Nos estudos de narrativas de ficção, o tipo clássico de contar uma história baseia-se na chamada “jornada do herói”: o protagonista parte de um mundo conhecido, depare-se com um grande problema e, após enfrentá-lo, retorna ao mundo inicial, mais sábio, experiente, com os ensinamentos que acumulou na superação do problema.
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Desde março de 2020, o mundo real se tornou palco de uma história digna de ficção. Um vírus contagioso e letal se espalhou por todos os países. A diferença é que, na vida real, um protagonista sozinho é incapaz de enfrentar o grande problema. E o resultado são milhares de jornadas interrompidas. Em todo o Brasil, já são mais de 557 mil histórias que deixaram de ter seu protagonista. No Paraná, são mais de 35,2 mil.
Na vida real, o protagonista não encontra a redenção, mas a morte. E o “mundo conhecido” tenta retornar, ainda que continue imerso no grande problema. É nessa tentativa de retorno à “normalidade” que o Paraná iniciou a volta às aulas presenciais, em sistema híbrido. As sequelas emocionais da pandemia, no entanto, mostram que é impossível voltar ao normal imediatamente.
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"A gente fala pouco dos nossos mortos. Nós estamos na bandeira amarela em Curitiba e todo mundo feliz. Nós estamos com mais de 500 novos casos, com quinze novos óbitos por dia. Como é que se pode ficar feliz? Não são só números. Eram pais, irmãos, avós, filhos. Somos uma geração de viúvos, viúvas e órfãos", diz Maria Angela da Motta, professora da rede municipal de ensino em Curitiba, em entrevista ao Brasil de Fato.
Ela perdeu a mãe para a covid-19 em março deste ano. Na escola onde trabalha, quatro funcionários também morreram infectados pelo vírus. “É uma coisa que dói. A gente precisa acolher as crianças que perderam família, pais, irmãos, mas a gente também está machucado. A gente também tem essa marca”, desabafa.
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Com duas turmas na parte da manhã e outras dez na parte da tarde, Maria Angela calcula que, em apenas um mês, passará por 400 crianças na escola. O medo do contágio e de infectar seus estudantes é uma preocupação constante. Até o momento, ela tomou apenas a primeira dose da vacina contra a covid-19.
Rede estadual
Na rede estadual de ensino, a situação se repete. Uma pedagoga funcionária do estado, que preferiu não ter seu nome divulgado, conta que é perceptível a delicadeza do estado emocional dos estudantes. Em uma das turmas de sua escola, seis crianças perderam pai ou mãe.
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Professores e demais funcionários têm que aprender a lidar com a situação por conta própria. Não há, por parte do governo, a iniciativa de oferecer qualquer tipo de formação ou apoio voltado para o bem-estar emocional nas escolas. “Parece que estamos naturalizando o fator morte”, conta a pedagoga.
Falta de segurança
Tanto na rede municipal de educação quanto na estadual, as preocupações com os critérios de segurança contra o coronavírus são constantes para as profissionais. As entrevistadas afirmam ser impossível manter o distanciamento social nas salas de aula, mesmo com o sistema híbrido e quantidade reduzida de estudantes presentes.
Para piorar, em Curitiba algumas escolas enfrentam rodízio de abastecimento de água, o que dificulta o cumprimento da orientação para a higienização das mãos. No início do ano letivo, a prefeitura distribuiu álcool em gel e máscaras inadequados para a proteção correta contra o vírus.
Nesse cenário, não há previsão possível de vida normal e segura dentro das escolas, analisam as profissionais ouvidas pela reportagem. “Ou os gestores vão enxergar isso e vamos voltar ao ensino remoto com mais mortos e um caos instaurado ou vão fazer de conta que não estão vendo essas mortes, esses dados”, diz Maria Angela.
Resposta da educação
À reportagem do Brasil de Fato Paraná, a Secretaria de Estado da Educação (Seed) respondeu que “o retorno às escolas é pautado pelo cumprimento do protocolo de biossegurança, respeitando todos os cuidados necessários e a respectiva capacidade que se impõe às salas de aula.”
Sobre apoio psicológico, a Seed informou que não possui uma política específica para lidar com o fator emocional nas escolas. No entanto, disse que “o aspecto emocional é fator importante, tanto que a escola é um local de acolhimento e integra a Rede de Proteção, que envolve várias instituições/áreas governamentais ou não, que atuam para solucionar questões sociais de alta complexidade para crianças e adolescentes em situação de risco ou que necessitem de atendimento especializado. Os profissionais, por sua vez, também contam com ações de apoio à saúde física e mental através do Departamento de Saúde do Servidor.”
A Secretaria Municipal de Educação não respondeu até o fechamento desta reportagem.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Frédi Vasconcelos