Neste próximo sábado, 11 de setembro, temos o marco de vinte anos do momento em que um grupo de jovens kamikazes perpetrou o ataque mais mortífero em solo estadunidense desde a Segunda Guerra Mundial, quando os japoneses atacaram Pearl Harbor, no Havaí.
Pela primeira vez, o mundo assistia ao horror de um ataque terrorista em tempo real. Imagens de pessoas pulando no vazio para fugir da morte pelo fogo eram apenas o retrato do desespero extremo de um lado. As imagens apocalípticas das Torres Gêmeas foram acompanhadas por gritos, quer nas ruas de Manhattan, quer por milhões de espectadores que assistiam pela TV o ataque hediondo.
Tais desespero e desprezo pela vida contidas naqueles ataques encontram seu igual nas últimas imagens de jovens afegãos tentando fugir de seu país agarrados a um avião cargueiro estadunidense decolando do aeroporto de Cabul e caindo no vazio.
O número oficial dos kamikazes que morreram em 2001 é 19, dos quais 15 eram sauditas com relações estreitas com a Embaixada de seu país em Washington, vínculos que foram identificados posteriormente.
O número de vítimas é de quase 3 mil mortos, entre os quais 343 bombeiros e 60 policiais que se consagraram como heróis. O acontecido foi considerado crime contra a humanidade, mas isso não impediu o surgimento de teorias conspiratórias, uma espécie de “revisionismo” e até “negacionismo”, mesmo com o próprio Bin Laden, arquiteto dos ataques, reivindicando orgulhosamente o crime diversas vezes.
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O fato de o ataque ter visado a cidade de Nova York, o distrito de Manhattan, as torres gêmeas do World Trade Center (WTC), e também o Pentágono, sede do Departamento de Defesa, em Washington, carrega em si várias mensagens.
Nova York e Manhattan representam não apenas o poder financeiro, o sonho americano, o cosmopolitismo, a encarnação da ideia do indivíduo, de realização pessoal, da liberdade e da terra prometida desde o tempo em que navios carregados pelos pobres e vulneráveis da Europa vinham à procura de um futuro melhor. Ela encarna a civilização ocidental no seu esplendor.
Mas se por um lado o slogan we are all americans espalhou-se pelo mundo como símbolo de solidariedade com os Estados Unidos, um outro mundo estava sendo desenhado. O 11 de setembro foi o gatilho para a declaração “solene” de uma guerra infinita contra o terrorismo em qualquer parte do mundo.
Não havia margem para dúvidas: ou você estava contra o terrorismo ou com o terrorismo. George W. Bush, então presidente, declarou que os ataques terroristas tinham “abalado as fundações dos edifícios mais altos da América, mas não podiam abalar as fundações da América. Se os ataques quebraram o aço, elas não podem cortar o aço da determinação estadunidense [...] América, seus amigos e aliados se unem a todos os que desejam paz e segurança no mundo e estamos unidos para vencer a guerra contra o terrorismo”.
Desse modo, começaram duas décadas de guerra. A recusa da extradição de Osama Bin Laden pelos Talibãs, grupo que então governava o Afeganistão, levou não só à invasão do país, mas à mais longa guerra dos Estados Unidos fora de suas fronteiras.
O mundo se lembra bem dos bombardeios às montanhas de Tora Bora contra os Talibãs e a caça aos membros da al-Qaida, grupo que executou os ataques. E, claro, o inimigo número um dos EUA: Osama Bin Laden. Mas se o objetivo imediato de expulsar os Talibãs do poder foi conseguido, o objetivo de capturar a mente por trás do 11 de setembro só ocorreu uma década mais tarde, quando, em 2011, forças especiais assassinaram Bin Laden, no Paquistão.
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A segunda consequência do 11 de setembro foi a invasão do Iraque, justificada por infundadas acusações de que possuía armas de destruição em massa e relações com o terrorismo da al-Qaida.
Segundo o instituto de pesquisa britânico Opinion Research Business, entre março de 2003 e agosto de 2007, a guerra provocou a morte de mais de um milhão de iraquianos, milhões de refugiados, morte e fuga de cérebros, pilhagem do patrimônio cultural milenar do país, desmonte do exército iraquiano, a erradicação do partido laico Baath e o estabelecimento de um regime controlado pelos xiitas ideologicamente ligados ao Irã, entregando, na prática, o Iraque ao Irã.
No mundo, essa guerra instrumentalizada desacreditou o sistema internacional, o direito internacional e a ONU.
Outra consequência do 11 de setembro foi o aumento da islamofobia de forma nunca antes vista. A imagem do muçulmano e do árabe passou a sofrer preconceito, e a própria língua árabe e a religião muçulmana tornaram-se suspeitas de veicular violência.
No Ocidente, nunca se viu tanto interesse pela cultura árabe e pelo Islã, mas com a finalidade de entender o “inimigo”. Como consequência, surgiu um novo orientalismo, veiculando estereótipos que visam neutralizar o árabe e o muçulmano e derrotá-lo culturalmente.
Nos Estados Unidos, a data deu margem a medidas de segurança nunca vistas num país que era considerado o eldorado da liberdade e da transparência. As medidas legislativas aprovadas após os ataques de 11 de setembro trouxeram mais poder para o executivo dos EUA, aos serviços secretos (incluindo a CIA) e ao FBI (Federal Bureau of Investigation).
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Os militares viram o aumento do orçamento do Pentágono e do poder da ala militarista. O USA PATRIOT ACT (Ato Patriota), aprovado pelos parlamentares em outubro de 2001, passou a permitir, em nome da luta contra o terrorismo, que o FBI pudesse espionar associações políticas e religiosas sem que fossem suspeitas de atividades criminosas.
Em nível mundial, houve captura e prisão de muçulmanos suspeitos de serem terroristas, internados em campos prisionais espalhados por todo o planeta. Houve fortes reações da opinião pública por causa do uso da tortura na base militar de Guantánamo, ocupação dos EUA na ilha de Cuba.
Eis um balanço dos vinte anos da guerra ao terror, no momento que coincide com a retirada humilhante da OTAN e dos Estados Unidos do Afeganistão, com imagens do caos e desespero no aeroporto de Cabul, simbolizando o fracasso da operação Enduring Freedom (Liberdade Duradoura). Joe Biden, o atual presidente, declarou que a missão não tratava da construção de nações, mas sim do contraterrorismo.
Há vinte anos George W. Bush declarou que a missão da guerra infinita era trazer a paz e segurança ao mundo. Fica claro hoje que esse objetivo está longe de ser alcançado.
A derrota no Afeganistão, tal como a derrota no Iraque, as consequências das guerras na Líbia e na Síria, apenas demonstraram a imprudência de algumas políticas militares que visavam a mudança de regimes sem ter um plano para o dia seguinte. O vazio deixado em países como a Líbia, Iraque e agora Afeganistão trouxe e ainda trará, infelizmente, impactos nefastos para a segurança mundial.
Costuma-se dizer que a natureza detesta o vazio e desse modo vemos a mobilização da China, que já está no Afeganistão explorando recursos minerais raros como lítio, cobre, ferro e ouro. A Rússia também se aproveitou da derrota da coalizão OTAN e Estados Unidos para preencher o vazio deixado na Ásia Central.
Também se manifestam o jihadismo global do setor da al-Qaida no Magreb Islâmico que controla a região do Sahel, o Boko Haram (que significa “Educação ocidental é um pecado”) na Nigéria, o grupo al-Chabab, da Somália, além de outros grupos jihadistas em Cabo Delgado, em Moçambique, toda uma rede terrorista internacional que controla grupos e se estende desde o Atlântico até o Índico. O ataque terrorista no aeroporto de Cabul reivindicado pelo Estado Islâmico de Khurasan é sinal do que o pior ainda estar para vir.
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Há trinta anos, o mundo abraçou a globalização, com um planeta que se tornou uma espécie de aldeia, em que tudo está conectado, em que o saber na palma da mão revolucionou a mente de milhões de seres humanos.
Entretanto, o mundo continua a lutar contra os dogmas e as ideologias mais primárias e excludentes do outro, do diferente e do direito à diferença, à coabitação e à tolerância. Eis o contraste da nossa civilização pós-moderna.
A opção bélica não parece ter conseguido criar condições para um novo humanismo, mas, ao contrário, tem aumentado o extremismo e a violência. Talvez uma nova abordagem baseada no multilateralismo e na cooperação verdadeira possa trazer soluções de uma verdadeira liberdade duradoura.
*Mohammed Nadir, graduado em História pela Universidade de Rabat no Marrocos, Mestre e Doutor em História pela Universidade de Coimbra, pós-doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria. Professor visitante de Relações Internacionais e Oriente Médio na UFABC, pesquisador e coordenador do OPEB.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Arturo Hartmann