Mesmo sem nenhuma garantia de que tinha vacinas, o reverendo Amilton Gomes de Paula, presidente da Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), recebeu um tratamento excepcional do Ministério da Saúde, se comparado aos representantes de laboratórios como a Pfizer e o Instituto Butantan.
“A credencial que o senhor tinha a gente queria que as empresas que têm vacina tivessem desde o ano passado", disse o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente da CPI da Covid.
Seis dias depois de conhecer o policial militar Luiz Paulo Dominguetti, representante da Davati Medical Supply, o reverendo solicitou, por meio de um e-mail, uma reunião no Ministério da Saúde, para apresentar a proposta de 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca oferecida por Dominguetti.
A reunião foi solicitada no dia 22 de fevereiro, às 12h50. Cerca de três horas depois, mesmo sem resposta ao e-mail, Amilton de Paula e Dominguetti se deslocaram até o Ministério, onde foram recebidos por Laurício Monteiro Cruz, diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis, que faz parte da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS).
“A Pfizer não conseguiu ser recebida pelo governo, nem o Butantan, nem a OMS [Organização Mundial da Saúde], nem a Covax Facility. E no mesmo dia que o senhor pediu, o senhor foi atendido num período de duas horas”, destacou o relator da CPI, o senador Renan Calheiros (MDB-AL).
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Na ocasião, Monteiro Cruz esclareceu quais são as documentações necessárias para a apresentação da oferta e afirmou que todo o processo de aquisição de vacinas é restrito à Secretaria Executiva da pasta, chefiada então pelo coronel Elcio Franco.
Diante da informação trazida por Laurício Monteiro, o reverendo encaminhou um e-mail diretamente para a Secretaria Executiva do ministério.
Nesta primeira reunião, do dia 22 de fevereiro, Dominguetti ainda se apresentava como representante da empresa estadunidense Latin Air, com uma oferta de 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca ao custo de R$ 3,97 por dose.
Em um segundo momento, no entanto, no dia 1º de março, Dominguetti informou ao reverendo uma mudança de empresa: deixou a Latin Air e passou a representar a Davati Medical Supply, “afirmando que a segunda empresa teria mais condições de atender às demandas” do Brasil.
Uma outra reunião, no dia 12 de março, desta vez com Elcio Franco, teria sido propiciada por Helcio Bruno de Almeida, presidente do Instituto Força Brasil, que já “tinha uma agenda no Ministério da Saúde e decidiu” incluir Dominguetti e o reverendo.
Na reunião, Elcio Franco questionou a existência de um documento da AstraZeneca comprovando a existência das doses e a representação da empresa. Como não havia documento, o assunto relacionado à proposta teria sido encerrado.
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Depois que a proposta não foi para frente, o reverendo Amilton de Paula afirmou que foi comunicado por Cristiano Carvalho que a Senah não seria mais parte das negociações de 400 milhões de doses junto ao Ministério da Saúde.
“Eu era uma das pessoas que solicitava a documentação da Davati e a documentação não chegava. E eu, por ter colocado o meu nome nessa operação, fiquei preocupado”, afirmou o reverendo.
Contradições
O reverendo afirmou que conversou com Herman Cardenas, dono da Davati, sobre a proposta de 400 milhões de doses. Ele disse que na ocasião o empresário garantiu que tinha as doses. Em entrevista ao Fantástico, no entanto, Cárdenas, disse apenas que atuava como um facilitador e que não tinha as vacinas.
Em outra contradição, Dominghetti, em seu depoimento à CPI, afirmou que não tem nenhuma relação contratual com a Davati. “Havia um acordo de cavalheiros, até porque eu sou funcionário público e não posso assinar contrato”, afirmou o policial militar.
O laboratório britânico AstraZeneca informou que todas as negociações são feitas diretamente “por meio de acordos firmados com governos e organizações multilaterais ao redor do mundo, incluindo da Covax Facility, não sendo possível disponibilizar vacinas para o mercado privado ou para governos municipais e estaduais no Brasil”.
Também negou que tenha qualquer relação contratual com a empresa Davati Medical Supply, sediada no Texas. O único contrato da AstraZeneca estabelecido com o Brasil foi feito por meio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), nos dias 8 e 9 de setembro de 2020.
Além dessas contradições, o senador Randolfe Rodrigues apresentou duas documentações que colocam o reverendo em saia curta. Em uma oferta inicial, apresentada por Herman Cárdenas, foram apresentadas 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca, de US$ 10 por dose.
Em um segundo documento, apresentado no dia 24 de março, desta vez, diretamente pelo reverendo ao ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, a oferta era de US$ 11, em caráter emergencial, com entrega em até 25 dias.
O reverendo afirmou ao senador que desconhece a existência do primeiro documento, mas reconhece sua autoria no segundo documento.
Segundo o reverendo, foi o próprio Herman que lhe repassou o valor de US$ 11. Para o senador Randolfe Rodrigues, a diferença de US$ 1 coincide com a acusação do policial militar Luiz Paulo Dominguetti de que o governo federal teria pedido uma propina de US$ 1 por dose.
Em uma outra contradição, o reverendo afirmou que não se recorda de ter encontrado o ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde, acusado de pedir propina na negociação das 400 milhões de doses, Roberto Ferreira Dias.
No entanto, o senador Randolfe Rodrigues apresentou à CPI uma troca de mensagens entre Dominguetti e Amilton de Paula, na qual o reverendo afirma: “Boa tarde, Dominguetti, estou na sala do Roberto Dias, com os outros que falaram com ele.”
Pontas soltas
Tanto os senadores da oposição quanto da base governista acreditam que o reverendo não trouxe informações suficientes à CPI para construir sua narrativa.
“A gente percebe claramente que o senhor mente ou omite algumas situações”, afirma a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA). Em outro momento, o presidente da CPI, o senador Omar Aziz (PSD-AM) afirmou que Amilton de Paula trouxe “uma história muito difícil de alguém acreditar”.
O reverendo não explicou como foi parar em meio às negociações de 400 milhões de doses. Começando o discurso se referindo a si mesmo em terceira pessoa, o reverendo parece ter deixado para outrem pontos cruciais.
Ele não explicou quais motivos que o levaram a ser tratado, junto com os representantes da Davati Medical Supply, como excepcionalidade dentro do governo federal, mesmo sem ter uma vacina em mãos.
“A maneira como o senhor chega nessa negociação é algo que deixa muitas dúvidas com relação a tudo isso que aconteceu. O senhor se arrepende de alguma forma de entrar nesse grupo?”, questionou o senador Eduardo Girão (Podemos-CE), que faz parte da Tropa de Choque do governo dentro da CPI.
Da mesma maneira que o governo federal recusou sete ofertas de imunizantes da farmacêutica estadunidense Pfizer produzida em parceria com o laboratório alemão BioNtech, o governo paralisou as negociações estabelecidas pelo Ministério da Saúde com o Instituto Butantan, a partir da terceira oferta da vacina CoronaVac, fabricada junto com o laboratório chinês Sinovac.
Ainda durante o depoimento, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) negou que tenha parceria com o reverendo Amilton Gomes de Paula, diferente do que o mesmo tinha afirmado logo no início de seu depoimento.
A Ordem de Malta Brasil do Espírito Santo também enviou uma documentação à CPI afirmando que não tem nenhuma relação com a Senah, também diferente do que o reverendo Amilton de Paula havia informado aos senadores.
O reverendo, inclusive, também disse que foi nomeado embaixador mundial da paz pela Federal para a Paz Universal (UFP). A organização foi fundada pelo Sun Myung Moon, que foi condenado pelos Estados Unidos por evasão de divisas.
Em determinado momento, o reverendo afirmou que se arrepende de ter aberto a “porta” de sua casa para os representantes da Davati Medical Supply. Aos prantos, disse: “O maior erro que eu fiz foi abrir a porta da minha casa quando eu perdi um ente querido da minha família e queria vacinas. Tenho culpa, sim, e peço desculpas ao Brasil”. Mesmo arrependido, o reverendo não deu as explicações consideradas necessárias aos senadores.
Edição: Leandro Melito