Esta semana o STF vai julgar uma ação que envolve os indígenas da etnia Xoklem em Santa Catarina, à qual o Tribunal dará “repercussão geral”, isto é, aplicará o mesmo entendimento para outros julgamentos futuros que tenham como foco de julgamento o mesmo ponto de divergência. Vai gerar o que se chama de “súmula vinculante”, isto é, amarra, vincula, todos os julgamentos futuros ao julgamento desta semana.
:: Tem início acampamento indígena em Brasilia que fará vigília durante votação do Marco Temporal ::
A questão que está em discussão jurídica para decisão é o chamado “marco temporal”. O que é isto?
Como a Constituição foi aprovada em 1988, os latifundiários, ou mesmo o Estado com projetos de colonização, que fizeram a intrusão de terras indígenas ANTES de 1988, poderiam continuar nelas e os povos indígenas perderiam o direito de reivindicar estas terras. Os povos indígenas só teriam direito às terras em que estavam MORANDO antes de 1988, esquecendo e apagando toda a violência das expulsões ocorridas no final do século 19 e ao longo do século 20. Além de abrir uma discussão sobre o espaço restrito ao qual estavam confinados pela violência do entorno àquela data.
::Marco temporal vai ao pleno do STF e define demarcação: o que esperar do julgamento?::
Ora, na Constituição está escrito: “terras que TRADICIONALMENTE ocupam”. Não está escrito: “terras que MOMENTANEAMENTE ocupam”. A princípio, nem teria o que se discutir. Ocupação tradicional se prova com identificação de cemitérios indígenas, documentos comprobatórios de presença, depoimentos de idosos, enfim, há uma metodologia consagrada para identificar ocupação tradicional.
O que estará em julgamento é se vale a Tradicionalidade ou o Marco Temporal datado em 1988. E a decisão desta semana vai valer para os próximos julgamentos.
Os povos indígenas e seus aliados estão mobilizados. Os grandes proprietários invasores de terras indígenas, também.
::Julgamento no STF sobre o Marco Temporal é ponto crucial na luta pela vida dos povos indígenas::
Sempre surgem as dúvidas sobre pequenos agricultores que os governos titularam em áreas de ocupação tradicional indígena.
Quando fiz parte do governo Olívio Dutra no Rio Grande do Sul, tive a honra de coordenar, sob as ordens firmes do grande governador, o reassentamento em condições melhores das que viviam nas terras indígenas, de mais de 500 famílias, devolvendo as terras aos seus legítimos donos e garantindo o direito à terra aos agricultores ocupantes de boa fé.
Conflito possível de ser resolvido garantindo os direitos de agricultores e indígenas, bastando vontade política.
Expectativa grande de ver o STF consagrando a Constituição aprovada e não legislando.
:: Mais de 6 mil indígenas ocuparam a Praça dos Três Poderes em oposição ao marco temporal ::
Porém, não há grandes decisões sem alguma grande decepção. A decepção da vez fica por conta do jurista Lênio Streck, professor da Universidade Jesuíta Unisinos, que pousa de progressista, mas que emprestou (ou vendeu?) seu tempo, seu prestígio e sua erudição à causa anti-indígena.
Em parecer encomendado por advogados que representam os grandes produtores de algodão do Mato Grosso, o jurista Lênio esnoba e abusa da erudição jurídica, em grande parte, vazia de conteúdo, repetitiva, lotada de citações em inglês, típico do que popularmente chamamos de “encher linguiça com ar”.
O Doutor Streck se apega ao julgamento do próprio STF sobre a terra indígena Raposa Serra do Sol tentando demonstrar que as condicionantes daquele julgamento se constituiriam num precedente que vincularia os próximos processos e que o julgamento desta semana não poderia reformar aquela decisão. Apenas chancelar.
Uma leitura atenta do parecer percebe que o próprio Doutor demonstra não acreditar muito em sua própria tese. É que Lênio sabe que a condicionante que poderia dar guarida à tese do marco temporal foi objeto de “embargo declaratório”, e neste, não consagrada como “vinculante”. E também sabe que, mesmo que fosse o caso, quem tem autoridade para fazer, a tem para reformar, no caso em tela, o SUPREMO Tribunal Federal.
Uma tese frágil propalada por uma pena forte. Triste é ver Streck prestar-se a isto.
Como advogado, Dr. Lênio tem o direito de defender a tese que quiser e prestar serviço para o cliente que bem entender. É da sua profissão. Nada a reclamar.
Mas que sua pose de progressista sai arranhada, ah, isto sai. Cada escolha também é uma sentença.
E também, quem sai no temporal, pode enfrentar ventania.
O que estranhei muito foi a flexibilidade epistêmica de Streck na abordagem de seu parecer, algo tão combatido pelo mesmo em tantos outros de seus textos.
A mim causou grande decepção e tristeza. Não creio ter sido o único. Tristeza também por ver o nome de uma Universidade Jesuíta, cuja Congregação tanto fez em favor dos povos indígenas em nosso país, envolvida nisto, já que, no final do parecer, o citado jurista se apresenta como docente desta renomada instituição de ensino.
Reafirmando o direito indígena e a Constituição, com expectativa esperançosa. Sim à causa indígena.
*Frei Franciscano, militante do MPA, autor de Trincheiras da Resistência Camponesa.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira