Política de drogas

Especialistas no Brasil veem com otimismo avanço da lei de cannabis medicinal na Argentina

"A Argentina é um farol", diz neurocientista pesquisador da cannabis, que vê com otimismo os avanços no país vizinho

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |

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Avanços na legislação sobre o uso da cannabis na região são impulsionadas pela sociedade civil, com maior expressão de países que legalizam apenas o uso medicinal da planta. - Juan Mabromata/AFP

A Argentina já aprovou o autocultivo da cannabis para uso medicinal no ano passado. O Congresso discute agora uma lei de fomento à produção e industrialização da cannabis medicinal e de derivados do cânhamo, já aprovada pela Câmara dos Deputados. A iniciativa promete tornar a cannabis em commodity de exportação argentina e legalizar o cultivo e industrialização do cânhamo, utilizado para produzir bioplástico e derivados têxteis.

Ambos projetos são impulsionados por organizações da sociedade civil, frutos da militância e da necessidade do reconhecimento de que muitos são obrigados a exercer na clandestinidade para tratar doenças.

"A proibição do uso terapêutico da maconha foi um erro histórico colossal em escala planetária, por seus efeitos sociais extremamente adversos e pela constrangedora ausência de qualquer base científica que pudesse justificar tanta violência e opressão a cultivadores, pacientes, médicos prescritores, pesquisadores e a toda a sociedade", descreve o neurocientista Sidarta Ribeiro na "Introdução do Associativismo Canábico", lançado pela Plataforma Brasileira de Política de Drogas. 

No Brasil, a cannabis medicinal é prevista na Lei de Drogas nº 11.343 desde 2006, porém não há regulamentação sobre o autocultivo e as alternativas de acesso legal aos medicamentos custam caro, longe da realidade da maior parte dos brasileiros. Uma delas é a importação, autorizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

O órgão também habilitou a importação de insumos para a produção de fitoterápicos à base de canabidiol (CBD) e tetra-hidrocanabidiol (THC), substâncias presentes na cannabis. A agência registrou em 2017 o primeiro medicamento, comercializado como Mevatyl. Ele custa, em média, R$ 2 mil. No entanto, o acesso é exclusivamente via receita médica e recomendado quando esgotadas outras alternativas de tratamento.

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O Brasil, portanto, guarda uma particularidade que chama a atenção de ativistas da região latino-americana, que encontram na literatura científica do país uma rica fonte de saberes a respeito da planta, mas onde a legislação e a formação médica não acompanham esse legado. Nomes como Elisaldo Carlini, falecido no ano passado, surgem entre os que abriram caminhos nessa desafiadora tarefa de investigar a cannabis no Brasil.

De qualquer forma, o conhecimento e o uso medicinal da cannabis pela população no mundo tem importantes marcos legais e na formação médica. Só nas Américas, os países que regularizaram a planta, e não apenas um aspecto dela, são Estados Unidos, Canadá, Uruguai (o primeiro do mundo em fazê-lo) e, recentemente, o México, em julho deste ano.

O reconhecimento do uso apenas medicinal é mais expressivo na região – Chile, Paraguai, Peru, Colômbia, Equador e Argentina –, mas ainda assim pequeno, considerando as já conhecidas propriedades terapêuticas e amplamente utilizadas da cannabis para tratar doenças como epilepsia, esclerose múltipla, Parkinson, autismo, transtornos de ansiedade, insônia, depressão, entre outros.

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Uma prática milenar

Uma das dificuldades para o avanço do reconhecimento e legalização da cannabis medicinal começa no âmbito científico. Em seu pós-doutorado, o neurocientista Renato Filev recebeu recursos do CNPq para estudar os efeitos do tratamento com fitocanabinóides em casos de dependências de substâncias químicas, como o álcool e derivados da coca. 

"Tínhamos recurso para executar a pesquisa, inclusive com um doador internacional, mas mesmo assim encontramos muitos empecilhos burocráticos para trazer o produto", conta Filev. "Com a mudança de governo, não houve renovação. Houve realinhamento sobre a política de drogas com a extrema direita, o que fez com que o convênio fosse encerrado."


Debate sobre o uso dos derivados da maconha para tratamento da saúde vem ganhando campo e força / Foto: Tatevosian Yana

As diversas práticas e usos da cannabis, aponta Filev, são milenares. Contudo, o sistema endocanabinóide foi descoberto na década de 1990. "Trata-se de toda uma estrutura de moléculas, mensageiros, receptores, enzimas que sintetizam e degradam esse mensageiros que são constituintes do nosso organismo, que fazem parte de funções fisiológicas, metabólicas, psicológicas, patológicas, que acometem o organismo humano e animal", descreve. "Há uma ignorância em termos de agentes que regulam a prática medicinal. Os livros utilizados para a formação profissional da saúde não contemplam a informação sobre o sistema endocanabinóide." 

Os saberes ancestrais e compartilhados são um aspecto importante da militância e da prática de organizações como a Mamá Cultiva, presente em diversos países da região. Valeria Salech, uma das referências da associação argentina, ganhou espaço na mídia ao militar pela legalização da planta, que cultiva e utiliza para tratar os espasmos de seu filho.

"Nós defendemos o autocultivo como um ato de construção coletiva, de um saber popular e ancestral, de garantia de saúde comunitária e da diversidade das plantas", afirma.

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"O que fazemos é dar ferramentas para que as famílias possam aprender a cultivar, preparar, dosificar, a usar diferentes formas de administração. Estamos muito orgulhosas do que fazemos porque socializamos conhecimento e geramos uma rede de contenção. Quando o sistema de saúde já não oferece respostas, a cannabis está aí, esperando com amor, reciprocidade, empatia, e toda uma rede de pessoas que cultivam e trocam plantas e saberes", conta.

Com a lei de novembro de 2020 que permitiu o autocultivo na Argentina, o Registro de Programa de Cannabis Medicinal colapsou, com mais de 20 mil pessoas inscritas. "Isso mostra não apenas a necessidade de usar a cannabis medicinal através do autocultivo, mas também a necessidade de passar à legalidade", diz Salech.

"A planta é muito amiga do meio ambiente: recupera solos destruídos, gera boas condições para outros cultivos. O futuro é a agroecologia, e esse é o caminho", reflete Salech.

E completa: "Todo o futuro tem que estar baseado na palavra 'cuidado'. Cuidado com o outro, com o meio ambiente, com a saúde, com a própria saúde, cuidar das que cuidam, cuidado com o planeta. Cuidado."

Edição: Arturo Hartmann e Thales Schmidt