No seu aniversário de 45 anos, Mário Roni não tinha a menor expectativa de qualquer coisa parecida com festa. “Não vai ter nada”, resumiu. Naquele dia sombrio e gelado do final de junho, o almoço seria feijão e arroz “e umas pombinhas que um caçador me deu”. É a carne que, vez em quando, consegue.
Não era ruim considerando-se que todos na casa – além dele, a mulher Ana Paula, 40, e as filhas Renata, 20, e Ana Cláudia, 15 – sentariam à mesa e comeriam.
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Nem sempre é assim. E quando não é assim, o que acontece? “Eu me limito”, resumiu. Na verdade, ele não está sozinho nessa limitação. “Eu e a minha esposa só comemos depois das crianças”, como chama as filhas, uma adulta e a outra adolescente.
Café preto engrossado com farinha
“Se sobrar, a gente come. Se não, vamos pro mato procurar bergamotas”, conta. Se as bergamotas não aparecerem ou forem poucas, apela para o café preto engrossado com farinha de milho. “A farinha a gente torra na frigideira para virar um pirãozinho.”
Mário Roni Siqueira Marques é morador de Cerrito Alegre, 3º distrito de Pelotas, 345 mil habitantes, a maior cidade da chamada Metade Sul do Rio Grande do Sul, a região mais pobre do estado e que concentra as maiores propriedades rurais do território gaúcho. Por ironia, o Rio Grande já foi chamado, em um passado distante, de “Celeiro do Brasil”.
As noites escuras dos Marques
Profissão? Mário Roni não tem nenhuma ou tem todas. “Trabalho em qualquer tipo de serviço.” Já se passaram mais de cinco anos do último que conseguiu com carteira assinada. Foi em uma fábrica de compotas. Trabalhava em uma esteira separando pêssegos. Na época, Ana Paula também conseguiu emprego lá. Ambos ganhavam o salário-mínimo. “Foi o melhor tempo”, relembra.
Hoje, as noites dos Marques são sempre de escuridão. “Não temos mais luz. Cortaram por falta de pagamento.” No aperto, o chefe da família vendeu a bicicleta em que rodava para procurar trabalho. Menos mal que um vizinho para quem faz alguns biscates comprou uma usada e lhe deixa usar à vontade.
“Tem que agarrá de unha e dente”
Hoje, Mário Roni é diarista. Quer dizer, trabalha quando aparece alguma coisa. “Não tá fácil.” Faz de tudo um pouco. Nos meses melhores, consegue até R$ 800, bem abaixo do salário-mínimo regional. “Às vezes, nem isso. Muitas vezes, só se consegue trabalho durante uns oito ou dez dias por mês. E tem que agarrar de unha e dente”.
Mário Roni e a família moram em uma área rural pertencente a um quilombo, mas não possuem terra para plantar. No espaço escasso que tem, semeia batata e inhame. Cria uma porca que teve oito leitões, todos miúdos, ainda mamando. Não é uma carne que frequentará a mesa dos Marques.
“Logo que desmamarem vou ter que vender eles ainda pequenos para conseguir comprar comida pra porca.”
Avanços da soja e do milho ocultam perdas importantes
Um primeiro olhar sobre a produção agrícola do Rio Grande do Sul mostra avanço nas lavouras de soja e milho, mas não permite enxergar uma informação crucial.
“A oferta de alimentos sem milho e soja nos anos 1970 era de 4,6 quilos por pessoa/dia, mas, após 45 anos, é de 3,28 kg por pessoa/dia”, nota a pesquisadora Gabriela Coelho de Souza, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), uma das autoras do estudo Fome RS, em andamento.
Houve redução de quase 30% na oferta diversificada de alimentos no Sul, justamente uma das regiões mais privilegiadas do país em termos de acesso à nutrição. O quadro é mais perverso na chamada Metade Sul, o que ajuda a explicar parte dos problemas de Mário Roni e de sua família.
“A insegurança alimentar e a pobreza no meio rural ficam despercebidas, já que o Brasil, e sobretudo o Rio Grande do Sul, exportam toneladas de grãos”, reparam a pesquisadora e seus colegas Alvori Cristo e Mirian Strate, todos integrantes do Observatório Socioambiental em Segurança Alimentar e Nutricional (ObSSAN - AsSsAN Círculo), da Universidade gaúcha.
A pedido do Brasil de Fato, os três analisaram o quadro estadual notando, por exemplo, que a diminuição da diversidade alimentar simplifica a dieta e provoca a perda de segurança alimentar e nutricional. Na comparação de 1970 com 2020, houve queda na produção gaúcha de feijão, batata, mandioca, trigo, centeio, frango, bovinos, hortigranjeiros e frutas.
Sem carteira assinada
Eles indicam “diferenças marcantes” entre as metades Sul e Norte, a começar pelo processo de ocupação da terra. Na primeira, concentração fundiária marcada pelo cultivo do arroz e a pecuária. Na segunda, predomínio da pequena e média propriedade e da agricultura familiar. No Sul rural, é corrente o assalariamento, o trabalho temporário e sem carteira assinada.
Considerando-se todo o estado, os grupos mais severamente ameaçados são aqueles levantados pelo Censo de 2010: os sem renda, representado por 25,27% da população maior de 10 anos e a população com renda entre 25% do salário-mínimo e um mínimo, que abrangia 23,42%. Sem contar com os dados do Censo de 2020, os pesquisadores acreditam que o panorama é provavelmente pior.
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Especial Fome no Brasil
Ficha técnica:
Coordenação do projeto: Mariana Pitasse e Rodrigo Chagas | Edição: Kátia Marko, Monyse Ravena, Fredi Vasconcelos, Vanessa Gonzaga, Larissa Costa, Leandro Melito, Mariana Pitasse e Rodrigo Chagas | Reportagem: Eduardo Miranda, Jaqueline Deister, Wallace Oliveira, Ayrton Centeno, Vinícius Sobreira, Lucila Bezerra, Giorgia Prates, Pedro Carrano, Ana Carolina Caldas, Marcelo Gomes, Francisco Barbosa, Pedro Rafael Vilela, Murilo Pajolla, Pedro Stropasolas e Daniel Giovanaz | Identidade visual: Fernando Bertolo | Artes: Michele Gonçalves | Rádio: Camila Salmazio, Geisa Marques, Douglas Matos, Daniel Lamir, Adilson Oliveira, André Paroche e Lua Gatinoni | Audiovisual: Marina Rara, Isa Chedid, Leonardo Rodrigues e Jorge Mendes | Redes sociais: Cris Rodrigues, Larissa Guold, Guilherme Faro Bonan, Joanne Mota e Vitor Shimomura | Coordenação de jornalismo: Rodrigo Durão | Direção CPMídias: Lucio Centeno e Nina Fideles.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Rodrigo Chagas e Katia Marko