Abandono

O que se perde quando o acervo de uma Cinemateca queima?

Além do patrimônio material, 4 toneladas de documentos históricos, cópias de filmes e objetos, perdemos a história

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Em julho de 2020, o Ministério Público Federal em São Paulo (MPF-SP) moveu ação na Justiça contra a União por abandono da Cinemateca - Reprodução

No início da noite desta quinta-feira os noticiários de TV mostravam as chamas que consumiam o galpão da Cinemateca Brasileira localizado na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo.

Nas redes sociais, o desespero tomava os que, mais cientes do valor imensurável do acervo, vêm protestando e alertando sobre a atual situação da Cinemateca há pelo menos um ano. Nos sites de notícias, informações urgentes sobre o incêndio que atingiu o primeiro andar do galpão de cerca de mil metros quadrados.

As chamas, segundo o Corpo de Bombeiros, consumiram de 300 a 400 metros quadrados. “São três salas, de arquivo histórico, duas delas de arquivo de filmes, uma delas, segundo informações do efetivo que trabalha na Cinemateca, de arquivo impresso, também histórico. Não sabemos se isso tem cópia. Uma parte foi queimada e estamos tentando levantar o que é possível resgatar”, afirmou à CNN a tenente responsável por ser a porta-voz do Corpo de Bombeiros. “O térreo, que tem um grande acervo também, não foi atingido”, completou.

Segundo a tenente, os bombeiros civis que trabalham no local informaram que “o princípio de incêndio ocorreu por conta de uma manutenção" que ocorreu na quinta-feira (29).

 “Uma empresa terceirizada contratada pelo governo federal para fazer a manutenção da climatização do local. Eles estavam utilizando um equipamento para fazer a manutenção do ar condicionado. Não se sabe se houve uma falha neste equipamento, mas por conta desta manutenção ocorreu o princípio de incêndio".

"Os bombeiros civis da brigada de incêndio tentaram apagar com os extintores do local, porém não conseguiram por conta do material ser muito combustível e o fogo se alastrou muito rapidamente. Mas a causa em princípio seria esta, da manutenção da climatização”, explicou a tenente.


Rolos e cópias de filmes importantes foram perdidas no incêndio que atingiu cerca de 300 metros quadrados do local / Divulgação

Já a dimensão histórica, cultural, material do que foi queimado não pode ser mensurada.

O que se perde quando o acervo de uma Cinemateca queima?

Durante os momentos de dúvida e desespero de quem sabe o valor do patrimônio cultural do audiovisual e da História (esta com H maiúsculo mesmo) que o órgão abriga, muita informação foi passada e repassada.

O que se apurou foi que de material físico devem ter sido perdidos rolos de cópias de filmes (ou matrizes secundárias), parte da produção dos filmes realizados pelos alunos da ECA (Escola de Comunicação e Artes da USP), cerca de quatro toneladas do acervo documental de toda política pública do cinema brasileiro.

"São documentos históricos do Instituto Nacional de Cinema, do Concine, da Embrafilme e da Secretaria do Audiovisual. Além disso, há objetos como equipamentos cinematográficos que iriam fazer parte do museu da Cinemateca”, como informou o cineasta Roberto Gervitz, coordenador do Grupo de Trabalho Cinemateca da APACI – Associação Paulista de Cineastas, além de um dos coordenadores dos atos SOS Cinemateca Brasileira em 2020.

Os vários atos na frente da Cinemateca Brasileira também foram realizados e contaram com a organização do grupo Cinemateca Acesa e da rede S.O.S Cinemateca Brasileira de ex-funcionários da instituição.

"Perdemos 60 anos de história, toda a memória da política pública de apoio ao cinema", afirmou ao Estadão Carlos Augusto Calil, atual presidente da Sociedade Amigos da Cinemateca e ex-diretor da Cinemateca Brasileira e ex-secretário de Cultura de São Paulo.

“Toda documentação estava lá. Esta documentação nós salvamos na época da Secretaria do Audiovisual estava no último andar da Embrafilme. A gente acabou conseguindo tirar esta documentação de lá, ela foi tratada na Secretaria. Depois, quando a Secretaria acabou isso foi para o MinC (Ministério da Cultura), eu e Gustavo (Dahl) fomos no MinC e conseguimos levar esta documentação de volta para a Ancine e tratamos finalmente na Cinemateca. Conseguimos contratar uma empresa para fazer a limpeza da documentação e ela foi para a Cinemateca. Pelo visto, é justamente esta documentação que está aí”, comentou Vera Zaverucha, que é  especialista em legislação de cinema, além de ter sido diretora colegiada da Ancine, em que também exerceu o cargo  de assessora-chefe do Diretor Presidente. Vera também foi secretária do Audiovisual.

“Pode ser que haja material do Canal 100 também no galpão. Não sei se já havia sido feito cópia disso ou se estava ainda para ser analisado”, completou.

Na lista de outros possíveis materiais que podem ter sido perdidos, ainda há parte do acervo de Glauber Rocha, que foi doado pela família do cineasta, entre outros documentos, cópias de fotos e afins.

“Este tipo de sinistro, se há um monitoramento constante, pode ser minimizado, pode ser combatido muito rápido. Nesta proporção que foi o incêndio, é muito difícil que algo em papel tenha sobrado. É uma tragédia”, afirmou Débora Butruce, presidenta da ABPA (Associação Brasileira de Preservação Audiovisual) e também profissional de preservação.

Tragédia Anunciada

“Foi uma tragédia anunciada. A gente cansou de falar. Na verdade o que acontece lá é que não tem brigada permanente de incêndio, como há na sede da Vila Mariana”, comentou Gervitz.

Este foi o quinto incêndio que a Cinemateca sofreu desde sua fundação, nos anos 1940, ainda como Primeiro Clube de Cinema de São Paulo, criado por nomes como Paulo Emílio Sales Gomes, Décio de Almeida Prado, Antonio Candido de Mello e Souza, entre outros, com o objetivo de promover o estudo do cinema como produção artística independente com a realização de debates, conferências, projeções, entre outras atividades.  O primeiro incêndio ocorreu foi em 1957. E, como também afirmou Calil e funcionários da Cinemateca, o material que estava no primeiro andar foi justamente o que sobreviveu a uma inundação ocorrida no local em 2020. Como também disse Calil, “o que a água começou o fogo terminou.”

Material precioso

Dito isso, nem mesmo havia sido contabilizado o tamanho do estrago da enchente e o fogo destruiu pelo menos uma parte considerável do material que restou.

“A gente ainda não tinha conseguido mensurar o tamanho da primeira tragédia de 2020. Foi quando a crise que se instalou logo depois já se prenunciava. E depois veio a pandemia. Vai ser difícil falar com exatidão o que se perdeu porque o local era um lugar de transição, onde materiais eram tratados para irem para seus depósitos definitivos, mas até onde sabemos são estes acervos documentais e cópias de filmes”, explicou Débora Butruce.


Imagem de uma das salas do galpão da Cinemateca Brasileira após o incêndio desta quinta-feira / Divulgação

No entanto, estas cópias não são originais, mas muitas vezes se tornam as únicas, dependendo do estado em que as originais estão. Estas cópias são também importantes para a difusão e circulação dos filmes, além de não ser nada fácil, barato e rápido fazer cópias em película nos dias atuais.

“Fora isso, para o processo de restauração, os negativos e as cópias são essenciais. Isso porque foi na cópia é onde foi impresso fotograficamente o que foi estabelecido. O negativo tem muitas possibilidades, é um material original que, dependendo de como se revela, da marcação de luz, pode ir para um lado ou para outro. Ele tem possibilidades fotográficas. A cópia é o resultado das escolhas de um negativo. Então ela é um material super importante. Além de termos de difusão e acesso, ela também guarda característica de uma obra. É um material único neste sentido”, explicou Débora.

Crise e descaso

O incêndio é só parte de uma crise mais profunda da Cinemateca Brasileira, que se acentuou infinitamente durante o último ano, quando foi fechada, seus funcionários (super especializados e raros de se encontrar no mercado) foram demitidos, teve seu fornecimento de luz ameaçado de ser suspenso, entre outros problemas.

Entre protestos da população e dos profissionais do audiovisual, ampla cobertura da imprensa, reuniões entre representantes de órgãos como A APACI, o poder público, audiências, debates, o fato é que a Cinemateca segue fechada e sem uma definição para que volte a funcionar como se deve, como é obrigação do Governo Federal e como a população merece. Afinal, é um órgão público.

“Este patrimônio é de todo mundo. Não é só do audiovisual. É patrimônio brasileiro”, observa Débora Betruce.

A Policia Federal foi acionada para apurar o que de fato aconteceu. Mas o certo é que o que aconteceu é também resultado deste longo processo de descaso e crise, que está longe de acabar. Certo é que perdemos, com isso, parte importante de nosso acervo, nossa história, da história do audiovisual brasileiro. As perdas, portanto, como já dito, são incomensuráveis.