Um documento produzido para a Coca-Cola coloca o Guia Alimentar para a População Brasileira na lista de problemas para a corporação. A análise de riscos formulada em 2016 pela consultoria Sancroft descreve a diretriz oficial do Ministério da Saúde como “punitiva para o açúcar e para nossas bebidas, classificando-as como alimentos ‘ultraprocessados’”.
Em linhas gerais, o documento de 155 páginas põe o Brasil como um dos maiores riscos para a empresa em termos de formulação de políticas públicas. Ao todo, são apresentados seis “mapas de calor” que dividem os países entre os que não têm qualquer perspectiva de regulação, os que têm “potencial” e os que têm uma chance “alta-severa” – o Brasil aparece nessa condição em cinco dos mapas.
Publicado em novembro de 2014, o Guia Alimentar sempre esteve sob pressões da indústria, antes mesmo do lançamento, em particular por ter sido o primeiro no mundo a separar os alimentos de acordo com o grau e o propósito de processamento. A diretriz oficial brasileira também inova ao abordar a sustentabilidade, as práticas culturais e a relevância dos hábitos alimentares tradicionais.
O Guia dedica um capítulo inteiro à questão do processamento, e define uma regra de ouro: “Prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados.” Além disso, o documento foi o primeiro do mundo a declarar enfaticamente a necessidade de evitar ultraprocessados.
O relatório “Principais questões regulatórias” foi formulado por encomenda da Coca-Cola em abril de 2016. Ele está numa base de dados da Universidade da Califórnia, em San Francisco, nos Estados Unidos, e foi localizado pela pesquisadora Camila Maranha, professora da Universidade Federal Fluminense.
“O documento é valioso porque cita o Guia Alimentar Para a População Brasileira e o Perfil de Nutrientes da Opas, colocando o Brasil numa posição ‘preocupante’ no mapa deles”, conta Camila, “além de mapear a agenda regulatória no mundo todo, o que mostra uma estratégia global bem articulada”.
Em 7 de maio de 2016, um sábado, às 23h15, o documento foi encaminhado à equipe de Assuntos Regulatórios e Científicos pela vice-presidente global desse setor, Wamwari Waichungo.
Na mensagem, Waichungo destaca que, diferentemente de documentos anteriores, o dossiê encaminhado naquele momento continha o que ela chama de “panorama competitivo”.
Basicamente, uma comparação entre as políticas adotadas por concorrentes, redes de supermercado e cadeias de restaurante em relação aos tópicos centrais discutidos no dossiê, como açúcar, cafeína, corantes, transgênicos e rotulagem, entre outros.
Waichungo tem passagem pela Campbell’s Soup e pela Conagra, duas grandes fabricantes de alimentos que, por sinal, constam no panorama elaborado no relatório.
No dia seguinte, um domingo, às 17h35, o então vice-presidente internacional para Relações Governamentais e Relações Públicas, Michael Goltzman, repassou o documento aos integrantes de sua equipe.
O relatório faz parte de uma série de documentos que vieram à tona nos últimos anos, no que ficou conhecido como Coca Leaks. Entre outras coisas, os documentos expuseram como a Coca-Cola se envolveu na produção de evidências científicas que buscaram apresentar o sedentarismo, e não os alimentos, como principal causa de obesidade e doenças crônicas.
A Coca-Cola Brasil foi procurada pela reportagem para comentar o dossiê da Sancroft, mas preferiu não se manifestar.
O relatório da Sancroft divide os problemas em seis tópicos principais:
BISPHENOL A
AGROTÓXICOS
ROTULAGEM FRONTAL DOS PRODUTOS
ORGANISMOS GENETICAMENTE MODIFICADOS
INGREDIENTES (ADITIVOS)
AÇÚCARES E ADOÇANTES
De todos esses, o Brasil só não figura como um risco “alto-severo” no primeiro tópico, bisphenol A. Naquele momento, Europa e Estados Unidos eram as principais preocupações da empresa quanto ao composto, presente em produtos plásticos, como garrafas de refrigerante.
Conforme indica o próprio relatório vazado, o bisphenol já foi associado ao desenvolvimento de câncer de próstata e ao amadurecimento sexual precoce em mulheres, quando ingerido em grandes quantidades.
O dossiê lembra que àquela altura todos os países da União Europeia e o Canadá já haviam passado leis proibindo a utilização de bisphenol na fabricação de alimentos voltados a crianças.
Embora açúcares e adoçantes compreendam apenas o último capítulo, fica claro que esse é o principal ponto de preocupação da empresa – são 24 páginas dedicadas ao problema.
A Sancroft lembra que a atenção crescente às doenças crônicas colocou o açúcar no centro das discussões, em paralelo a uma também crescente aversão por ingredientes artificiais, com destaque para os adoçantes.
Com isso, os governos estavam agindo no sentido de criar novos impostos, formular rótulos mais claros e restringir a comercialização (como em cantinas escolares).
“Muitas das políticas propostas são discriminatórias ou punitivas, mirando ingredientes específicos ou categorias de produtos”, escreveu a empresa de consultoria. “Muitas destas políticas afetam negativamente o portfólio da Coca-Cola, em particular as bebidas gaseificadas e as que contêm adoçantes.”
O mapa de calor relativo a esse assunto coloca Brasil, Chile, Bolívia, Equador e México entre os países de risco “severo-alto”. No caso chileno, a projeção era de que 50% do portfólio seria afetado pela adoção de alertas na parte frontal da embalagem.
No caso brasileiro, o mapa indica “diretrizes dietéticas negativas” e explica que a empresa considera o Guia Alimentar lançado em 2014 – os autores falam erroneamente em 2015 – como “punitivo” a seus produtos.
Daniela Canella, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e uma das integrantes do grupo de pesquisadores que formulou o texto-base do Guia Alimentar, lembra que “a literatura sobre os malefícios à saúde relacionados ao consumo dos ultraprocessados é extensa, incluindo obesidade, hipertensão, diabetes, câncer”, motivo pelo qual se recomenda expressamente evitar o consumo destes alimentos.
Ela não acredita, entretanto, que isso faça a diretriz brasileira ser considerada punitiva: “O Guia não tem caráter punitivo, nem para os indivíduos que não praticam as recomendações, nem para empresas que produzem ultraprocessados. Porém, a prática das recomendações do Guia, pela população, pode impactar o volume de vendas da empresa. Isso seria puní-la?”, indaga.
Adiante, a Sancroft menciona o Pacto Nacional pela Alimentação Saudável, instituído em 2015, nos seguintes termos: “[O Pacto] prevê a redução gradual da presença de açúcar, gorduras e sódio nos alimentos processados e ultraprocessados, de forma a encorajar o consumo de alimentos saudáveis nas escolas e regular a publicidade de alimentos e bebidas nestes locais.”
O relatório cita ainda um estudo do think tank Center for Science in the Public Interest que identifica o Brasil como um exemplo do uso de personagens infantis e posicionamento de marcas em programas de televisão para promover o consumo de bebidas açucaradas entre crianças e adolescentes – detalhe: na época já havia um acordo voluntário no qual algumas corporações se comprometiam a, em tese, não fazer publicidade de seus produtos para menores de doze anos.
Tem que manter isso daí
Visto à luz de 2021, o documento mostra como as corporações do agronegócio e de alimentos conseguiram neutralizar, no Brasil, alguns dos principais riscos apontados no documento.
O dossiê menciona uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em março de 2014, pedindo que a Anvisa concluísse a revisão toxicológica do glifosato, em curso desde 2008. Um ano depois, o herbicida foi classificado como “provavelmente cancerígeno” pela Organização Mundial de Saúde, a OMS.
Nada feito. Passados outros cinco anos, a permissão de utilização do herbicida foi mantida pelo órgão, com algumas restrições, mesmo que países como Áustria, Alemanha e México estejam a caminho de bani-lo.
No campo dos GMOs – sigla em inglês para Organismos Genéticamente Modificados –, também abordado no documento, ganharam destaque o banimento de sementes transgênicas em diversos países da América Latina, como Peru, Venezuela e Equador, e a multa que algumas fabricantes de ultraprocessados com sede no Brasil receberam por esconder a presença de transgênicos em seus produtos.
De lá para cá, essa preocupação desapareceu do horizonte. Pelo contrário, há anos a bancada ruralista no Congresso Nacional ameaça revogar a obrigação de identificar a presença de transgênicos com um T maiúsculo que emula uma placa de trânsito.
O Guia Alimentar, porém, segue a ser uma pedra no sapato das fabricantes de ultraprocessados. Nos últimos anos, várias iniciativas foram tentadas para enfraquecer o documento do Ministério da Saúde.
O ex-ministro Arthur Chioro relatou ao Joio como foi pressionado pela Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) para que não permitisse sequer a publicação. No ano passado, a ofensiva ganhou novos contornos com a pressão direta do Ministério da Agricultura pela revogação do documento.
Um continente problemático
No geral, fica claro que a América Latina, que tem alguns dos maiores consumidores de refrigerantes do mundo, é um foco de preocupação para a empresa.
Àquela altura o Chile havia definido um modelo de rotulagem contra o qual Coca-Cola, Nestlé e companhia têm se debatido nos últimos anos: a colocação de alertas na parte frontal da embalagem para informar sobre o excesso de sal, gorduras e açúcares.
Já naquele momento a empresa estava lançando uma ofensiva para neutralizar o perigo do modelo chileno. Desde então, as corporações vêm defendendo que um sistema de semáforo, parecido ao que foi adotado no Reino Unido em 2007, é o melhor de todos.
O documento da Sancroft cita especificamente a ofensiva na Colômbia em parceria com o ILSI, uma organização de fachada criada pela Coca-Cola em 1978 para promover lobby científico.
“Em resposta à possível avaliação dos sistemas de informação nutricional na Colômbia”, explica o dossiê, “a Coca-Cola se uniu a Kellogg’s, Nestle e Kraft, bem como à filial regional do ILSI, para desenvolver uma estratégia que demonstra os benefícios da rotulagem frontal baseada nas quantidades de ingestão diária”.
Esse é um ponto particularmente importante por causa das relações entre o ILSI e as corporações. Publicamente, o instituto se coloca como um mediador neutro entre setor privado, órgãos públicos e academia, e recusa a ideia de que atue em conjunto com as patrocinadoras. O relatório da Sancroft é mais uma evidência a desmentir o discurso.
A rotulagem é uma questão tão relevante que ganha um capítulo inteiro, e apresenta um dos mapas de calor mais preocupantes aos interesses da empresa.
O curioso é que naquele momento a Anvisa estava discutindo a adoção de um novo sistema para a rotulagem frontal, mas ainda não preocupava a empresa: a Sancroft registra a aposta de que prevaleceria um sistema de semáforo.
Em 2017, porém, o debate esquentou. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) defendeu um modelo de alertas inspirado no caso chileno. Num primeiro momento, a área técnica da Anvisa chegou a declarar que esse é o modelo que melhor funciona, mas com o tempo foi retrocedendo, até que decidiu atropelar as evidências científicas e encampar um sistema semelhante ao canadense.
Um ponto que chamava muito mais atenção da Sancroft era a recente criação de um novo perfil de nutrientes pela Organização Panamericana de Saúde (Opas). De forma resumida, a Opas definiu parâmetros para ajudar os governos nacionais a formularem políticas públicas que desestimulem o consumo de ultraprocessados.
Entre todos os sistemas criados pelas integrantes da Organização Mundial de Saúde (OMS), esse é o único a adotar a separação dos alimentos pelo grau e propósito de processamento.
O perfil de nutrientes da Opas pode ser adotado para definir se um alimento processado ou ultraprocessado é “alto em” gorduras, sal e açúcar, além de sugerir que os governos adotem alertas para a presença de adoçantes e cafeína, medidas pensadas para a proteção da saúde de crianças.
“Os padrões de ingestão calórica e nutricional da Opas são os mais restritivos já elaborados”, avalia o documento elaborado pela Sancroft. “A Opas recomenda que os governos das Américas usem o perfil de nutrientes na elaboração de políticas públicas, com ampla aplicação em: restrições ao marketing, alimentação escolar, alertas nos rótulos, taxação, subsídios agrícolas e programas de assistência alimentar.”
Ingredientes e aditivos também figuram entre as preocupações claras da empresa, com a cafeína em lugar central. Nesse caso, não apenas o refrigerante Coca-Cola, mas os energéticos promovidos pela empresa poderiam se tornar um problema, uma vez que a OMS alertou sobre o consumo excessivo e alguns países até baniram esses produtos. “As pessoas se surpreendem ao descobrir que uma lata de Coca-Cola contém menos cafeína que a mesma quantidade de café”, pondera o texto.
Esse texto também foi publicado no The Intercept Brasil