No último dia 29 de julho, o Brasil assistiu ao incêndio que destruiu parte da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, uma tragédia anunciada. Já no estado de Pernambuco, a instituição local responsável por preservar a história da produção cinematográfica local segue o caminho inverso, reabrindo suas portas a visitas presenciais após mais de um ano, exibindo novas estruturas incorporadas ao espaço público que ocupa.
O estado de Pernambuco se destaca na produção audiovisual nacional desde as primeiras décadas do cinema. Documentários e longas-metragens de cinema mudo produzidos no Recife se destacaram a partir da década 1920, como o longa Retribuição (Gentil Roiz, 1924), primeiro filme brasileiro a possuir enredo.
Surgiram companhias e empresas para a produção cinematográfica, a exemplo da Aurora Filmes, Olinda Filmes e Vera Cruz. Ainda nesta década surgiram as primeiras salas de cinema no estado, entre as quais o Cinema do Parque (atual Teatro do Parque).
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O cinema com som, posteriormente com cores, encareceu a produção audiovisual e provocou um “recuo” na produção local. Na década de 1970 o custo voltou a baixar com os filmes em “Super-8”, uma nova geração de cineastas locais surgiu, entre os quais Jomar Muniz de Brito. O marco da retomada do cinema pernambucano contemporâneo é o Baile Perfumado (1997), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas.
Nas décadas seguintes se destacaram Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo Gomes; Amarelo Manga (2002) e Baixio das Bestas (2006), de Cláudio Assis; Doméstica (2012), de Gabriel Mascaro; O Som ao Redor (2013), Aquarius (2016) e Bacurau (2019), de Kléber Mendonça Filho.
Para preservar, difundir e estimular a produção audiovisual pernambucana, foi criada em 2018 a Cinemateca Pernambucana, fruto de parceria entre a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e a TV Escola.
O órgão não possui infraestrutura ou capacidade técnica instalada para a preservação de filmes em película. “Todo o esforço é concentrado para o trabalho com os arquivos digitais, que são o padrão de produção desde o final do século 20”, pontua em nota enviada ao Brasil de Fato Pernambuco. Ela destaca ainda que “a preservação é um processo de longo curso, altamente especializado e que requer investimentos financeiros compatíveis com a importância da tarefa de manter os filmes do passado e do presente disponíveis para as futuras gerações”.
Além de catalogar e preservar filmes, roteiros, cartazes e fotografias do cinema local (mais de 1.500 itens), o órgão estimula a pesquisa e estudo. Há materiais disponíveis para consulta presencial e há materiais disponíveis online. A sede da cinemateca fica na Fundaj, bairro de Casa Forte, Recife, onde há sessões semanais com filmes do acervo. A cinemateca também digitaliza os filmes e os disponibiliza gratuitamente em seu site. São mais de 300 títulos disponíveis online, entre os quais clássicos do cinema local como o documentário Recife no Centenário da Confederação do Equador, filmado em 1924.
A Cinemateca Pernambucana informou ao BdF que os filmes mais acessados do catálogo são os do início dos anos 1920, com destaque para Veneza Americana (de Ugo Falangola e J. Cambiere); filmes do Ciclo Recife, como A Filha do Advogado (Jota Soares) e Aitaré da Praia (Gentil Roiz), além dos filmes em Super-8 (anos 1970) e as produções mais recentes (pós-2000).
Mas algumas obras do catálogo no momento não estão disponíveis para serem vistas online, por questões contratuais detentores dos direitos, a exemplo de Tatuagem (2013), Doméstica (2012), Amor, Plástico e Barulho (2013) e Boi Neon (2015), mas podem ser assistidos presencialmente na cinemateca.
Promover o acesso a esse conteúdo tem sido o principal desafio da Cinemateca Pernambucana durante pandemia. “Conseguimos autorização para exibição de novos filmes por parte dos seus detentores/realizadores, dobramos a velocidade do nosso link de acesso ao portal e atingimos em 2020 mais de 283 mil acessos, num crescimento de mais de 700% no número de acessos em relação ao ano anterior. Só no final do primeiro semestre deste ano de 2021 já tivemos perto de 150 mil acessos ao nosso portal”, comemora o órgão em resposta ao BdF.
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Ao longo dos 17 meses de pandemia (até agora), a Cinemateca promoveu oficinas online e realizou mostras online em seu site. Mas ainda em agosto deve ser reaberta ao público para visitação, agora numa sede própria de 400 metros quadrados, com figurinos, adereços e equipamentos, sala de projeção do acervo, debates e cursos, além de uma área de convivência e pesquisa, computadores para consulta.
Todas as atividades são acessíveis para pessoas com deficiência, assim como parte do acervo, que foi adaptado com audiodescrição, Libras e legendas para pessoas surdas e ensurdecidas.
Sobre o incêncio na Cinemateca Brasileira, a Pernambucana emitiu uma nota:
“(...) Todos que fazem cultura no Brasil perdem um pedaço da sua história. Ficam perdidos para sempre matrizes e cópias de cinejornais, trailers, filmes domésticos, de ficção, documentários. (...) Do acervo documental foram queimados quase 60 anos de ações governamentais. Material ainda pouco estudado, como os registros da Embrafilmes, INC e Concine. (...) Uma cinemateca é uma instituição não só que coleta e guarda, mas que, acima de tudo, preserva e difunde o audiovisual produzido, além de promover debates, cursos, reflexões, mantendo assim vivas nossas produções. Uma cinemateca mantém nosso cinema preservado e em circulação, aberto para ser pesquisado, tornando-se um estímulo criativo para novas gerações de cineastas.”
Além da Cinemateca Pernambucana (Recife), há outras cinematecas locais dedicadas à preservação e fortalecimento da produção audiovisual em seus estados, como a Cinemateca do MAM (Rio de Janeiro) e as de Salvador (BA), Natal (RN), Porto Alegre (RS) entre Curitiba (PR) e outras
Cinemateca Nacional: a história que se queimou
A fundação da Cinemateca Brasileira teve como principal inspirador o historiador e crítico de cinema Paulo Emílio Sales, prestigiado nos círculos de cultura e esposo da escritora Lygia Fagundes Telles. Ainda estudante universitário, Paulo Emílio Sales fundou em 1928, no Rio de Janeiro, o “Chaplin Club”, tido como o primeiro clube de cinema brasileiro.
Militante e líder estudantil, Sales colaborou com a Intentona Comunista (1935) e acabou preso pela ditadura de Getúlio Vargas. Solto após um ano, foi preso novamente por encenar uma peça de teatro que violava censura governamental. Desta vez fugiu da prisão e foi para a França. Voltou ao Brasil, fundou outro cineclube em São Paulo, foi novamente censurado pelo governo Vargas e de novo partiu para a França (1946), onde fez graduação. Em Paris conheceu a Cinemateca Francesa, instituição dedicada a preservar e divulgar a produção cinematográfica do país.
Com a queda de Vargas, novos clubes de cinema surgiram no Brasil, entre os quais o “Segundo Clube de Cinema de São Paulo”, em 1946, o que é considerado a fundação da atual Cinemateca Brasileira. Da França, Paulo Emílio Sales contribuiu para manter os cineclubes brasileiros em contato com grupos internacionais. Sales chegou a ser vice-presidente da Federação Internacional de Arquivos de Filmes. Com a criação do Museu de Arte Moderna de São Paulo (1948), uma sala foi reservada para a “Filmoteca”, que abrigava as atividades do Segundo Clube de Cinema.
Sales retornou ao Brasil em 1954, foi nomeado chefe da Filmoteca e dois anos depois o clube se tornou a Cinemateca Brasileira, saindo do MAM para atuar como entidade não-governamental e sem fins lucrativos. A instituição dependeu de doações por 32 anos, até ser incorporada pelo Ministério da Educação e Cultura (1984).
A Cinemateca abriga o mais rico acervo cinematográfico do Brasil, com mais de 250 mil rolos de filme e mais de 1 milhão de roteiros, fotos, cartazes e livros relacionados ao cinema. O órgão atua com foco em políticas culturais de estímulo à produção audiovisual, mantendo relação estreita com a educação pública.
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A Cinemateca Brasileira sofreu incêndios em 1957, 1969, 1982, 2016, sempre perdendo entre 1.000 e 2.000 fitas em cada. No primeiro, quase todo o acervo foi perdido. O quinto incêndio, no último dia 29 de julho, atingiu o galpão do depósito da instituição. Ainda não foi possível detectar a causa e nem mensurar o estrago causado pelo fogo. Mas desde o início de 2020 os trabalhadores da Cinemateca têm apontado para o risco de um acidente do tipo, já que os recursos disponibilizados pelo Governo Federal para o órgão têm sido insuficientes mesmo para manutenções básicas no sistema elétrico.
Fonte: BdF Pernambuco
Edição: Vanessa Gonzaga