Reportagem originalmente publicada na Revista Esquinas, da Faculdade Cásper Libero
Crítico ferrenho da coronavac, Everton Sodario (PSL), prefeito de Mirandópolis (SP), assiste à vacina produzida pelo laboratório Sinovac e pelo Instituto Butantan ser responsável por 42% das aplicações realizadas na cidade. A informação, que contabiliza as aplicações de primeira e segunda doses realizadas até o dia 11 de agosto, foi obtida com exclusividade por ESQUINAS a partir de tratamento dos microdados da base pública do Sistema Único de Saúde (DATASUS).
Ao todo, cerca de 10 mil habitantes da pequena cidade do interior paulista haviam tomado ao menos uma dose do que o prefeito, em suas redes sociais, denomina de “vacina chinesa do Doria”, quando prefere não usar de palavrões para classificar o imunizante. Considerando a primeira dose, a coronavac - produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a empresa chinesa Sinovac - responde por 35% das aplicações (5.423 habitantes).
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Já quando se leva em conta o percentual da população da cidade do prefeito que se orgulha de ser conhecido no município como "Bolsonaro Caipira", a coronavac corresponde a nada menos do 59% das imunizações completas totais (primeira e segunda dose), tendo sido aplicada em 4.590 habitantes.
Everton Sodario é um seguidor fiel do presidente. Desde que o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), tomou a frente da importação do princípio ativo e do desenvolvimento nacional da vacina do laboratório Sinovac, tece constantes e fortes críticas ao imunizante, tachado de “soro fisiológico melhorado” e “ineficaz” em seu perfil do Twitter. Ou, até, de "merda".
Parece que o Ministro da Saúde finalmente entendeu a merda que é a vacina chinesa do Dória. Soro fisiológico melhorado.
— Everton Sodario (@EvertonSodario) June 21, 2021
Mesmo representando expressiva proporção das imunizações do município, Sodario jamais a menciona quando fala do cronograma vacinal de Mirandópolis. Em 5 de maio deste ano, o prefeito celebrou o avanço da vacinação na cidade e o creditou ao presidente:
“Um terço da população de Mirandópolis, ou seja, quase dez mil pessoas, já receberam ao menos uma dose da vacina, e mais de cinco mil pessoas já foram vacinadas com as duas doses. Obrigado, presidente Bolsonaro”.
Ocorre que, àquela altura, a coronacac respondia por 70% das aplicações realizadas na cidade. Das cerca de cinco mil pessoas com ciclo vacinal completo na ocasião, dado celebrado na mensagem, 92% o tinham feito com a vacina que Sodario, em oportunidades anteriores, chamara de “vacina chinesa do DitaDória”.
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O prefeito já fez duas publicações confirmando o recebimento de lotes de vacinas da Pfizer agradecendo ao Governo Federal pelo envio das doses. O imunizante da farmacêutica americana, porém, responde por apenas 12% das aplicações em Mirandópolis – cerca de três vezes menos que a coronavac, ainda assim mencionada apenas em tom de crítica.
Procurado por ESQUINAS, Sodario encaminhou as perguntas da reportagem para a Secretaria de Comunicação do município. Celes Junior, chefe do gabinete executivo, declarou que as opiniões do prefeito, publicadas em seu perfil pessoal, dizem respeito apenas a ele. “A prefeitura cumpriu seu papel distribuindo as doses para a população. Inclusive, não deixamos lotes vencerem como em outras cidades da região.
A posição oficial do município está disponível nas redes sociais institucionais, enquanto o perfil de Sodario corresponde apenas às suas opiniões pessoais.” A pergunta sobre a aplicação de coronavac mesmo sob fortes críticas do prefeito ficou sem resposta.
Tânia Pinto, professora da Faculdade Cásper Líbero e especialista em Assessoria de Imprensa, discorda da justificativa da Secretaria de Comunicação.
“O perfil da prefeitura é fundamental na campanha de imunização, mas o prefeito não pode deixar de se posicionar. Ele é a própria prefeitura. Prefeito, governador e presidente da República passam a ser os próprios cargos durante o exercício das funções, não há distinção. O que um chefe do poder executivo faz representa a sua gestão. A opinião do gestor é também a de sua administração, não existe uma separação”, ressalta Tânia.
Sodario pode ser considerado o primeiro prefeito bolsonarista do Brasil. Ele foi eleito em novembro de 2019, ao vencer sufrágio suplementar. Naquela ocasião, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou a chapa municipal eleita em 2016, destituindo a prefeita Regina Mustafa (PV) e o vice José Antônio Rodrigues de seus cargos. Sodario obteve 8.303 votos, o que correspondeu a 67,85% do total válido.
Foi a redenção de uma frustrada campanha em 2018, quando se lançou candidato a deputado estadual e, com apenas 12.609 votos, não foi eleito – na ocasião, porém, foi o postulante à ALESP mais votado em Mirandópolis.
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Militância e protocolos
Mesmo sendo prefeito de uma cidade interiorana, Sodario é engajado em grandes temas da política nacional e, em suas redes sociais, mantém um posicionamento ideológico de extrema-direta. Em uma das fotos do Instagram oficial do prefeito, ele aparece despachando documentos à frente de uma parede com seis quadros de personalidades políticas: Margaret Thatcher, Donald Trump, Ronald Reagan, Abraham Lincoln, Dom Pedro II e Winston Churchill.
Na parede ao lado, maior e acima dos demais, há um quadro com uma foto do próprio Sodario. Nos comentários, os seguidores perguntam: “Cadê o quadro do mito?”
Como seguidor fanático de Jair Bolsonaro, Everton Sodario cumpriu à risca as indicações sem comprovação científica recomendados pelo Planalto para o enfrentamento da covid-19, como o uso de hidroxicloroquina e o desprezo ao isolamento social. Eduardo Bolsonaro, deputado federal e filho do presidente da República, chegou a mencionar Sodario e Mirandópolis como case de sucesso do tratamento precoce.
O uso da cidade como vitrine da política sanitária bolsonarista foi por água abaixo em março de 2021. Embora os nove primeiros dias daquele mês registrassem índices recordes de casos e óbitos, Sodario divulgou no dia 10 um vídeo assegurando que não tomaria medidas de restrição:
“Aqui em Mirandópolis nós nunca impedimos as pessoas de visitarem seus familiares, de saírem de casa, de terem o seu convívio social. Não podemos proibir as pessoas de sair para as ruas, isso é inaceitável, é intolerável”.
Oito dias depois, o prefeito voltou atrás e adotou protocolos restritivos ao comércio – não a tempo, porém, de fugir de uma multa de 40 mil reais pelo descumprimento do Plano SP. Em solidariedade ao prefeito, uma vaquinha organizada por setores bolsonaristas das redes sociais arrecadou quase metade deste valor.
Semanas depois, um levantamento da Folha de S. Paulo apurou que, do dia 19 de março a 19 de abril, os óbitos por covid-19 saltaram 170% em Mirandópolis – muito mais que os acréscimos estadual e nacional, de 32% e 29%, respectivamente.
No dia 24 de agosto, o município tinha uma taxa de 342 mortes pela doença para cada 100 mil de habitantes, superior à média de São Paulo (315 por 100 mil) e do Brasil (274 por 100 mil).
Edição: Vinícius Segalla