Em 2003, um olheiro de um projeto social de judô visitou escolas públicas no sertão da Paraíba passando pela cidade de Patos, onde nasci e fui criada. Lembro que era uma aula de matemática e eu bem concentrada não percebi quando o olheiro judoca apontou para mim e pediu que eu levantasse. Lembro da cara de espanto de todos quando ele falou: “Já pensou em entrar para o judô?”. Muita gente começou a rir, “mas ela é gorda, treinador”, gritou um; “Com esse peso?”, questionou outro; e o coordenador da escola finalizou, “Temos outras pessoas que dariam mais certo”, eliminando qualquer possibilidade de uma menina gorda e grande ao menos tentar o esporte.
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Durante esses Jogos Olímpicos em Tóquio tenho acompanhado muitas publicações e comentários na internet a respeito dos corpos dos atletas. Mas como definir se um corpo é de atleta ou não?
A goleira da Seleção Brasileira de Futebol Feminino, Bárbara Barbosa, foi considerada pelos juízes da internet como “fora de forma”, “gorda”, “pesada”, “cheinha”. Bárbara não começou a competição fazendo bons jogos, isso é verdade, só que as críticas não foram voltadas ao futebol apresentado por Bárbara, mas sim ao seu corpo.
Inclusive a goleira se envolveu em uma polêmica com uma atleta paraolímpica onde ambas se atacavam com comentários preconceituosos sobre seus próprios corpos. A jogadora de vôlei de praia Rebecca Cavalcante também foi alvo de críticas por estar “acima do peso ideal”, mesmo tendo feito uma grande participação e boas pontuações na maioria dos jogos.
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Maria Suelen Altheman, a “Susu”, e Rafael Silva, o “Baby”, judocas brasileiros da categoria acima de 100kg, ainda tem seus corpos questionados para a prática do esporte (enfatizo aqui que Rafael é dono de duas medalhas olímpicas, foi bronze em Londres 2012 e na Rio 2016). Maria Suelen sofreu uma lesão durante a competição nesses Jogos Olímpicos e acabou tendo que abandonar a disputa por uma medalha de bronze, onde foi duramente criticada na web quando relacionaram a lesão sofrida ao seu peso corporal. Antes de ir à Tóquio a atleta comentou sobre as críticas ao seu corpo e afirmou “eu tenho um corpo e ele me fez campeã”. Ela foi medalha de bronze no Mundial de Budapeste em 2021. Infelizmente não pude dizer o mesmo que Susu, pois o medo e a vergonha do julgamento me fizeram dizer “não” àquele olheiro lá em 2003. Quando a Susu entra no tatame ela representa a menina Polyanna de onze anos de idade que recebeu seu primeiro ‘ippon’ do preconceito e não conseguiu subir ao tatame.
O historiador e sociólogo francês Georges Vigarello, em seu livro “As metamorfoses do gordo: história da obesidade no Ocidente: da Idade Média ao século XX”, retrata que a negativação do corpo gordo se consolidou a partir do século XVIII, “com estudos que relacionavam a gordura corporal às doenças, deixando o gordo às margens da sociedade, transformando-o, no século XX, em aberração social, corpo doente e estigmatizado”. São variadas demais as expressões de corpos, assim como existem diversas modalidades nos esportes que atendem a esses diferentes tipos.
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Os primeiros Jogos Olímpicos retratavam um encantamento aos corpos padronizados, inspirando-se no Deus Apollo que traduzia a busca por esse corpo divino, padrão, simétrico, perfeito, e exato, onde se fazia enxergar deuses nos próprios homens. Hoje vemos de uma maneira diferente entendendo que do jovem ao mais velho, do pequeno ao grande, do gordo ao magro, do atleta olímpico ao paraolímpico, tudo nos faz perceber que o esporte é mais que isso: é vontade, desejo, superação. Que me perdoe Apollo, mas a vitalidade e divindade de um corpo não está na fantasia do padrão perfeito, mas na realidade e consciência do movimento da vida, porque movimentar-se é viver, é ir além, é acreditar que existe espaço para toda e qualquer pessoa, para todo e qualquer corpo.
Pequenos, grandes, gordos, magros, pesados, leves, musculosos, quadrados...Um corpo atlético é aquele que o torna bom em transformar sonhos em realidade.
*Polyanna Gomes é jornalista e escrevinhadora das coisas lá do sertão, mas também é uma apaixonada pelo movimento de vida que o esporte proporciona.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Paraíba
Edição: Heloisa de Sousa