Ilha de Maré, Salvador (BA), dezembro de 2018. Entre as 300 famílias da comunidade quilombola Bananeiras, começa a chamar atenção um visitante peculiar: ora de batina, ora de camisa verde-amarela.
“Achávamos que ele vinha para veranear, a convite de uma senhora que morava aqui, mas acabou ficando, infelizmente”, conta uma pescadora, que prefere não se identificar.
“Primeiro, esse estorvo foi acolhido por uma família evangélica. Depois, alugou uma casa que fica numa ruazinha mais reservada da comunidade. Então, não é todo dia que é visto por aqui.”
O homem vestido como padre era Kelmon Luis da Silva Souza, que logo se tornaria conhecido dentro e fora da Ilha – ao menos entre os apoiadores de Jair Bolsonaro (sem partido).
Em 1º de maio deste ano, ele fez um discurso efusivo do alto de um carro de som na avenida Paulista, em São Paulo (SP), durante ato pró-governo:
“Onde a espada de Gideão passou, nenhum midianita ficou em pé. (...) Em nome de Jesus, quero abençoar o povo brasileiro e Bolsonaro, o nosso Gideão.”
Os midianitas eram povos nômades de origem árabe que disputavam terras com israelitas na parte central da Palestina. Conforme o Livro dos Juízes, do Antigo Testamento da Bíblia Cristã, Gideão é considerado um herói militar e teria sido convocado por Deus para matar os inimigos.
Os vídeos de Kelmon circulam principalmente em grupos de ultradireita no WhatsApp, com baixo engajamento em outras redes. No mais recente, ele promete estar no ato de 7 de setembro em Brasília (DF) e reforça a convocatória em todo o país.
“Você não pode ficar na sua casa, acomodado! (...) Somos uma nação cristã e continuaremos sendo. Que Deus abençoe o chefe desta nação”, completa.
Kelmon se apresenta como padre ortodoxo e reza missas em locais improvisados. Os modos pouco usuais e a religião, desconhecida da maioria dos nativos, despertaram interesse da mídia baiana.
“Ele nunca pertenceu a uma igreja ‘de verdade’, canônica. Ele sempre gostou de se envolver com essas igrejas falsas que ele diz que é pertencente, mas não é”, disse ao portal Farol da Bahia um representante da Igreja Ortodoxa Antioquina, em maio.
Em resposta, Kelmon postou em suas redes fotos do dia em que, após dez anos de preparação, ele teria sido ordenado “sacerdote na capela dedicada a Theotokos na chácara pertencente aos Melkitas.”
A reportagem do portal pediu então que o suposto padre enviasse os documentos da ordenação – que teria ocorrido em 2015, em São Paulo –, mas não houve retorno.
Ameaças a quilombolas
Apesar da beleza natural, a comunidade de Bananeiras tem infraestrutura precária e é uma das mais atingidas pela contaminação dos grandes empreendimentos na Baía de Todos-os-Santos.
“Ele chegou como um salvador da pátria”, lembra a marisqueira Marizélia Lopes. “Nossa comunidade sofre racismo institucional, então as políticas públicas não são garantidas. Quando ele chegou, a fala dele era: ‘Ilha de Maré agora vai ter tudo’, e isso chama atenção”.
A desconfiança começou em 2019, quando vizinhos começaram a notar que ele se passava por “anfitrião” e “guia turístico” em sua conta no Instagram, convidando visitantes à Ilha. Em paralelo, grupos de imigrantes venezuelanos começaram a se instalar na comunidade, a convite do suposto padre.
A gota d’água veio em novembro de 2020, quando Kelmon postou uma foto em suas redes afirmando que havia colocado a pedra fundamental do que seria a “paróquia de São Lázaro de Betânia” – dentro do manguezal Ponta do Capim, uma área de proteção ambiental.
Quando retornou ao local da obra, os materiais haviam sido removidos.
“Ele cercou o lugar onde seria essa paróquia improvisada. Como a maré estava cheia e não dava para passar, o pessoal acabou tirando as pedras dali”, conta o morador Bruno Nascimento. “Ninguém foi avisado da construção dessa paróquia.”
Imediatamente, Kelmon convocou a imprensa e disse ser vítima de intolerância religiosa.
“A comunidade, então, fez um abaixo-assinado dizendo que ele não iria construir a paróquia nem dentro do mangue, nem em lugar nenhum. Porque é uma comunidade quilombola, e a gente tem direito de consulta”, lembra Marizélia Lopes.
“Só que ele [Kelmon] se articulou com a politicagem e trouxe uns policiais na comunidade. Passou com os policiais armados, intimidando, dizendo ‘eles não sabem com quem estão mexendo’. Nesse dia, ele fez referência àquele [ex] deputado que foi preso, o Roberto Jefferson [PTB-RJ].”
Bruno Nascimento conta que os moradores buscaram informações sobre o político na internet e ficaram assustados.
“Depois que o Kelmon postou uma foto com ele, a gente foi pesquisar quem era e encontramos fotos desse Roberto Jefferson cheio de armas. Aí, pensamos: ‘Rapaz, olha com quem a gente está se metendo!’”
Em sua conta no Facebook, Kelmon aparece ao lado do político em pelo menos quatro ocasiões diferentes. Em entrevista ao site do PTB, partido presidido por Jefferson, o suposto padre conta que o político visitou a Ilha de Maré e até sugeriu a construção de um atracadouro.
Os moradores de Bananeiras ouvidos pela reportagem não recordam da passagem do ex-deputado pela Ilha.
Panfletos contra Dilma
Ex-seminarista, Kelmon foi missionário em um grupo da associação internacional católica Legião de Maria e atuou na comunidade ecumênica cristã de Taizé, de origem francesa, nos anos 90.
Ele diz ainda ter participado da criação de um grupo chamado Jovens Unidos Semeando Paz e Esperança (JUSPE), sobre o qual a reportagem não obteve informações adicionais.
Desde 2010, Kelmon Souza mantém em Brasília a loja de artigos religiosos Jabuti.
No mesmo ano, durante a campanha presidencial, a Polícia Federal apreendeu 2,1 milhões de panfletos que ele mandou imprimir contra a então candidata Dilma Rousseff (PT) em São Paulo.
O domínio do e-mail informado por Kelmon à gráfica, @theodokianos.org, se encontrava em nome da Casa de Plínio Salgado – que reúne admiradores do líder da Ação Integralista Brasileira, partido nacionalista católico de extrema-direita inspirado no fascismo italiano.
O vínculo com Roberto Jefferson é mais recente. Em entrevista ao canal “Os bastidores de Brasília” em abril, ele afirma ter se aproximado do político há poucos anos.
“Eu já o admirava desde aquela época em que ele gritou, mandando o José Dirceu [PT] sair do governo. Aí, eu já fiquei encantado com aquele homem”, disse.
“E conhecê-lo de perto, intimamente, me fez ver não o político Roberto Jefferson apenas, mas o homem, esposo, amigo, pai, avô. Tudo isso foi me encantando.”
Na mesma entrevista, ele afirma que conversava diariamente com Jefferson, e desses diálogos teria nascido o movimento Juventude Trabalhista Cristã Conservadora (JTCC), vinculado ao PTB.
Motivações
Da dobradinha com Roberto Jefferson, também surgiu a ideia de promover retiros trimestrais de jovens na Ilha de Maré para debater “Jesus como modelo para a vida política.”
Para os quilombolas de Bananeiras, o projeto significa mais incômodo.
“Ele está trazendo um monte de gente branca para cá. Construiu um galpão na comunidade, e está chamando uns eventos com muita bebida, muita comida, churrascada, e assim vai conquistando e cooptando as pessoas”, relata Marizélia.
“O que a gente desconfia muito é que ele está numa linha de especulação imobiliária. Ele tem trazido pessoas e continua no Instagram convidando pessoas para conhecer a Ilha de Maré”, afirma a moradora. “A gente mandou carta para a igreja que ele diz que faz parte, e a própria igreja diz que ele não pertence.”
A reportagem também não conseguiu confirmar o vínculo do suposto padre com nenhuma igreja.
Em vídeo veiculado em julho, Kelmon pede doações para as obras de uma suposta casa paroquial na Ilha de Maré.
“Precisamos construir um muro, cercando todo o terreno. Precisamos ampliar a cozinha, reformar o banheiro, colocar piso nas duas áreas e forrar toda a casa”, diz, informando em seguida o número do PIX.
O objetivo seria a reestruturação da casa para receber jovens imigrantes cubanos e venezuelanos, por meio de um projeto chamado Movimento Cristão Conservador Latino-Americano (MECCLA).
“São jovens que vêm por não suportarem mais viverem no socialismo e no comunismo. (...) Eles virão para nos ajudar no trabalho de conscientização cristã e política”, acrescenta no vídeo.
Em algumas das missas na Bahia, o suposto padre diz rezar “pela libertação da Venezuela do comunismo maldito.”
O Brasil de Fato entrou em contato com Kelmon Souza por e-mail, por redes sociais, por meio da empresa Jabuti e da associação Theotokos, ambas registradas em seu nome. Não houve retorno.
Edição: Anelize Moreira