Não é um desejo ou uma força sobrenatural que mantêm a curva da pandemia para baixo.
Na semana que se encerra neste sábado (14), sinais de alerta sobre o andamento da campanha de vacinação contra a covid-19 no Brasil tomaram conta do noticiário. Prefeituras e governos cobram o Ministério da Saúde pela insuficiência de doses e pedem ajuda para dar continuidade à imunização.
O caso mais emblemático é o da cidade do Rio de Janeiro, que suspendeu a aplicação da primeira dose na quarta-feira (11) e só conseguiu normalizar a situação na sexta-feira (13). Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde informou que sem a entrega por parte do governo federal, se viu "obrigada" a paralisar a campanha.
Com a chegada de 390 mil doses ao Estado, a capital fluminense conseguiu retomar os atendimentos para pessoas de 24 e 23 anos. Mas a gestão local ponderou que, para dar continuidade ao processo na próxima semana, depende do envio de novas remessas.
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A maior preocupação da prefeitura é com o avanço da variante delta na cidade. A cepa é comprovadamente mais infecciosa e mais rápida e já responde por boa parte das contaminações no Rio.
Por meio da experiência de outros países no combate à delta já é possível observar que o principal fator de aumento dos casos graves e das mortes é a falta de vacina. Com cerca de 22% da população totalmente protegida, o Brasil não pode arcar com mais atrasos no Plano Nacional de Imunização.
Em conversa no podcast A Covid-19 na Semana, a médica de família e comunidade Nathalia Neiva dos Santos, da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, lembra que a vacina é uma solução coletiva, "Só vai ter um efeito mais efetivo, quando atingir uma taxa superior a 70% da população totalmente vacinada".
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Na sexta-feira, o prefeito Eduardo Paes (PSD) informou que o município é o epicentro de casos da covid atualmente no Brasil, por conta da variante. Em um desabafo, cobrou mais uma vez o Ministério da Saúde.
"Agradeço ao governo federal, eles é que compram e pagam a vacina, eles é que adquiriram a vacina, palmas para eles todos, tô feliz da vida, muito obrigado. Mas entrega a porcaria da vacina", disse Paes.
Não é só no Rio
No estado de São Paulo, as reclamações sobre entrega insuficiente de doses também se intensificaram. Na semana passada, o governo estadual havia informado que recebeu 228 mil doses a menos da vacina da Pfizer do que o previsto.
De acordo com representantes da gestão, o Ministério da Saúde acordou o envio de doses extras para cobrir o rombo, em um acordo firmado na sexta-feira (6). No entanto, na quarta-feira seguinte (11), o governador João Dória (PSDB) foi a público informar que o combinado não havia sido cumprido.
"Ministro, eu aprendi com o meu pai que é feio mentir, e que é feio prometer e não cumprir", alfinetou Dória em recado público ao ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. O estado quer que o governo garanta que o número de doses entregues não sofra diminuições e, para isso, cogita até mesmo acionar a justiça.
Os municípios paulistas já sentem o atraso. Houve suspensão parcial ou total das aplicações em algumas das principais cidades da região. Nesta lista estão polos importantes, como Santos, Campinas e Bauru.
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Mas o problema não ocorre só no Sudeste. Houve restrições à aplicação ou suspensão da campanha em pelo menos cinco capitais ao longo da semana. Além do Rio de Janeiro, Belém, São Luís, João Pessoa e Florianópolis também tiveram que pausar o calendário.
Em todos os casos, as prefeituras vêm conseguindo retomar o cronograma assim que novas doses são entregues. Mas, diante da urgência da crise sanitária, até mesmo um dia perdido amplia os riscos de propagação da variante delta.
"Não há vacina que chegue a 100% do controle da transmissão viral. Os 22% ainda ficam muito aquém quando se usa a vacina como única aposta de controle de uma pandemia", afirma a Nathália Neiva.
Ela aponta como um erro a liberação de medidas não farmacológicas, como distanciamento social e uso de máscara, neste momento. A médica lembra que até mesmo nações com imunização mais avançada tiveram que voltar atrás dessas decisões.
"Avançaram na taxa de imunização, o que é excelente, cumpriram a tarefa, mas ao mesmo tempo teve uma liberação precoce das medidas individuais. De fato é um erro quando se pensa que as vacinas não são 100% efetivas como barreiras de proteção. Sozinhas, elas não conseguem fazer o controle da pandemia", explica.
Atualmente, os números da pandemia no Brasil crescem em velocidade mais lenta em relação ao que vinha sendo observado no primeiro semestre deste ano. Nathália ressalta que não é possível justificar o abandono de medidas de prevenção e a lentidão da vacinação por causa desse declínio.
"A pandemia está funcionando em ondas em todos os países, não é um platô permanente desde que começou. Já passamos por isso, já vivemos momentos de controle que foram muito comemorados e o que se vivenciou depois foi pior", alerta ela.
Segundo Nathália, por mais que as vacinas tragam otimismo, a pandemia tem caráter dinâmico. "Olhar somente para a descendência e achar que não teremos mais ascensão, é um comportamento até ingênuo".
Ela aponta que os problemas de distribuição das vacinas e a falta de aplicação de medidas preventivas pioram o cenário, "Os próximos dias são determinados por um conjunto de fatores. Não é um desejo ou uma força sobrenatural que mantêm a curva para baixo".
A médica finaliza com um aviso importante, "Não existe uma perspectiva colocada hoje, a curto prazo, de encerramento da pandemia. Anunciar isso é propagar notícia falsa, porque isso não tem sido colocado em nenhum lugar do mundo".
Edição: Leandro Melito