Como se o negacionismo não bastasse, política de Paulo Guedes favorece a desindustrialização do país
Por Gustavo Botão, Kayque Ferraz e Mikael Servilha
O Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CIES) brasileiro é altamente dependente de importações. A inserção do Brasil no regime internacional de comércio na década de 1990 e a persistência do baixo investimento público em P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) podem ser apontadas como principais causas para esse quadro. Com isso, o processo em curso de abertura unilateral e desindustrialização da economia impõe para o futuro do país um cenário de maior dependência e vulnerabilidade.
Segundo a Política Nacional de Inovação Tecnológica na Saúde (PNITS), o CEIS corresponde ao sistema produtivo da saúde, ou seja, à rede de indústrias e instituições que atuam na pesquisa e desenvolvimento, inovação, comercialização e prestação de serviços na área da saúde. Os desafios para a manutenção desse sistema no Brasil são grandes, “e conformam o cenário brasileiro como único em relação ao mercado internacional – devido a sua dimensão e por contar com o SUS.”
Apesar da utilização de inúmeros produtos de alta tecnologia pelo CEIS, o país ainda depende de importações por causa do baixo investimento em ciência e tecnologia, inovações e no desenvolvimento de uma indústria nacional capaz de produzir tais bens de valor agregado, conforme estudo dos pesquisadores Maria Felipe (UCB), Kellen Rezende (UnB), Mário Rosa (UnB) e Carlos Gadelha (Fiocruz).
Esse cenário foi sentido por todos os brasileiros durante a pandemia, com a falta de equipamentos como respiradores. Segundo levantamento feito pelo DataSUS (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde) e pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em março de 2020, 60% dos municípios brasileiros não tinham nenhum respirador.
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Dado o tamanho de sua população e a existência do maior sistema público de saúde do mundo, o Brasil tem um gigantesco mercado consumidor na área de saúde. O SUS tem uma rede de mais de 63 mil unidades ambulatoriais e cerca de 6 mil unidades hospitalares, com mais de 440 mil leitos (próprios e conveniados).
Por ano, são realizados cerca de 2 milhões de partos; 12 milhões de internações hospitalares; 132 milhões de atendimentos de alta complexidade e 150 milhões de consultas médicas”. A pesquisa da professora Pollyana Varrichio (UNESP), publicada pelo IPEA, mostra que o SUS comprou entre 2009 e 2015, somente no âmbito das PDPs (Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo), R$9,1 bilhões em medicamentos e produtos.
Mas, se o SUS é um grande comprador de bens de saúde, quem são os vendedores? O CIES é capaz de abastecer o SUS? Há um profundo déficit na balança de comércio de saúde. Apesar da alta demanda sustentada sobretudo pelo SUS, o Brasil é extremamente dependente de importações. Isso significa que o país não é capaz de produzir os bens necessários ao atendimento da população. O SUS é abastecido em grande medida pela produção externa.
Se tomarmos como exemplo a importação de medicamentos e produtos farmacêuticos, a dependência brasileira dos grandes centros internacionais pode ser observada pelo aumento do déficit comercial que saiu do valor de 1 bilhão de dólares, em 2006, para 4 bilhões em 2020 (dados do governo federal). Os principais países exportadores de tais bens para o Brasil são Alemanha, Bélgica, China, Estados Unidos, Irlanda, Itália e Suíça, ou seja, três grandes centros: EUA, China e Europa.
Portanto, existe uma fragilidade estrutural do Brasil em termos de saúde. Apesar do imenso consumidor de bens – o SUS – e da Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde frisar o papel do Estado como regulador da produção, incentivador da inovação e financiador das atividades de P&D, não há um projeto de nacionalização da produção desses bens, que dependeria de investimentos massivos e constantes em pesquisa, desenvolvimento e inovação. Isso resulta, como ficou evidente durante a pandemia da Covid-19, na vulnerabilidade dos serviços de saúde no Brasil.
Portanto, a dependência brasileira de importações não se justifica pela insuficiência da produção nacional, mas sim pela incapacidade de produção de bens de saúde com alto valor agregado.
Pollyana Varrichio (UNESP) sintetiza os motivos dessa dependência como consequências da dependência tecnológica, do oligopólio, com elevada barreira à entrada, do domínio de empresas multinacionais, do crescente e robusto déficit na balança comercial e da importação líquida de tecnologia.
Ao longo das décadas é possível observar como as políticas econômicas interagiram diretamente com a área da saúde. Os pesquisadores Ana Viana, Hudson da Silva, Nelson Ibañez e Fabíola Iozzi (2016) apresentam três arranjos de interação entre as políticas econômicas e de saúde na história do Brasil:
- o arranjo da “era do saneamento”, na primeira república (1889-1930), quando foi estabelecida uma base produtiva nacional com a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan para produção de soros e vacinas;
- o da “era da previdência” (1930-1988), com as importações de quase a totalidade dos insumos necessários, enquanto a produção nacional dedicou-se a equipamentos e medicamentos de baixa tecnologia;
- e a “era do SUS”, a partir de 1988, marcada de um lado pela democratização do acesso à saúde, por outro pela chegada de subsidiárias de empresas multinacionais, e pela instalação de um projeto liberal que colocou o desenvolvimento da base produtiva nacional de lado.
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No âmbito da OMC, e em vista da condição de dependência de importações, é possível observar alguns movimentos de governos brasileiros que, em certa medida, acenaram para as demandas de saúde pública do país. Junto com a Índia, o Brasil se notabilizou pelas negociações em torno da Declaração de Doha de 2001 sobre o acordo TRIPS e saúde pública, que fez com que as farmacêuticas baixassem em parte os preços dos seus remédios patenteados vendidos para o Brasil.
Além disso, houve o episódio em que o governo Lula quebrou a patente do antirretroviral Efavirenz, utilizado para o tratamento combinado de infectados pelo HIV-1 em 2007. Tais posições em fóruns internacionais visando atender a saúde pública dos brasileiros, contudo, não foram adotadas por parte do governo Bolsonaro durante a pandemia.
Sobre investimentos totais em P&D, países como EUA (2,84%), Alemanha (3,05%), Suíça (3,17%) e China (2,11%) direcionaram em 2017, no mínimo, mais do que 2,1% dos seus PIBs em P&D, enquanto o Brasil no mesmo ano destinou cerca de 1,09%. Nesses países há também uma forte presença de investimentos privados em P&D, o que é praticamente inexistente no Brasil sobretudo na área da saúde, uma vez que as subsidiárias das farmacêuticas multinacionais instaladas no país deixam as ações P&D para as suas matrizes.
Como se a postura negacionista do governo brasileiro não bastasse para sabotar os esforços de combate à pandemia, a política comercial de Paulo Guedes favorece a desindustrialização do país, diminui o espaço político - impondo limites para futuras políticas de desenvolvimento nacional - e contribui com a primarização da economia brasileira, ampliando a necessidade de importar cada vez mais produtos que poderiam ser produzidos aqui.
Entre as medidas que favorecem esse processo estão os termos negociados no Acordo Mercosul-União Europeia, que facilitam a entrada de produtos de alto valor agregado de origem europeia no mercado mercosulino; a oposição brasileira à proposta de waiver (suspensão) na OMC; e a proposta de reforma da Tarifa Externa Comum que, embora ainda em fase de negociações, permitiria uma redução da alíquota que beneficiará a entrada de bens industrializados de competidores internacionais no bloco.
Enquanto a discussão nos centros hegemônicos se concentra na reversão dos efeitos da deslocalização causados pelas cadeias globais de valor, incentivando suas indústrias a retornar para seus países de origem e, assim, reduzir a dependência de insumos médicos, no Brasil a política comercial é voltada para abrir o mercado nacional à entrada de produtos importados, desestimulando a produção interna e aumentando a dependência.
Em suma, a já existente assimetria está sendo aprofundada, com sérios impactos para a saúde brasileira, que dependerá cada vez mais de importações para suprir sua demanda por insumos médicos.
Além da evidente contradição entre a atual política comercial e a crescente necessidade de insumos médicos pelo SUS, deve-se ressaltar que a política de saúde pública e universal brasileira está na mira de uma ofensiva ultraliberal, que pretende desmontar esse sistema e privilegiar uma cobertura médica privada e excludente.
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Esse projeto de desmonte vai de encontro à política externa para a saúde desenvolvida pelo país desde a redemocratização e que trouxe vários ganhos para o Brasil em acesso a medicamentos e prestígio internacional no debate sobre saúde.
Apesar desse prestígio garantir voz ao país em foros internacionais como a OMS, em vez de utilizá-lo para democratizar o acesso a insumos médicos e vacinas, o governo brasileiro preferiu abrir mão desse ativo ao se voltar para o discurso negacionista e a política de desmonte.
Embora medidas tenham sido tomadas para atender a demanda nacional por produtos médicos e atores tenham proposto meios de produzir os insumos no Brasil, não é possível realizar mudanças substanciais sem uma política voltada para a defesa do sistema de saúde e da estrutura produtiva nacional coordenada pelo Estado e sem investimentos massivos e constantes em P&D.
Além de perder uma oportunidade histórica de se mostrar como uma nação responsável e comprometida com a democratização da saúde mundial, o atual governo brasileiro implementa políticas que contribuem com a vulnerabilidade do sistema público de saúde, agravando a dependência do país diante dos países centrais.
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Saúde e política internacional na pandemia: a atuação dos países centrais
Como visto, as compras brasileiras de material médico historicamente são provenientes de três centros internacionais de poder (EUA, Europa e China) que concentram grande parte da produção industrial e da capacidade técnica relativas à área de saúde. Esses dois fatores combinados contribuem para o agravamento das assimetrias entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, cujas limitadas capacidades foram postas em evidência em tempos de pandemia.
Durante a pandemia pode-se notar o protagonismo desses três centros em matéria de saúde. A China, por exemplo, passou a protagonizar a chamada “diplomacia das máscaras”, aproveitando-se da dependência de vários países de insumos médicos para enviar seus produtos e, assim, fortalecer sua imagem.
Nos Estados Unidos, a discussão a respeito do uso das vacinas como instrumento de soft power tomou corpo a partir do governo Biden, o que não significa que o país não tenha se posicionado em defesa da indústria farmacêutica durante o governo Trump, que orientou sua diplomacia para frear, na OMC, a proposta de waiver (suspensão) temporária de certas obrigações sobre propriedade intelectual para vacinas e outros bens relacionados ao enfrentamento da pandemia, posição seguida pelo Brasil.
Além disso, o governo estadunidense recorreu à Lei de Produção de Defesa para assegurar a sua produção de respiradores, máscaras, matéria prima para vacinas e material médico de forma que, ao fabricar os produtos dentro do país, a dependência externa diminuísse.
Apesar da heterogeneidade dos países europeus, é possível identificar no bloco a defesa das patentes farmacêuticas e a concentração de grande parte das indústrias mais tradicionais no ramo.
Esses dois fatores somados à lenta vacinação fazem com que os países europeus priorizem sua demanda interna durante a pandemia. A União Europeia elaborou um programa bilionário para incrementar a gestão de crises sanitárias e aumentar a acessibilidade a materiais médicos.
Edição: Vinícius Segalla