No último dia 28 o ativista Paulo Lima (o “Galo”) foi preso pelas forças de segurança de São Paulo após comparecer de forma espontânea à delegacia para confirmar sua participação no incêndio da estátua do bandeirante Borba Gato, ocorrido na capital paulista em 24 de julho. Galo é uma das lideranças do movimento Revolução Periférica, que assumiu a autoria do ato. A prisão do ativista, mantida mesmo após ter sido revogada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 5 de agosto, ocorre em um momento emblemático do debate quanto à criminalização dos movimentos populares no Brasil.
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Tramita no Congresso o Projeto de Lei (PL)1595/2019, de autoria do Major Vitor Hugo (PSL-GO) que dispõe sobre ações contraterroristas. Também está em curso uma proposta de atualização da Lei de Segurança Nacional (7.170/1983), que continuou em vigor mesmo com o final daquele (não do atual) regime dos generais. Tais propostas legislativas, levadas como prioridade pela base aliada ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) não visam, porém, a modernização da definição de terrorismo no Brasil, mas uma ampliação do conceito para possibilitar a aplicação de ações de combate mais ofensivas aos direitos humanos e retrógradas.
A prisão de Galo é um retrato do lado controverso e autoritário desta ofensiva.
O PL 1595/2019 em discussão, em seu parágrafo 2º, atesta a aplicação da lei antiterrorista para prevenir e reprimir, como crime de terrorismo, a execução de ato que “a) seja perigoso para a vida humana ou potencialmente destrutivo em relação a alguma infraestrutura crítica, serviço público essencial ou recurso-chave; e b) aparente ter a intenção de intimidar ou coagir a população civil ou de afetar a definição de políticas públicas por meio de intimidação, coerção, destruição em massa, assassinatos, sequestros ou qualquer outra forma de violência”. O Art. 4º do PL define “infraestrutura crítica” como “estrutura física, construída pela ação humana, cuja destruição ou neutralização traria impactos significativamente negativos em um ou mais dos seguintes aspectos: político, econômico, social, ambiental ou internacional”.
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Essa definição, incluindo a potencial destruição de bens ou propriedades (públicos ou privados), é alvo de disputa e tensionamento no debate internacional sobre terrorismo. Os tratados internacionais descrevem certos atos de violência armada ou ameaça terrorista, sem arriscar uma definição unívoca do termo. Também não existe um acordo multilateral sobre terrorismo, ainda que a Organização das Nações Unidas (ONU) recomende sua Convenção sobre o financiamento de atos terroristas (1999), as Resoluções 1373 (2001) e 1566 (2004) do Conselho de Segurança; e a Declaração sobre Medidas para Eliminar o Terrorismo Internacional, aprovada pela Assembleia Geral em 2016.
Estas concepções, basicamente, sugerem três questões cumulativas: 1) atos, inclusive contra civis, cometidos com a intenção de causar morte ou lesões corporais graves, ou a tomada de reféns; 2) atos cometidos independentemente da natureza política, filosófica, ideológica, racial, étnica, religiosa ou de outra natureza semelhante, com a finalidade de provocar um estado de terror no público em geral ou em um grupo ou pessoas particulares, intimidar uma população, ou obrigar um governo ou uma organização internacional a fazer ou se abster de praticar qualquer ato; 3) atos que constituam delitos dentro do escopo e conforme definido nas convenções e protocolos internacionais relativos ao terrorismo.
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Aqui, cabe ressaltarmos o ponto 2): o que define terrorismo não é o ato em si, mas sim a disseminação do terror na população através da ação violenta contra outros seres humanos. É possível então enquadrar atos contra propriedades como terroristas? Ora, se uma bomba é deixada em um banco de parque durante um domingo de sol, o foco desta ação não é a destruição do banco, mas sim amedrontar a população que circula pela área. Crianças ou mulheres que eventualmente morrerem ou se ferirem com a explosão são efeitos colaterais da ação, pois o que importa é alterar os comportamentos daqueles que permanecem vivos. Essa ação seria enquadrada como terrorista caso, por exemplo, viesse acompanhada da ameaça de novas ações com conteúdo similar se alguma demanda do grupo reivindicante do ato não fosse atendida. Provavelmente as pessoas deixariam de frequentar aquele espaço público por algum tempo.
O incêndio do Borba Gato não fez nenhuma vítima humana (até mesmo a controversa estátua segue por lá, de pé). Ninguém deixou de circular pela rua que a guarda, de carro ou pé, por medo de ser vítima de um novo incêndio. E esta é uma importante diferença entre as formulações internacionais sobre terrorismo e a proposta atualmente em discussão pelo Congresso brasileiro: o terrorismo tem vítimas humanas, e não materiais. Ao invés de aumentar a prevenção e combate a ações desta natureza (as quais, é importante ressaltar, não são férteis em território brasileiro), o PL leva esta definição a um campo interpretativo extremamente perigoso. Quem definiria a diferença entre apoiadores do atual presidente queimando a bandeira de um partido de oposição, e um movimento popular ateando fogo a uma estátua de um notório assassino não é a letra lei, mas sim a ampla massa cinzenta interpretativa que caberia aos operadores desta lei. Assim, o PL configura uma ameaça à democracia, pois concentra, nas mãos de quem detém o poder, a responsabilidade de definir qual intenção política configura – ou não – perigo à segurança nacional. É a manifestação nua e crua da expressão dois pesos e duas medidas.
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A prisão arbitrária de Paulo Galo e sua politização relacionada à aprovação do PL 1595/2019 representam uma grave violação do Estado democrático e apontam para a ofensiva do Estado brasileiro contra os movimentos populares e o direito ao protesto e à mobilização social. É o retrato do conjunto de forças conservadoras que se apossou do país nos últimos anos e que afirma, reiteradamente, que se preocupa mais com o direito das vidraças do que com os direitos humanos.
*Pedro P. Bocca é mestre em Relações Internacionais (PUC/SP). Assessor de incidência internacional da Associação Brasileira de Organizações Não-governamentais (Abong).
**Ana Penido é bolsista Capes de Pós Doutorado no Programa San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC/SP). Pesquisadora do Instituto Tricontinental e do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (GEDES – UNESP).
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo