Lei 9.020 é uma das maiores expressões, já demonstra a dificuldade da Instituição compreender a gravidade do momento e a necessidade de priorizar a proteção à vida e à saúde, em vez da proteção à propriedade privada. Ainda que a alegação de inconstitucionalidade se baseasse na competência privativa da União para legislar sobre processo civil e direito civil – ao fim e ao cabo, descartadas pelo Ministro Lewandowski na sua decisão – , não há como não vislumbrar que a resistência daquela associação, assim como as dos parlamentares de São Paulo, de Pernambuco e do próprio Congresso Nacional, não resida fundamentalmente na relativização da proteção à vida.
Parece que, ao lado da pandemia de covid-19, enfrentamos uma verdadeira pandemia de remoções forçadas ilegais, algumas vezes determinadas mesmo judicialmente, mas sem a observância das severas limitações impostas, de modo cogente, a todo o Judiciário e à Administração Pública, pela decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 828, ou ainda pelos parâmetros fixados pela Recomendação 90/2021 do CNJ, especialmente a imposição, ao Poder Público, de medidas que assegurem um abrigo provisório razoável às pessoas removidas e procedimentos que viabilizem uma solução de moradia digna definitiva.
Há muitas faces possíveis para o negacionismo. A mais terrível talvez seja aquela que, a pretexto de apenas cumprir a Lei, a viola ostensivamente, expondo pessoas em situação de fragilização a riscos desproporcionais de contágio e de degradação de sua saúde e de sua vida digna.
*José Carlos Garcia é Doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. Escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo