A afirmação do ministro da Educação, Milton Ribeiro, que a Universidade deveria ser para poucos e que a grande maioria deveria seguir o caminho da educação profissional diga-se, a seu crédito, não é apenas uma posição explícita sua, mas a da classe social a que pertence e representa.
Não se trata aqui de fazer um julgamento moral, mas de analisar o sentido social do que afirma. Pode-se, assim, afirmar que a sua fala é coerente com as políticas educacionais de direita ou de extrema direita que vêm sendo disputadas historicamente em nossa sociedade e que desde a década de 1990 se afirmam em seu caráter classista excludente de forma clara ou dissimulada.
Com efeito, se examinarmos as contra-reformas educacionais da gestão dos oito anos do ministro Paulo Renato de Souza nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, as conta-reformas na educação após o golpe de Estado de 2016 e, agora, sob o governo de extrema direita, vemos que o preconceito de classe se matiza entre a ideia de que os pobres são menos inteligentes, não se esforçam e, por isso, não têm mérito, às posturas de ódio - especialmente, mas não só - com as populações negras e indígenas. Aqui, ao preconceito de classe, soma-se o de raça.
“Odeio, odeio, odeio esse termo povo indígena” (ex ministro da Educação Abraham Weintraub em reunião ministerial de 22/04/2020)
Paulo Renato de Souza oficializou a dualidade educacional sob a tese de que quem precisa trabalhar não deveria ter o mesmo ensino médio básico que os demais. Esta separação foi parcialmente restabelecida nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff mediante um Decreto Lei que permitia restabelecer o ensino médio integrado.
Com o golpe de Estado de 2016, o mesmo grupo que conduziu a política educacional na gestão Paulo Renato de Souza conduziu a contra-reforma do ensino médio, dissimulando a dualidade mediante a oferta de cinco itinerários formativos com o argumento de que agora os jovens teriam a autonomia para escolher.
Na prática, o que vai ocorrer na maioria das escolas públicas do Brasil onde estudam as filhas e filhos da classe trabalhadora é a oferta do quinto itinerário, formação profissional, em escolas sem laboratórios e sem professores preparados para isto. Mas a lei já tem o gatilho de permitir as parcerias com o setor privado e parte da carga horária por meio remoto. Portanto, a tese que o jovem pode escolher entre os cinco itinerários é falsa, quer pelas condições objetivas das escolas, quer pelas condições reais dos alunos,
O efeito, mediante dispositivo legal, é a negação à educação básica. Esta entendida como o acesso, tanto aos conhecimentos das disciplinas que permitem entender as leis da natureza, quanto àquelas que facultam entender as relações socais.
Conhecimentos fundamentais para entender, por exemplo, as pandemias, o aquecimento global, a concentração da propriedade e da renda na mão de cada vez menos famílias ou grupos e o aumento sistemático da desigualdade que se manifesta pela pobreza, extrema pobreza e pela fome.
::Parlamentares, docentes e pós-graduandos apontam caráter ideológico da atuação MEC::
Mas o pior para as gerações atuais de jovens completa-se com a ascensão ao poder da nação em 2019 do bloco de forças de extrema direita que se expressa pela junção de três fundamentalismos.
O econômico, para o qual o mercado se torna o regulador das relações sociais numa das sociedades mais desiguais do mundo, onde o critério de justiça e igualdade social é substituído pela ideologia da meritocracia. O político, que se guia pela pedagogia do ódio e da ameaça de anulação de adversários e do pensamento crítico divergente.
Finalmente, o fundamentalismo religioso, este que busca subordinar a ciência à crença e impor os valores moralistas particulares como sendo universais. “Nossos quilombos estão crescendo e os meninos estão nascendo nos quilombos e seus valores estão lá. Então, tudo vai ter que ver a questão dos valores.” (ministra de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares, também na reunião ministerial de 22/04/2020).
O desmanche ao direito à educação básica pela contra-reforma do ensino médio por si já nega às gerações de jovens os fundamentos científicos e culturais para a travessia à dupla cidadania: política e econômica. A primeira que supõe bases para uma inserção autônoma na vida em sociedade atuando como sujeitos emancipados e, a segunda, os fundamentos das ciências que embasam as tecnologias nos processos de produção industrial, agrícola e dos serviços.
Sob o governo de extrema direita de Bolsonaro isto se radicaliza para pior. As Bases Curriculares Comuns Nacionais prevêem a maior carga horária para matemática, língua portuguesa e inglês, diluindo as ciências da natureza, as ciências humanas e sociais e a arte e à cultura em blocos. O foco, de forma inequívoca, passa a ser ideológico e moral.
Por um lado, a militarização das escolas e, por outro, a Política do livro didático focado no controle ao pensamento crítico, genericamente denominado de esquerda ou de marxismo cultural e de ideologia de gênero. Instaura-se, assim, a política em que os professores só podem ensinar o que prescreve a ideologia oficial e esta entendida como não política. Isto na história tem nome: imposição do pensamento único de ditaduras e de regimes nazi-fascistas.
E o que dissimula a afirmação que o futuro da educação para maioria dos jovens é a que se efetiva nos Institutos Federais de Educação Ciências e Tecnologia tomando como referencia a Alemanha? Este é um surrado jargão para mascarar ao contrário do que são as escolas e as universidades na Alemanha. Por certo o ministro não está se referindo à concepção dos Institutos criados em 2008 que estimulava o ensino integrado e a verticalidade que inclui licenciaturas, pós graduação lato e stricto sensu e extensão.
Assim, o que de fato está implícito não é o que se faz na Alemanha, mas no desenho das contra-reformas do ensino médio e das universidades públicas. O que está ocorrendo nos Institutos e nas universidades é o corte absurdo de verbas determinando a exclusão, exatamente dos que mais precisam de uma educação de qualidade: jovens que freqüentam a escola pública, quilombolas, indígenas, ribeirinhos e educação de jovens e adultos.
A pandemia só agravou o que era política implícita: determinar a autoexclusão dos pobres dos institutos e das universidades.
Um exemplo do que acabo de afirmar é que ao mesmo tempo em que a lei permite 20% da carga horária por meio remoto no ensino médio e se afirma que no ensino superior o ensino híbrido veio para ficar, Bolsonaro vetou a lei aprovada pelo Congresso, em fevereiro deste ano, que destinava R$ 3,5 bilhões para bancar internet de alunos de baixa renda.
O Congresso derrubou o veto e, portanto, o governo deveria cumprir a Lei 14.172/2021. Mas o ministro da Economia, Paulo Guedes, de acordo com notícia do portal UOL, afirmou, em 12 de agosto deste ano, que “o governo cometeria crime de responsabilidade caso disponibilizasse R$ 3,5 bilhões a estados e municípios para ampliar o acesso à internet para estudantes e professores da educação púbica”.
De acordo como o Comitê Gestor da Internet do Brasil, 56% da população rural e 60% das classes D e E não têm acesso à internet. Cerca de 70 milhões têm acesso precário. Esse acesso precário evidencia-se pelo fato que 56% acessam por celular e destes 51% por pré-pago. E o que é isso se não exclusão como política de governo?.
Será que a educação básica e profissional na Alemanha, que o Ministro da Educação toma como referencia, padece da mesma precariedade e negação de condições?
O que o Ministro da Educação argumenta como tese, que expressa a política econômica, científica, educacional e cultural do governo que serve a da maioria dos que compõe a classe dominante brasileira, parou na primeira metade do Século XIX, enquanto a Alemanha situa suas políticas no Século XXI. O Ministro e sua classe continuam com a tese do filósofo e político Desttut de Tracy (1754-1836) que na primeira década do Século XIX afirmava:
Em toda a sociedade civilizada existem necessariamente duas classes de pessoas: a que tira sua subsistência da força de seus braços e a que vive de renda de suas propriedades ou do produto de funções onde o trabalho do espírito prepondera sobre o trabalho manual. A primeira é a classe operária; a segunda é aquele que eu chamaria de classe erudita.
Os homens da classe operária têm desde cedo necessidade do trabalho de seus filhos. Essas crianças precisam adquirir desde cedo o conhecimento, sobretudo, o hábito e a tradição do trabalho penoso a que se destinam. Não podem, portanto, perder tempo na escola. (...) Os filhos da classe erudita, ao contrário, podem dedicar-se a estudar durante muito tempo; têm muita coisa a aprender para alcançar o que se espera deles no futuro. (...)
Esses são fatos que não dependem de qualquer vontade humana; decorrem necessariamente da própria natureza dos homens e da sociedade. (DESTUTT, M. C. de Tracy. Élements d’ Ideologie. In:. FRIGOTTO, Gaudêncio. (Org) Trabalho e conhecimento, dilemas na educação do trabalhador. (São Paulo, Cortez, 1987, p15).
Francisco de Oliveira, em suas análises da classe dominante brasileira, a definia como “A vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda”. O pensamento político, econômico social e educacional do ministro Milton Ribeiro nesta e noutras entrevistas de cunho moralista expressa a síntese desta vanguarda do atraso.
* Gaudêncio Frigotto é filósofo e pedagogo, mestre e doutor em Educação. Professor titular aposentado na Universidade Federal Fluminense e, atualmente, professor associado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Vinícius Segalla