O patriotismo e o nacionalismo cumprem um papel normativo positivo enquanto fundamento para lutas anticoloniais e anti-imperialistas que resultem na autodeterminação dos povos, bem como para a busca de um interesse nacional comum, que estaria acima dos interesses particulares.
Entretanto, tais valores também são usualmente invocados pelos poderosos para tentarem dar a aparência de interesse de todos os nacionais àquilo que, na verdade, beneficia apenas a elite econômica e a manutenção das relações de dominação e das desigualdades.
Como se sabe, o mais atroz dos exemplos históricos que temos da manipulação do sentimento nacionalista foi o nazismo, que culminou no holocausto e na II Guerra Mundial.
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Em função dessa trágica experiência, inclusive, é que, com a Carta de São Francisco de 1945, que instituiu a Organização das Nações Unidas (ONU) e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, passou-se a reconhecer solenemente a dignidade intrínseca de todo ser humano, independentemente de sua nacionalidade ou de qualquer outra condição, que toda pessoa é um fim em si mesma, e nunca um meio (Kant), nem mesmo para a realização dos “ideais da pátria”.
Disso deriva a ideia de uma cidadania cosmopolita (Held), a qual, sem suplantar a cidadania nacional e se colocando ao lado dela, implica que todo ser humano, em qualquer lugar, é um sujeito de direitos.
Portanto, sem desconsiderar a importância da nacionalidade, o valor superior que nos une é a condição humana, do que deriva um dever de solidariedade com todos os povos (como deveria ocorrer com a distribuição de vacinas contra covid-19) e intergeracional (como deveríamos nos portar em face da preservação do meio ambiente e do enfrentamento do aquecimento global).
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Passando do mundo dos valores para o dos fatos, o que temos é uma humanidade dividida por relações de dominação de classe, gênero e étnico-raciais; uma sociedade global em que, sob a névoa do discurso do mérito e do esforço individual, o que determina as condições materiais de vida de cada pessoa, em regra, é o mero acaso: em primeiro lugar, o país onde nasceu e, em segundo lugar, a família em que nasceu, tendo em vista o caráter rentista e hiperpatrimonial assumido pela sociedade contemporânea (Piketty).
Nesse sentido, como falar em patriotismo em um Brasil onde mais de 14 milhões de pessoas estão desempregadas e mais de 19 milhões passam fome, apesar da prosperidade do agronegócio nacional?
Nesse contexto, a única forma de se levar a sério a defesa do patriotismo seria se seu significado fosse a adoção de políticas concretas para o enfrentamento das desigualdades, incluindo reforma tributária norteada pela progressividade, reforma agrária e reforma urbana, e políticas sociais que protejam a dignidade humana e promovam a concretização dos direitos humanos.
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Mas seriam esses os ideais patrióticos que movem os bolsonaristas às ruas neste 7 de setembro de 2021? Evidentemente que não. Quais seriam então?
Uma fração dos que se manifestam neste dia pela liberdade de espalhar mentiras, de atacar as instituições, de ameaçar a democracia, de desmatar impunemente, de portar fuzis como instrumento para resolução de conflitos, o fazem por causas de natureza psicológica ou psiquiátrica.
Como não sou especialista nessas disciplinas, não me aprofundarei nessas questões, limitando-me a tratar das de cunho político.
Há também uma disputa cultural das forças conservadoras contra o avanço do reconhecimento dos direitos civis, do protagonismo das mulheres, das negras e dos negros, dos LGBTQIA+, das garantias contra o arbítrio no uso da força pelo Estado que, embora falhas, apresentaram inegáveis avanços desde 1988.
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Entretanto, as principais razões das manifestações bolsonaristas deste 7 de setembro, bem como do silêncio ou da timidez da reação de parcela expressiva da elite financeira e empresarial brasileira têm natureza econômica.
É por dinheiro que a parcela mais atrasada do agronegócio brasileiro vai às ruas, já que lucram muito e ganham poder com a crescente característica agrário-exportadora da economia brasileira, a liberdade para desmatar, queimar, “grilar” e invadir terras indígenas.
É por dinheiro que os setores empresariais mais avançados dão respostas tímidas aos ataques à democracia, pois, pelo menos em parte, o governo entrega o que lhes interessa, em termos de precarização de direitos trabalhistas e previdenciários, e redução da capacidade estatal de implementar políticas públicas que promovam a igualdade.
É por dinheiro que pastores de denominações neopentecostais apoiam Bolsonaro, em face de seu compromisso fiel com a defesa de seus negócios.
É por dinheiro que muitos militares descumprem seu dever legal de não atuação político-partidária, e jogam no lixo a imagem democrática que arduamente tentaram construir desde o fim da ditadura civil-militar, pois têm sido amplamente beneficiados com cargos e expressivos rendimentos em ministérios e empresas estatais, bem como, diferentemente dos demais servidores públicos brasileiros, protegidos contra a sanha neoliberal de Paulo Guedes nas reformas da previdência e administrativa.
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É verdade que há pobres, desempregados e assalariados de classe média que ainda dão sustentação ao bolsonarismo, apesar de serem as maiores vítimas da política neoliberal-genocida de Bolsonaro, Paulo Guedes e companhia.
A explicação para isso está na manipulação ideológica (Gramsci) de seu sofrimento real e seu legítimo descontentamento com o sistema político, com o status quo, contra o qual Bolsonaro finge lutar.
Constrói-se e se dissemina uma narrativa que fazem parecer estar do mesmo lado desempregados, desalentados, pequenos agricultores, evangélicos que vivem nas periferias do Brasil, militares de baixa patente, e a fração mais retrógrada do agronegócio brasileiro, a elite financeira-empresarial, os vendilhões do templo e a parcela de oficiais mais preocupados com a defesa do soldo do que da pátria.
Assim, as manifestações bolsonaristas deste 7 de setembro não são sobre patriotismo e defesa da liberdade enquanto direito humano fundamental, mas sim sobre a liberdade de oprimir, de impor ideias e modos de vida, sobre continuar a ganhar dinheiro com as condições proporcionadas por Bolsonaro e o bolsonarismo.
*Murilo Gaspardo é professor associado do Departamento de Direito Público da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP, Câmpus de Franca – SP. Doutor, Mestre e Bacharel em Direito para Universidade de São Paulo (USP). Livre-docente em Teoria do Estado pela UNESP.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Leandro Melito