O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou, em entrevista a canais de TV alemães, que não teme as ameaças do atual presidente Jair Bolsonaro em relação ao sistema eleitoral e que a sociedade brasileira "não vai aceitar" um eventual golpe.
Em entrevista aos repórteres Matthias Ebert, do canal de TV público ARD, e Bianca Kopsch, da Deutsche Welle, Lula evitou se confirmar como candidato nas eleições de 2022, mas disse ser "o que a maioria da sociedade quer".
Questionado se, num país bastante polarizado, não deveria dar espaço para um nome novo, o ex-presidente afirmou que o caminho para outras candidaturas está aberto. "Quem quer evitar Lula candidato, não vote no Lula. Quem acha que deve haver outro candidato, se lance como candidato. O que não podemos aceitar é a mentira", declarou.
O petista disse não ver no momento chance de o impeachment de Bolsonaro avançar, mas acredita que o presidente será cassado nas urnas pelo povo brasileiro. Seu objetivo, afirma, é "polarizar mesmo" nas eleições.
"Diga para o povo alemão que aqui no Brasil a disputa entre Lula e Bolsonaro é a disputa entre a democracia e o nazismo. É isso que está em disputa", afirmou.
Lula é líder nas pesquisas sobre 2022. Segundo o último levantamento do instituto Datafolha, do início de julho, o petista tem 58% das intenções de voto nas simulações de segundo turno, enquanto Bolsonaro tem 31% – uma vantagem mais ampla do que na pesquisa anterior, de maio.
ARD e DW: O senhor passou a última eleição na prisão. Guardou algum tipo de sentimento de vingança ou ódio?
Lula: Na verdade, não. Nem vingança, nem ódio. Eu me preparei na prisão para enfrentar a diversidade do momento que eu estava vivendo. Eu tinha consciência do processo todo, da mentira contada, da farsa e do papel que o [ex-juiz Sergio] Moro, o Ministério Público e a imprensa estava jogando. Uma parte do que nós estamos vivendo hoje com o governo Bolsonaro, com o fascismo, o nazismo e a ultradireita fazendo tudo errado, tem muito a ver com o comportamento que a imprensa teve nos últimos anos, negando a política. Eu venci, provei que aquilo que eu dizia era verdade e estou livre.
O senhor ainda reconhece o seu país?
Quando eu deixei a Presidência, antes um pouco, em março de 2009, o Brasil era a sexta economia do mundo. O Brasil estava num processo de crescimento. Crescendo enquanto país internamente, crescendo como defensor da sua soberania, mas crescendo também na sua participação a nível internacional. O Brasil tinha virado protagonista internacional. A gente viveu um momento de ouro na América Latina e no Brasil. Lamentavelmente estamos passando por um processo muito complicado, muito delicado, em que a política está sendo negada. Nós temos um presidente 100% irresponsável e mentiroso. Eu vou continuar brigando para reconstruir a democracia no Brasil e fazer o Brasil voltar a ser um país feliz.
O desmatamento aumentou dramaticamente durante o atual governo. E a luta contra as mudanças climáticas foi bem enfraquecida. É possível reverter esse processo?
É plenamente possível. A consciência ambiental na sociedade cresce a cada dia. Um grande número de brasileiros e de gente no mundo inteiro sabe que hoje não se pode discutir desenvolvimento econômico sem discutir desenvolvimento ambiental. É possível compatibilizar o crescimento agrícola com a preservação ambiental, pensar no crescimento econômico industrial preservando a questão ambiental.
Temos que tirar proveito da riqueza da biodiversidade para transformar aquilo numa forma de sobrevivência da sociedade. A Amazônia, embora seja um território soberano brasileiro, a riqueza da biodiversidade pode ser repartida com o planeta Terra. Como eu fiz quando eu era presidente, com o acordo com a Alemanha e a Noruega criando o Fundo Amazônia. É possível: não é destruindo árvores, é plantando árvores. O mundo precisa da biodiversidade. O Brasil pode construir parceria com o mundo inteiro para ajudar a cuidar da Amazônia, e não destruir a Amazônia.
O que você teria feito de forma diferente de Bolsonaro?
Qualquer ser humano do planeta Terra teria feito melhor que o Bolsonaro. Bolsonaro simplesmente não fez. Ele não enxergou o mundo, ele não enxergou o coronavírus e a pandemia. Ele passou a trabalhar negando o quadro, começou dizendo que a pandemia não existia, que era uma pequena gripe, que era uma gripe que mataria apena velhinho. Depois ele passou a transformar em inimigos todo mundo que pensava da forma correta.
Quando a gente chama o Bolsonaro de genocida, é porque são quase 600 mil mortos neste país, e uma parte dele é da responsabilidade e do comportamento do Bolsonaro. Porque ele poderia ter comprado a vacina muito antes. Hoje a CPI está mostrando que houve muita corrupção na compra de vacina ou na tentativa de comprar a vacina. Eu acho que em algum momento o Bolsonaro será julgado, em algum momento. E eu acho que é disso que ele tem medo. Eu poderia afirmar que essa loucura toda que o Bolsonaro faz, dizendo que não vai deixar a Presidência, que se não tiver votação por impresso, não vale nada, sabe o que o Bolsonaro tem? Medo, porque ele sabe que vai perder. E ele sabe que, perdendo, ele tem medo de ser preso.
Você acha que Bolsonaro vai tentar dar um golpe?
Eu não acredito que a sociedade brasileira aceitará o golpe de Bolsonaro. Eu acho que o grande golpe ele já deu em 2018. Porque é a primeira vez que um presidente da República é eleito com base em fake news. Ele mentiu durante toda a campanha, não participou de nenhum debate, e foi eleito presidente da República. Ou seja, ele é uma mentira. Ele é o resultado da negação da política.
O senhor acredita em impeachment?
Nós já tivemos mais de 160 pedidos de impeachment. Quem tem a iniciativa de colocar em votação o pedido de impeachment é o presidente da Câmara, e não foi colocado nenhum até agora, embora os partidos de oposição tenham feito cobrança. Eu acho que eles não vão colocar. Acontece que ele tem maioria na Câmara, e portanto não quer votar o impeachment. Se nada disso acontecer até as eleições, ele será cassado pelo povo brasileiro.
Bolsonaro se posicionou contra o establishment político, mas agora acabou se aliando ao bloco do centrão.
Esse Bolsonaro era tão ignorante que ele dizia que não precisava do Congresso Nacional. Ele chegou à conclusão que ele é um incompetente politicamente, não entende nada de economia, não entende nada das questões sociais, da questão sindical, não gosta de mulher, negro, índio, não gosta de sindicalista, não gosta do povo brasileiro, não gosta de democracia. Ele é um patético que está governando esse país.
Por que uma parte do sistema financeiro ainda sustenta Bolsonaro? Por que uma parte da elite econômica sustenta o Bolsonaro? Porque Bolsonaro está entregando tudo o que eles querem. Bolsonaro já fez a reforma da Previdência prejudicando os trabalhadores. Fez a reforma trabalhista, prejudicando muito os trabalhadores e o movimento sindical. Aqui no Brasil, os trabalhadores formais são cada vez menores. Quem é maioria são os trabalhadores informais. O Brasil sempre teve uma relação sadia e produtiva com o planeta. O Brasil tem um contencioso internacional. Esse homem conseguiu destruir tudo. Ele conseguiu afastar o Brasil de todos, e fazer com que todos se afastassem do Brasil.
Durante sua gestão e também de Dilma Rousseff, foram expostos vários escândalos de corrupção, o que prejudicou a imagem de seu partido e também a você mesmo. Você também se sente de alguma forma responsável pela ascensão de Bolsonaro?
Eu acho que todos nós, 215 milhões de brasileiros, temos alguma responsabilidade pelo Bolsonaro. Não tem um governo que criou mais mecanismos de combater a corrupção do que o PT quando estava no governo. Quando me acusaram de corrupto, muita gente queria que eu saísse do Brasil. Eu não queria aparecer no jornal com a fotografia "Lula, o fugitivo". Eu queria provar minha inocência. Por isso é que eu fui para Curitiba. Por isso é que eu fui dizer ao Moro que ele é mentiroso. Por isso é que eu fui dizer para o Ministério Público que eles estavam criando uma quadrilha. Eu fiquei 580 dias preso, mas eu saí da cadeia de cabeça erguida. E eu não sei se eles que me acusaram estão de cabeça erguida hoje.
Talvez a maior conquista do senhor no governo foi ter tirado quase 40 milhões de pessoas da pobreza. Ao mesmo tempo, depois cresceu muito o antipetismo. Como o senhor explica isso?
Se você um dia for política, não faça nada esperando agradecimento. Faça porque tem que ser feito. Faça porque cada pessoa tem direito e faça porque é sua obrigação fazer. Nós provamos que é plenamente possível ajudar os pobres a subir um degrau na escada do avanço social.
O senhor vai se candidatar ano que vem? E o que o senhor faria, se eleito, para evitar a repetição de escândalos de corrupção?
Eu posso ser candidato, se o meu partido decidir que eu seja candidato, se eu estiver bem de saúde e se eu conseguir construir uma aliança política que me permita não apenas ganhar, mas governar. Vamos fazer com que a corrupção seja combatida 24 horas por dia, como foi no nosso governo. Houve uma tentativa de destruir o PT, e não foi por causa de corrupção ou má governança, mas por causa de uma coisa chamada inclusão social. Mas eu não tenho outra coisa a fazer na vida a não ser tentar brigar para recuperar a democracia.
Num país bastante polarizado, muitos dizem que seria o caso de dar espaço a um candidato novo, alguém de uma "terceira via"...
Só quem pode deixar é o povo. Eu não precisava ser candidato, mas eu tenho um partido político. E tenho a maioria da sociedade que me quer candidato. Por que é que eu haveria de abdicar para atender os meus adversários? O conselho que eu dou: todo mundo que quiser evitar que Lula seja candidato, não vote no Lula. Ou todas as pessoas que acham que deve ter outro candidato, se lancem candidato. O que não podemos é aceitar a mentira. "Lula não pode ser candidato porque Lula pode ganhar e ele vai polarizar." Ótimo, eu quero polarizar mesmo. Eu quero ir para campanha dizendo que o Bolsonaro é mentiroso. Que o Bolsonaro não sabe governar o país. Que o Bolsonaro não tem dimensão dos problemas do Brasil, que ele é charlatão. Ele vai fazer uma campanha com base nos milicianos. Ameaçando as pessoas, agredindo as pessoas, mentindo descaradamente. Como é que eu posso permitir que um presidente que conta quatro mentiras por dia continue presidindo o país?
E para o próximo presidente do Brasil, a Europa e a Alemanha vão insistir na preservação do meio ambiente. São reivindicações hipócritas, já que os europeus fazem negócio em detrimento do meio ambiente.
Eu não quero ficar cobrando o que as pessoas não fazem, quero saber o que é possível fazer. Precisamos discutir uma política saudável, e a questão energética é muito importante para todo o planeta. Se nós disputarmos as eleições, e ganharmos as eleições, vamos convocar uma conferência para discutir como trabalhar para ajudar na preservação ambiental no mundo.
Como conciliar esse tipo de política com o agronegócio tão forte no Brasil?
O Brasil tem uma grande produção agrícola. Eu fico feliz por isso. A agricultura brasileira é tecnologicamente muito avançada. A gente não pode colocar todo o agronegócio no discurso maluco do Bolsonaro. Há muitos empresários do agronegócio que sabem que tem que preservar. A Amazônia vai dar dinheiro para o Brasil sendo tratada diferentemente. A Amazônia vai produzir riqueza cuidando da Amazônia, cuidando da biodiversidade e mantendo o ecossistema.
Como você quer colocar a economia brasileira em curso, com um Estado mais forte ou um setor privado mais forte?
O Estado não pode ser um Estado empresarial. Eu não defendo que o Estado seja dono das empresas. Não. Eu quero que o Estado seja forte para ser o indutor de políticas sociais e o indutor do desenvolvimento. Por isso eu defendo bancos públicos. Por isso eu defendo empresas públicas como a Petrobras e a Eletrobras.
Há países que mudaram muito nos últimos anos, como Nicarágua, Venezuela e Cuba, que mantêm laços com o seu partido...
Eu fiquei muito triste quando a União Europeia aceitou a farsa, a mentira de reconhecer o Guaidó presidente da Venezuela. É muito importante que as pessoas permitam que cada povo viva do seu jeito. Que cada povo construa a sua democracia. Eu poderia ter ficado no mandato o mesmo tempo que Angela Merkel ficou na Alemanha, porque no parlamentarismo as pessoas acham que é democracia alguém ficar 16 anos no poder. No presidencialismo, terceiro mandato é ditadura. Eu tinha 87% de aprovação quando o meu partido quis aprovar um novo mandato para mim. Eu não quis porque eu acredito na democracia, na alternância de poder. Isso eu falava para o Chávez, falo para o Daniel Ortega e eu falava para Cuba.
Mas não seria o momento de o PT exigir que em Cuba as pessoas possam protestar livremente e que haja democracia?
Eu não só defendo isso como já disse isso muitas vezes. Eu fui presidente da República, e aqui teve muita greve contra o meu governo, muita passeata. A polícia não sai na rua só em Cuba ou na Nicarágua, a polícia sai na rua nos Estados Unidos, na Alemanha, no Brasil, na França. O que nós precisamos é não tentar trabalhar a ideia de tentar simbolizar as coisas. O problema do mundo não é a Nicarágua, não é a Venezuela e não é Cuba: o problema do mundo é a concentração de riqueza na mão de poucos países e poucas empresas.
O senhor está esperando violência no ano que vem? O senhor tem medo, como político, pela sua própria pessoa?
Esse país tem um histórico político, nós temos que respeitar a história. Não temos o hábito, como nos Estados Unidos, que já atiraram no Reagan, mataram Lincoln, mataram Kennedy. Aqui no Brasil não tem essa história.
Mas o senhor não acha que pode ser mais perigoso desta vez, porque a sociedade mudou também?
Pode ser, mas a minha fé em Deus também aumentou. Obviamente que a gente vai ter que tomar cuidado. Sabe há quantos anos eu não vou num restaurante? Mais de trinta anos. Eu me cuido, vamos fazer a campanha. Tenho fé em Deus que a democracia vai ganhar as eleições do fascismo no Brasil. Porque tem polarização no Brasil: pelo amor de Deus, diga para o povo alemão que aqui no Brasil a disputa entre Lula e Bolsonaro é a disputa entre a democracia e o nazismo. É isso que está em disputa.